“A gente vivia em um clima de muita tensão, não me recordo de nenhum momento de lazer.” É assim que Claudia Fernanda Fernandes, 39, uma das filhas de Maria da Penha Fernandes, descreve a infância ao lado das irmãs Viviane, 40, e Fabíola, 37.
Claudia é a única delas que se sente confortável para falar sobre o que viveu. “As brigas eram constantes. A gente apanhava por qualquer coisa. Minha mãe sofria muito por não conseguir nos defender”, conta.
Por 30 anos da minha vida, sofri as consequências do que vi na infância."
"Eu me tornei uma pessoa introvertida. Quando pequena, achava-me incapaz, sentia-me rejeitada, inferior às outras crianças. Fui muito ferida psicologicamente. Por muito tempo, remoí meus problemas para evitar confusão.”
A filha do meio tinha cinco anos quando Maria da Penha sobreviveu à primeira tentativa de assassinato provocada pelo pai, o colombiano Marco Antonio Heredia Viveros. Era 1983, quando ele atacou a esposa com um tiro à queima-roupa nas costas e a deixou paraplégica. Um dia que Claudia ainda guarda na memória.
“Fomos acordadas um pouco antes de amanhecer por um barulho na casa. Quando eu e minha irmã mais velha chegamos na cozinha, encontramos meu pai deitado no chão, todo cortado e cercado por algumas pessoas. Assim que nos viu, nos mandou de volta para o quarto.”
O disparo aconteceu enquanto Maria da Penha dormia. Viveros alegou, na época, que o tiro havia partido de um ladrão. Depois de quatro meses e meio hospitalizada, ela voltou a viver com o marido e as filhas na mesma casa. “Lembro-me dela chegando de cadeiras de rodas, muito tranquila, acho que para poupar a gente.” Seu maior medo era perder a guarda das meninas.
As agressões não cessaram. Uma nova tentativa de assassinato aconteceu quatro meses depois. Dessa vez, tentou eletrocutá-la embaixo do chuveiro. Maria da Penha foi salva pela babá das filhas e empregada.
O ocorrido foi definitivo para que todas se mudassem para a casa dos avós maternos. “Uma psicóloga nos acompanhou por um ano, mas nossas verdadeiras terapeutas foram minhas tias, que agiam como mães. O vínculo familiar é fundamental.” O pai só foi punido 19 anos e seis meses depois e ficou apenas dois preso.
Para evitar mexer na dor, o assunto nunca foi tratado dentro de casa. A primeira vez que Claudia soube dos detalhes do caso foi em 1994, quando recebeu das mãos da mãe o rascunho da biografia dela, “Sobrevivi… Posso Contar” (editora Saraiva), lançado em 2010. "Foi só depois de ler que comecei a enxergá-la como uma fortaleza."
Sinto muito orgulho dela, que sobreviveu por nós, por outras vítimas e pelas próximas gerações de mulheres.”
Apesar da experiência traumática, Claudia diz ter perdoado o pai. “Não por ele, mas por mim. Hoje eu me sinto livre para viver e falar do meu passado, sem sofrer”, conta ela, que nunca mais o encontrou, mas soube que, no relacionamento seguinte, ele agiu da mesma maneira.
“Por isso, acredito na urgência de proteger a vida das vítimas, para tirá-las imediatamente daquela situação de violência. Mas também defendo como fundamental um investimento na educação de agressores, para que essas histórias não se repitam. Precisamos dar fim à naturalização da violência doméstica. E é exatamente a isso que o Instituto Maria da Penha, fundado pela minha mãe, propõe-se. O conhecimento pode salvar vidas.”