Filhos da violência

5º país que mais mata mulheres no mundo, o Brasil ignora as crianças, vítimas indiretas da violência doméstica

Daniela Carasco e Helena Bertho Da Universa
Larissa Ribeiro/Universa
Carine Wallauer/UOL Carine Wallauer/UOL

Com 57% do corpo tomado por cicatrizes, a modelo paulista Amanda Carvalho, 20, convive diariamente com as marcas da violência doméstica. Em 2014, seu pai ateou fogo em sua mãe, que morreu 24 horas depois, e também a atingiu. Ela, assim como suas três irmãs, é órfã do feminicídio. Sua realidade dá rosto a um problema significativo, mas subnotificado.

Tema de debates acalorados, políticas públicas e campanhas de conscientização, a violência doméstica é um assunto urgente. Quinto país que mais mata mulheres no mundo, o Brasil --onde, a cada dois segundos, uma mulher é agredida física ou verbalmente-- pouco fala sobre aquelas que são as vítimas invisíveis das agressões que acontecem entre quatro paredes: as crianças.

Dados da Pesquisa de Condições Socioeconômicas e Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (PCSVDF Mulher), realizada nas capitais nordestinas, em dezembro de 2016, único levantamento de violência doméstica realizado no país que leva em consideração quais são as consequências sofridas pelos filhos, mostram que cada vítima de feminicídio deixa, em média, três órfãos. Cerca de 20% dessas crianças acabam tendo de viver com a família do agressor.

Não é só quando apanham que elas são vitimizadas. Para a psicóloga Manuela Lainetti, que atende crianças vítimas de violência no CNRVV (Centro Nacional de Referência para Vítimas de Violência), "presenciar já é uma forma de abuso psicológico em si". Os traumas, dependendo da idade, das circunstâncias e da frequência, podem ser tão grandes quanto os de um soco.

Como diz Maria da Penha, símbolo nacional da causa e mulher que deu nome à principal lei que trata do assunto, "as crianças são as maiores vítimas invisíveis da violência doméstica". É preciso tirá-las da invisibilidade.

"Depois de 20 anos, meu pai fez o que prometeu: ateou fogo na minha mãe"

Marília Camelo/UOL Marília Camelo/UOL

Com a palavra, a filha da Maria da Penha

“A gente vivia em um clima de muita tensão, não me recordo de nenhum momento de lazer.” É assim que Claudia Fernanda Fernandes, 39, uma das filhas de Maria da Penha Fernandes, descreve a infância ao lado das irmãs Viviane, 40, e Fabíola, 37.

Claudia é a única delas que se sente confortável para falar sobre o que viveu. “As brigas eram constantes. A gente apanhava por qualquer coisa. Minha mãe sofria muito por não conseguir nos defender”, conta.

Por 30 anos da minha vida, sofri as consequências do que vi na infância."

"Eu me tornei uma pessoa introvertida. Quando pequena, achava-me incapaz, sentia-me rejeitada, inferior às outras crianças. Fui muito ferida psicologicamente. Por muito tempo, remoí meus problemas para evitar confusão.”

A filha do meio tinha cinco anos quando Maria da Penha sobreviveu à primeira tentativa de assassinato provocada pelo pai, o colombiano Marco Antonio Heredia Viveros. Era 1983, quando ele atacou a esposa com um tiro à queima-roupa nas costas e a deixou paraplégica. Um dia que Claudia ainda guarda na memória.

“Fomos acordadas um pouco antes de amanhecer por um barulho na casa. Quando eu e minha irmã mais velha chegamos na cozinha, encontramos meu pai deitado no chão, todo cortado e cercado por algumas pessoas. Assim que nos viu, nos mandou de volta para o quarto.”

O disparo aconteceu enquanto Maria da Penha dormia. Viveros alegou, na época, que o tiro havia partido de um ladrão. Depois de quatro meses e meio hospitalizada, ela voltou a viver com o marido e as filhas na mesma casa. “Lembro-me dela chegando de cadeiras de rodas, muito tranquila, acho que para poupar a gente.” Seu maior medo era perder a guarda das meninas.

As agressões não cessaram. Uma nova tentativa de assassinato aconteceu quatro meses depois. Dessa vez, tentou eletrocutá-la embaixo do chuveiro. Maria da Penha foi salva pela babá das filhas e empregada.

O ocorrido foi definitivo para que todas se mudassem para a casa dos avós maternos. “Uma psicóloga nos acompanhou por um ano, mas nossas verdadeiras terapeutas foram minhas tias, que agiam como mães. O vínculo familiar é fundamental.” O pai só foi punido 19 anos e seis meses depois e ficou apenas dois preso.

Para evitar mexer na dor, o assunto nunca foi tratado dentro de casa. A primeira vez que Claudia soube dos detalhes do caso foi em 1994, quando recebeu das mãos da mãe o rascunho da biografia dela, “Sobrevivi… Posso Contar” (editora Saraiva), lançado em 2010. "Foi só depois de ler que comecei a enxergá-la como uma fortaleza."

Sinto muito orgulho dela, que sobreviveu por nós, por outras vítimas e pelas próximas gerações de mulheres.”

Apesar da experiência traumática, Claudia diz ter perdoado o pai. “Não por ele, mas por mim. Hoje eu me sinto livre para viver e falar do meu passado, sem sofrer”, conta ela, que nunca mais o encontrou, mas soube que, no relacionamento seguinte, ele agiu da mesma maneira.

“Por isso, acredito na urgência de proteger a vida das vítimas, para tirá-las imediatamente daquela situação de violência. Mas também defendo como fundamental um investimento na educação de agressores, para que essas histórias não se repitam. Precisamos dar fim à naturalização da violência doméstica. E é exatamente a isso que o Instituto Maria da Penha, fundado pela minha mãe, propõe-se. O conhecimento pode salvar vidas.”

"Pessoas fragilizadas na infância crescem inseguras e acabam reproduzindo comportamentos perigosos, como de aceitar tudo pelo bem da relação"

Claudia Fernanda Fernandes, uma das filhas de Maria da Penha

"Meu pai matou a minha mãe"

Aos seis anos, o mineiro Marco Maciel, hoje com 50, brincava com os primos na varanda da casa de uma tia quando o pai chegou, deu um beijo em sua testa e entrou. Em poucos minutos, ouviu o som de um tiro e viu o homem sair.

A memória de Marco sobre os acontecimentos ainda é confusa, o que ele sabe é o que foi contado a ele: o pai, ao entrar na casa, ameaçou a mãe com uma arma e disparou contra ela, para, em seguida, ir beber em um bar. A mãe morreu ali.

Para Marco, aquele foi o dia em que perdeu não só a mãe, como também o pai. Além dele, ficaram órfãs mais duas irmãs, uma de quatro anos e outra, de dois.

"Durante muitos anos, tive pesadelos recorrentes de ver uma pessoa chegando em casa. Sentia que precisava correr, fugir", conta Marco. Ele ainda lembra que o avô materno precisou brigar na Justiça para que o assassino da filha fosse condenado e preso.

"Só que ele era amigo dos policiais, conseguia sair da cadeia às vezes. E como não estava necessariamente preso, tentava entrar em contato com a gente. Quando eu tinha 12 anos, ele tentou me encontrar e, por isso, fomos escondidos morar com uma tia em Brasília."

A morte da mãe passou a ser tabu na família, ninguém comentava. Marco e as irmãs cresceram sem lidar com isso. Só recentemente, aos 48, quando se separou da mulher, foi que ele precisou encarar o trauma.

Pela primeira vez na vida, eu ia morar sozinho e fiquei mal. Tive de ir a um psicólogo, porque, na verdade, estava revivendo esse sentimento da perda dos seis anos."

Marco entrou em depressão e precisou fazer tratamento, para lidar com as marcas que ficaram pelo crime ocorrido na família. 

Quando o pai mata a mãe, para onde vão as crianças?

Bárbara Menossi, psicóloga e coordenadora do abrigo Lar do Pequeno Cidadão, em São Paulo, conta que, muitas vezes, o paradeiro dessas crianças não chega nem para o Ministério Público. “A própria família acaba absorvendo. Só quando não tem um familiar que possa criá-la, entra em ação o Conselho Tutelar, mas é bem raro.”

O professor da Universidade Federal do Ceará José Raimundo Carvalho reforça: "Não existe um registro nacional de onde estão esses órfãos". Segundo ele, a falta de dados e informações que reflitam de fato a realidade dessas crianças dificulta a criação de políticas públicas, deixando-as sem qualquer acompanhamento.

Desde 2016, José Raimundo coordena a única pesquisa que trata do assunto no país, a PCSVDF Mulher, realizada em parceria com o Instituto Maria da Penha. "Estamos ainda na etapa de quantificar o problema", diz.

A pesquisa ouviu 550 mulheres que conheciam vítimas do feminicídio. Segundo elas, 347 deixaram filhos, e 20% deles vivem hoje com a família do agressor. O professor vê o índice com preocupação. “Considerando que a nossa Justiça é falha na punição dos agressores e assassinos de mulheres, essas crianças provavelmente vão voltar a conviver com o criminoso em algum momento”, diz.

A promotora de Justiça Silvia Chakian esclarece não existir nenhum tipo de regra em relação à criança poder ou não viver com a família do agressor. Mas também se mostra preocupada com a possível proximidade entre filho e pai.

Muitos autores dessas violências são soltos ou nem chegam a ser presos."

"Aí a criança continua sendo educada e submetida à convivência com o assassino da mãe?”, questiona. Por isso, ela defende que os casos sejam analisados individualmente.

Quando chega à Justiça para que seja decidida a guarda, a promotora da Infância e Juventude Luciana Bergamo garante haver um estudo criterioso. “Os esforços são sempre para manter o menor junto à família. Encaminhar ao acolhimento institucional [como abrigos] será sempre o último dos últimos recursos.”

Entregá-la à família paterna pode não ser a melhor opção, mas, às vezes, é a menos pior."

Luciana justifica: "Pode parecer alarmante, só que nem sempre existe um familiar materno em condições melhores. A decisão é tomada pelas Varas à luz do melhor interesse para a criança.”

O mesmo raciocínio vale na hora do julgamento da guarda compartilhada, que ainda divide opiniões. Segundo a lei, em caso de separação, o compartilhamento do tempo de convívio deve prevalecer mesmo quando há conflito entre o pai e a mãe, priorizando sempre o bem-estar da criança. “O problema é que é difícil imaginar esse tipo de guarda em um ambiente permeado pela violência”, diz Silvia. 

Quem protege essas crianças?

Apesar de a violência doméstica ser tema constante de debate em tempos de luta pelos direitos das mulheres, “a situação dos filhos das vítimas ainda é um problema invisível”. A afirmação é de Silvia Chakian, promotora de Justiça do GEVID (Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica), em São Paulo.

Segundo ela, a criação da Lei Maria da Penha, há 11 anos, foi fundamental para definir como responsabilidade do Estado um problema que costumava ser visto como familiar, de menor importância. “Só que pouco se avançou em termos de políticas públicas voltadas para a minimização das consequências sofridas pelos filhos dessas mulheres, muitos órfãos do feminicídio.” 

A reportagem procurou a Secretaria de Políticas para Mulheres, e a assessoria de imprensa comunicou que a atuação do órgão se concentra nas mães. Por isso, não há nada voltado aos filhos. Já o Ministério de Direitos Humanos, que engloba a Secretaria da Criança e do Adolescente, informou que não tem ações específicas voltadas para as crianças que vivem a violência contra a mulher em casa.

O único avanço recente foi a criação da Lei 13.431, de abril de 2017, que garante escuta protegida a menores vítimas diretas ou testemunhas da violência doméstica. Na prática, ela determina que crianças e adolescentes dêem seu depoimento uma única vez, em um lugar acolhedor. Isso evita que eles revivam os traumas. A lei prevê ainda que tenham direito a medidas protetivas contra o agressor.

O artigo 30, da Lei Maria da Penha, também prevê proteção integral aos menores. Mas a verdade é que ainda falta vontade política para tirar as leis do papel. Não basta a previsão legal, é preciso implementar."

Para Silvia, o desamparo incide muito na falta de comunicação entre as Varas Criminais, da Família e da Infância e Juventude ao longo do processo criminal. Enquanto a primeira julga o caso de violência, a segunda decide os trâmites de guarda, e a terceira tem a responsabilidade de acompanhar o menor e encaminhá-lo a grupos de apoio. Nem todo caso, porém, de filhos em situação de risco é levado adiante após o julgamento da violência doméstica.

A promotora da Infância e Juventude Luciana Bergamo afirma que o Estatuto da Criança e do Adolescente tem instrumentos legais para que o Ministério Público e a Justiça possam proteger qualquer vítima. “Nem sempre, porém, a rede de auxílio oferecida pela Estado dá conta do recado de protegê-los. Muitas vezes, notamos o quão difícil é para uma família conseguir atendimento psicológico no sistema público de saúde, por exemplo.”

Essa falta de atenção pode impactar na saúde física e psíquica das crianças. “Aquelas que são vítimas indiretas costumam apresentar síndrome do pânico, ansiedade, depressão, ideação suicida, baixo rendimento escolar, agressividade, ansiedade e insegurança”, diz Silvia Chakian.

Eles aprenderam em casa

"A forma como as pessoas se relacionam é aprendida", afirma a psicóloga Manuela Lainetti, que atende crianças vítimas de violência no CNRVV. É o que José Raimundo Carvalho, professor da Universidade Federal do Ceará, chama de transmissão transgeracional da violência. A criança que vê a agressão como parte do relacionamento dos pais entende que é assim que as trocas afetivas acontecem e pode repetir o modelo quando viver um relacionamento.

O psicólogo Flávio Urra, coordenador do Projeto E Agora José?, grupo educativo para homens condenados por violência contra a mulher, de Santo André (SP), afirma:

Nem todo menino que presencia a violência em casa vai repetir. Mas a maioria dos homens que a comete viveu a violência doméstica quando criança."

Apesar da relação notada pelo especialista, os homens que participam do grupo não parecem perceber a conexão. Universa conversou com três deles. Todos presenciaram violência doméstica dentro de casa na infância, mas nenhum admite tê-la praticado, apesar de já condenados pela Justiça.

"Minha ex soube que estou com outra e foi na delegacia, deu dez queixas sem nada ter acontecido", conta Lauro*, 42, que cumpre pena por ameaça e perseguição. Ele passou a infância apanhando dos pais e, na adolescência, viu o pai agredir a mãe.

Já o eletricista Eduardo*, 29, conta que empurrou a mulher, “mas ela provocou”. Questionado se sua atitude tem relação com o fato de ter crescido vendo o pai batendo na mãe, responde: "Imagina. Empurrei porque ela veio para cima de mim". Ele passou dois meses preso e agora participa do grupo por outros seis, como pena alternativa.

"Autodefesa" foi também a justificativa do advogado Evandro*, 55, para empurrar a namorada. "Ela me xingou, veio para cima de mim." O que o teria feito "perder a razão". "A gente acaba extrapolando", conta ele, depois de falar que o pai agredia sua mãe, até seus cinco anos, quando fugiram de casa. Mas, aos olhos de Evandro, as coisas são diferentes: "Antigamente tinha aquela coisa de machismo, hoje não tem mais."

"Reagi por mim e pelos meus filhos"

Ainda que a preocupação com a criação dos filhos ocupe a segunda posição da lista de motivos que impedem muitas mulheres de denunciarem seus agressores, algumas vítimas encontram na prole a motivação para se libertar. Foi o caso da funcionária pública catarinense Karina*, 32. Nome trocado por uma única razão, que permeia todos os relacionamentos abusivos: o medo.

“Durante 11 anos, vivi repetidos ciclos de violência”, conta.

Apanhei calada para defender meus filhos da violência do pai, por achar que não seria capaz de sustentá-los sozinha, por acreditar naquele relacionamento, por vergonha de ser julgada.”

No casamento marcado por humilhações, agressões físicas e ameaças de morte, Karina foi também violentada sexualmente. “Meu marido me forçava a ter relações sexuais”, diz. “Em 2008, com três anos de relacionamento, cheguei a fazer um boletim de ocorrência contra ele. Na delegacia, disseram que uma mulher precisava estar muito machucada para o caso virar inquérito. Nada foi feito. Foram anos vivendo naquele inferno.”

Por diversas vezes, ela decretou o fim da relação. Na mesma frequência, aceitou-o de volta. “Acreditei em todas as promessas de que ele não levantaria mais a mão para mim.” O rompimento definitivo só aconteceu em 2016.

Karina é mãe de dois meninos, um de sete anos e outro de 11. “Depois de uma semana que coloquei meu ex para fora de casa, ele reapareceu de surpresa, completamente drogado. Partiu para cima de mim com um pedaço de pau, diante dos meninos. Fiquei toda machucada. O meu menor gritava para ele ir embora. Foi o fim, precisava denunciá-lo por mim e por eles.”

Ela registrou nova ocorrência na polícia, mas recusou a medida protetiva, que determina o distanciamento do agressor em relação à vítima. “Meu filho mais velho ficou muito abalado e precisou de tratamento psicológico. Só que ele sentia falta do pai. Para evitar que o afastamento definitivo o prejudicasse mais, abri mão do recurso. Assim, ele teria direito a visitas.”

Um arrependimento que ela carregou até julho do ano passado, quando entrou na Justiça com um pedido de pensão e voltou a ser ameaçada. Karina aceitou a protetiva.

Tive medo de morrer em todas as vezes que fui agredida e ainda tenho. Depois da separação, isso aumentou tanto, que passei a dormir com uma faca debaixo do travesseiro para me proteger.”

O agressor mudou de cidade, e o caso nunca foi investigado. “As leis são muito falhas, mas denunciar é fundamental”, diz ela, que, na impossibilidade de apagar o passado, ensina aos filhos o valor do respeito em um relacionamento amoroso. “Reagi por mim e por eles.”

*Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados

"Ele partiu para cima de mim com um pedaço de pau, diante dos filhos"

Karina, vítima de violência doméstica durante 11 anos

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