Mulher drag queen

Drag não é só homem vestido de mulher, não. Conheci um grupo de minas que se monta e me montei também

Helena Bertho da Universa
Larissa Zaidan/UOL

Pabllo VittarRuPaul têm tornado drag queens cada vez mais populares no Brasil. Mas elas estão por aí há décadas, principalmente na noite paulistana.

Eu, vinda do interior de São Paulo, logo que me mudei para a capital assisti a um show de drag pela primeira vez, em uma balada gay. Desde então, vi muitos, mas foi com o sucesso do reality norte-americano Ru Paul's  Drag Race que isso virou uma paixão. Devorei as temporadas da série, torcendo e criando afeto por aqueles homens vestidos de mulher.

O que sempre me encantou nelas não era só a arte ou as performances, mas o conceito de exagerar e expor os estereótipos do feminino, com uma ridicularização que deixa claro o quanto a construção do "ser mulher" impõe a nós artifícios inúteis. Ser mulher é usar batom? Calçar salto? Ter cabelão? O que as drags mostram é o quanto essas expectativas do feminino não fazem sentido.

Também me encantava a força desses homens que aceitavam se sujeitar ao que a sociedade mais despreza: o feminino. Drag queen é arte, mas também é questionamento dos estereótipos de gênero e resistência LGBT.

Ah! Como eu queria poder me montar como uma drag! Mas achava que isso era --mais uma-- coisa de homem. Até que descobri que existe, sim, drag mulher. Claro que assim que soube fui atrás delas e fiz a proposta: posso me montar um dia com vocês?

Riot Queens, o grupo de drags mulheres

Tem gente que chama de lady queen ou faux queen (faux é falso, em francês). Mas elas preferem usar drag queen, mesmo. As Riot Queens são um coletivo de São Paulo, formado por mulheres que se montam e 'performam'. Elas se conheceram em 2015, em um grupo no Facebook de fãs de Ru Paul, onde descobriam que mulher também se monta e decidiram tentar.

"A gente começou tudo junto, fomos aprendendo juntas. E veio a ideia do coletivo, porque, na época, tinha pouca mulher na cena", conta Zibel Cavalcanti, 31, que responde pela alcunha de Greta Dubois.

Atualmente, são 11 membros no coletivo. Na foto, só tem cinco, porque foram as que puderam se encontrar comigo no dia em que me montei. Além das mulheres cisgênero, o grupo tem, ainda, uma mulher trans e um homem trans. 

Mais do que se produzir juntas, elas criaram o coletivo para se fortalecer. Bruna Tieme, 21, a Ginger Moon, me contou que as Riots são uma forma de trazer representatividade para mulheres num espaço que é dominado por homens. "É um universo predominantemente gay e gays são homens. Homens podem ser machistas".

A verdade é que nem sempre as mulheres são aceitas como drag queens --e a gente explica essa polêmica daqui a pouco-- e isso faz com que o preconceito surja de diversas formas: desde olhares de desprezo nas festas até não serem convidadas para performar em concursos e eventos.

Basicamente, as Riot Queens são um exemplo da sororidade (união entre mulheres) que é uma das marcas essenciais do feminismo. Elas sabem que juntas são mais fortes --e se divertem mais.

As bichas, agora, têm bem mais medo de falar besteira, porque tudo é problematização e militância. Então acaba sendo mais velado o preconceito contra as mulheres drags

Pâmella Sapphic

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Peruca, maquiagem e cola na sobrancelha

Foi num domingo que as Riots toparam passar o dia comigo, me ajudar a criar a minha versão drag e ainda curtir uma balada montadas. Cheguei uma e meia na casa de Greta, que estava recortando e colando E.V.A. um tipo de material artístico, para fazer joelheiras --ela seria uma lutadora de "lucha libre" naquele dia.

Espuma, tesoura e pedras decorativas parecem ser parte essencial do ser Drag Queen. "A gente nunca costura, só cola", ela disse, me mostrando o cinturão que tinha feito. A espuma também é muito usada pelos homens, para modelar quadris e seios. 

Comecei a ficar tímida. A verdade é que eu não tinha me preparado nada para o dia: só comprei uma peruca e arrumei um vestido emprestado. E, como eu bem sabia de ver no reality show, uma boa drag tem um conceito de personagem e também para o figurino. Pelo visto eu ia fazer feio.

Logo chegaram mais duas, Ginger Moon e Iara de Valentim, 23, conhecida como Don Valentim. Sim, ela, na verdade, não faz drag queen, mas, sim, drag king. Ou seja, se monta como homem. "Eu comecei com uma coisa de experimentar o gênero oposto, mas, hoje em dia, eu não tenho mais essa intenção. Faço o que sinto vontade, gosto de fantasiar", explicou.

Mesmo quando estão desmontadas, elas se chamam pelo nome drag. Então, ali, Iara é Don e o pronome usado é o masculino. Ele e Ginger são um casal. Contaram-me que se conheceram em uma performance, onde deram o primeiro beijo, e estão há um ano juntos.

Minha mãe Drag me deu um sábio conselho: use sempre desodorante, muito desodorante. Senão, com tanta make, peruca e roupa, você já chega fedendo no rolê

Pâmella Sapphic

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Começou a montação

Enquanto elas iam contando suas histórias, começamos a nos montar, por volta das duas da tarde. Ginger já estava ansiosa: "A gente vai atrasar, preciso chegar na hora na festa". Detalhe: a festa começava às 17h. Duvidei que demoraríamos tanto...

No meio da tarde, mais duas chegaram: Pâmella, uma das Riot Queens, com sua namorada Popia, também drag, mas não parte do coletivo. As duas estavam visivelmente de ressaca. "Chegamos em casa oito da manhã, gastei meu VR todo em corote", contou Pâmella rindo. Corote é um coquetel alcoólico industrializado, para quem não conhece. 

Para rebater, traziam na mão uma garrafa de vodca e ingredientes para fazer uma macarronada.

Greta preparou para Popia uma receita cura-ressaca, aprendida com sua mãe: um coquetel de remédios para o estômago, fígado e dor de cabeça. Pâmella logo começou a se montar enquanto a namorada foi preparar o almoço.

Pelas horas seguintes, passamos cola, talco, base, sombra, tinta, iluminador e muito mais coisa na cara, enquanto elas me contavam de suas vidas, comendo macarrão com sardinha e acompanhado de vodca com suco em pó.

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O que é drag queen para você?

  • Pâmella Sapphic.

    "É afrontar a sociedade. A drag vem para expor alguma coisa, uma ideia que você tem. Você expressa isso através do seu corpo, da sua performance. É arte viva"

  • Greta Dubois

    É quebrar barreiras de gênero. Pegamos coisas que nos foram impostas e exageramos. Podemos sair semi-nuas, até nuas! Foda-se que não sou magra"

  • Ginger Moon

    "Drag é poder fazer o que você quer. Num dia sou alien, no outro, um unicórnio. E isso ensina muito: a se amar, a ter consciência do seu corpo e das suas limitações"

  • Buba Kore

    "Drag é uma manifestação artística, que não tem a ver com gênero. É uma arte. É arte, muita dedicação e amor"

  • Don Valentim

    "É arte e autodescoberta. A sociedade não dá abertura para experimentarmos. Então, como drag, você descobre cosias sobre você"

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Menos é mais? Nunca!

Eu amo maquiagem, mas só uso em casamentos ou no Carnaval. Mesmo assim, achei que sabia fazer coisas elaboradas, mas o que aprendi na sala de Greta chegou a outro nível: elas transformam os rostos em telas de pintura. E, para começar, é preciso se livrar de um empecilho: a sobrancelha.

Ginger me emprestou sua cola em bastão e mostrou como fazer: primeiro, passo no sentido contrário dos fios, depois no sentido em que crescem. Várias vezes, até cobrir bem. Depois, selo com talco e uma nova camada de cola. O negócio é deixar os pelos bem cobertos, para passar base e cobrir totalmente a sobrancelha.

Na primeira vez, falhei tristemente e continuei com pelos escuros bem visíveis. Bora limpar e começar de novo. Na segunda tentativa, ficou um pouco melhor. Pâmella e Popia rasparam as sobrancelhas para facilitar a vida.

O passo seguinte era o olho. Eu precisava usar cores para criar um novo desenho de olho em mim, bem maior e mais exagerado do que o normal. Comecei timidamente com o delineador gatinho que sempre faço. Greta riu.

Drag é assim: quando você achar que está exagerado, coloca mais, bem mais!"

E foi o que fiz. E, modéstia à parte, até que não mandei tão mal para uma amadora.

Uma das partes mais incríveis de tudo foi ver os produtos que elas usavam. Eu sempre achei que, para ser uma drag incrível, precisaria ser rica e ter a nata do que há em maquiagem. ERRADO!

A maior parte das Riots está desempregada e gastar 100 reais numa base é impensável para elas. O que usam? Produtos de marcas baratas e tinta artística para pele, dessas de festas de criança, além de algumas tintas de palhaço. Como me disseram: quase tudo disponível por dez reais na papelaria mais próxima.

Passo seguinte: desenhar o rosto. Não é só passar base e um blush, não. Com três ou quatro tons de produtos, o desafio é dar um novo formato para a cara. Mais uma vez, fui discreta demais na tentativa e tive que ouvir que o negócio era exagerar.

Idem na boca. A ordem era esquecer o formato natural dos meus lábios e criar outros bem maiores. Precisei refazer algumas vezes.

Cílios postiços --de plumas, sobra do carnaval-- e peruca colocados. Voilá! Minha versão drag tinha uma cara.

A pergunta que não quer calar: mulher pode ser Drag Queen?

Todos os homens com quem falei perguntaram: não seria apropriação cultural de uma forma de resistência gay?

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Sim: "Mulher pode e deve"

Fiz essa pergunta para as Riot Queens e, para elas, é claro que mulher pode. Os argumentos são muitos. "Se é para quebrar as barreiras impostas ao nosso gênero, mulher, a gente pode", me disse Greta. Ginger foi além: "Falam que drag é resistência do movimento LGBT, e daí só pensam no G, né? Esquecem que temos ainda o L, o B e o T". As apresentadoras do reality Drag Me As Queen, Rita Von Hunty, Penelopy Jean e Ikaro Kadoshi também são a favor. "Mulher pode e deve fazer Drag. O movimento LGBTQIA+ precisa de união e comunidade. Precisamos que arte seja acessível e transformadora. E, por fim, precisamos lembrar que, antes de Ru Paul, havia Elke Maravilha", disse Rita.

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Não: "Mulher vestida de mulher"

Conversei com uma drag que atua na noite paulistana há muitos anos, que preferiu não se identificar por medo de retaliação e acha que mulher fazendo drag queen não é legal. "Quando se é um homem numa sociedade machista, existe uma ironia em fazer drag, quebra barreiras. É, sim, diferente um homem 'se vestindo de mulher' de uma mulher 'se vestindo de mulher'. E completou: "Quando me monto, uso enchimento, meias-calças fio 40, corset apertado para dar cintura e diminuir a caixa torácica. O pior: tenho pênis e testículos que ficam doloridíssimos de ficarem escondidos. Aí vem uma menina, com sutiã e calcinha fazer show e falar que 'vai ter mulher sim'... Não é misoginia, é falta de profisisonalismo".

Por trás da Pâmella, está Fernando, um homem trans

Enquanto se montava e driblava a ressaca com mais vodca, Pâmella contou: "Ontem eu saí do armário para minha família". Família, no caso, é a mãe drag e suas irmãs --a queen mais experiente, que a adotou para ensinar sua arte para ela e suas outras filhas.

Pâmella me contou então que aquela era a terceira vez que saía do armário: primeiro, como lésbica, para a família; depois, ao começar a se montar e, agora, por ter se entendido como um homem trans. Seu nome não artístico é Fernando Aquino, 24. Antes, vivia como uma figura bem feminina: cabelo comprido, loiro, muita maquiagem e salto alto no dia a dia. 

Aos poucos, fui percebendo que essa feminilidade era imposta, que eu me sentia na obrigação de fazer, sabe?"

Quando começou a se montar, há três anos, entendeu que podia brincar com isso, exagerar e fazer o que quisesse com esses artifícios ditos femininos. E, conforme Pâmella Sapphic, a drag queen, crescia, a pessoa por trás da personagem foi se desfazendo da feminilidade em sua vida. "Fui deixando isso para a personagem e comecei a me descobrir como homem trans".

Pâmella diz que a forma como se expressava, muito feminina, não condizia com a personalidade. "Eu me sinto muito mais confortável da maneira masculina". Montar-se é uma forma de quebrar a imposição do que seria o feminino e expor cada vez mais isso. "Ensinam que mulher tem que usar maquiagem, mas sem exagerar. Tem que ser sensual, mas sem ser vulgar. A minha personagem, não. É a mais escrachada possível, vulgar e explicitamente sexual".

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No fim das contas, ser drag não é só se montar

Depois da tarde me montando, chegou a hora de partir para o rolê. Fomos para uma festa mensal de drags, chamada Fejão: mais da metade do público ali estava montada. Quem organiza é Buba  Kore, mulher trans e uma das Riot Queens.

O clima era tranquilo. Por ser domingo, fim de tarde, ninguém bebia muito e parecia mais uma festa para as drags relaxarem depois de performar o fim de semana todo. Logo que chegamos, as meninas foram cumprimentar vários conhecidos e me apresentaram para alguns.

Eu, me equilibrando num salto, com paetês pinicando e uma peruca enorme, estava bem deslocada. Aquela figura não só não era eu, como não seria a minha versão drag. Algumas pessoas dançavam na pista. Eu, tímida e desconfortável, estava completamente travada e só balançava o corpo, timidamente.

Logo começaram os shows, com performances de drags (inclusive uma mulher) e cantores.

Quando os shows acabaram, comecei a ficar constrangida, sem saber o que fazer. Somando isso a cansaço e fome, decidi ir embora um pouco antes do fim. Como precisava comer, fui encontrar uns amigos num karaokê ali perto.

O lugar estava vazio e, depois de comer uns pasteizinhos, resolvi aproveitar o palco e tentar soltar um pouco da drag adormecida por baixo da peruca. Pedi uma Britney Spears, peguei o microfone e subi no palco. Tentei performar e cantar com vontade, mas a timidez ainda ganhava...

A real é que eu (ainda) não sou drag queen. Não basta botar uma peruca e encher a cara de maquiagem. As verdadeiras drags fazem arte, têm conceito e muito trabalho naquilo que fazem. Claro que adorei me montar, mas, para chegar perto delas, eu ainda preciso treinar e me preparar muito... Deve ser por isso que nem conseguir pensar num nome.

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