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Um ano após a legalização do aborto na Argentina, a mudança é lenta

Mulheres celebraram legalização do aborto na Argentina, em dezembro de 2020; cor verde simboliza luta feminista no país - Getty Images
Mulheres celebraram legalização do aborto na Argentina, em dezembro de 2020; cor verde simboliza luta feminista no país Imagem: Getty Images

12/01/2022 12h54

Um ano depois da legalização do aborto na Argentina, "ainda há coisas para sair da clandestinidade", afirma Monik Rodríguez, encarregada de uma linha de telefone de acompanhamento para pessoas que desejam interromper sua gravidez em Salta, uma província ultraconservadora do país sul-americano.

Com 33 anos e três filhos, Rodríguez dedica muitas horas a atender ligações, parte de um projeto da associação civil Força das Mulheres.

"A escuta é o mais importante. Trata-se de ajudar a pular os obstáculos, elas são acompanhadas até o sistema de saúde para que não se percam nos labirintos burocráticos", explicou à AFP.

Algumas mulheres precisam viajar muitos quilômetros para evitar os comentários: "Nas cidades pequenas, você vai de manhã fazer uma ultrassom e à tarde o padeiro te parabeniza pela gravidez", ironiza Monik.

Na linha telefônica, recebe ligações de adolescentes e pessoas na pré-menopausa, mães de famílias grandes e novas, ou uma dançarina de tango que ganhou uma bolsa para ir à Europa e não quer que uma gravidez condicione sua viagem.

"Neste número não aconselhamos o aborto, mas também não romantizamos a maternidade", afirma Monik, que há uma década, já mãe de uma menina, recorreu à clandestinidade.

Aos 23 anos, teve um atraso na menstruação e decidiu abortar. A operação não correu bem e precisou ser hospitalizada. Os exames mostraram que não estava grávida. "A ansiedade da clandestinidade, junto com a desinformação, é o que nos coloca em perigo", afirma.

As autoridades de saúde estimaram que entre 1983 e 2020 morreram mais de 3.000 mulheres nos cerca de 370.000 a 520.000 abortos clandestinos praticados por ano. Ainda não há dados de 2021, primeiro ano do aborto legal.

Além do que falta resolver, as feministas celebram que em 30 de dezembro de 2020 o Congresso legalizou a interrupção voluntária da até a 14ª semana de gestação.

Judicialização

Miranda Ruiz, de 33 anos, é a única profissional que pratica o aborto em Tartagal, uma cidade de Salta de 75.000 habitantes. Em setembro do ano passado, foi presa denunciada pela tia de uma paciente de 21 anos, em quem realizou um aborto. Já libertada, continua processada. As feministas exigem o arquivamento de seu processo.

"Miranda garantia um direito em uma província onde as organizações 'antidireitos' são fortes. É uma forma de disciplinar os outros médicos", afirmou Sofía Fernández, membro da Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto.

A denúncia contra Ruiz foi a única este ano contra um profissional. "Houve 36 denúncias judiciais contra a lei, a maioria para que seja declarada inconstitucional. Delas, 24 já foram desconsideradas", explica Valeria Isla, diretora nacional de Saúde Sexual e Reprodutiva.

No entanto, a Campanha denuncia que ainda há mais de 1.500 pessoas com processos criminais por abortos e eventos obstétricos.

Por quase um século, desde 1921, a Argentina legalizava o aborto apenas quando a gravidez era resultado de um estupro ou apresentava risco de vida para a mulher.

Desigualdade

Em 2021, foram registrados no setor público 32.758 abortos, afirma Isla, para quem espalhar maciçamente o direito concedido pela lei e ampliar as equipes de profissionais são os desafios para 2022.

"Há uma brecha grande de desigualdade no acesso à prática de acordo com as regiões. Começamos com 943 equipes que prestavam esse serviço e atualmente há 1.243 equipes. Mas há pouca demanda e não conseguimos aumentar ao ritmo que precisamos, é um obstáculo estrutural", admite Isla.

O projeto "Olhar" do Centro de Estudos de Estado e Sociedade (Cedes), que monitora a aplicação da lei, afirmou que "ainda persistem as desigualdades, mas cresce o acesso" aos medicamentos para abortar.

Em 2021, o Estado distribuiu 43.283 tratamentos, contra 18.560 em 2020 e 9.000 em 2019, afirma Isla, embora nem todos sejam prescritos para abortar. Ainda falta distribuir o medicamento mifepristona, que ajuda a desprender o embrião.

Todas concordam que o maior obstáculo é a falta de divulgação desse direito.

"Um ano depois, não há campanhas de divulgação em massa do direito a abortar. Os espaços de saúde não possuem informações acessíveis, simples e compreensíveis, em diferentes idiomas e suportes para facilitar a solicitação e concretização do aborto", alertou a organização Socorristas em Rede.