Educar filho em casa é mais uma tarefa não remunerada para as mulheres
Mães que praticam o homeschooling têm maior propensão a exaustão física e emocional, mostra pesquisa americana
[Leia reportagem no site da Revista AzMina]
"O que me preocupava era estar perdendo a mim mesma. Desisti da minha carreira e dos meus hobbies quando as crianças eram muito novas. Dei a eles todo o meu tempo e a minha energia", conta a norte-americana Laura Sowdon, 40 anos. Ela e o marido optaram por educar os filhos Mya, Ian e Anna em casa. Enquanto o marido Richard Sowdon trabalha como gerente de finanças no serviço postal, Laura assume o papel de mãe, professora e dona de casa diariamente.
As famílias nos Estados Unidos que escolheram esse sistema de ensino, também conhecido como homeschooling, frequentemente deixam a educação nas mãos das mães, segundo Jennifer Lois, pesquisadora e professora da Universidade de Western Washington, que estuda o tema. Para ela, isso torna a pauta um assunto de gênero. No Brasil, há uma proposta de lei para regulamentar o ensino domiciliar e o exemplo dos EUA mostra que a tarefa deve ficar também nas costas das mulheres.
Em sua pesquisa, Jennifer participou de reuniões semanais de uma associação de pais que ensinam os filhos em casa, além de acompanhar a rotina de 20 mulheres. Entre mais de 600 famílias da associação, as mães eram maioria entre as representantes por serem as mais propensas a assumir o papel de educadoras.
E a divisão destes papéis frequentemente levam muitas delas à exaustão física, emocional e mental conhecida como Síndrome de Burnout, resultado do acúmulo excessivo de funções em situação de trabalhos que são emocionalmente estressantes. Pelo menos duas das 20 mães entrevistadas pela pesquisadora desenvolveram a síndrome.
Como consequência de ser a responsável pela educação dos dois filhos, a norte-americana Leanna (o estudo preservou o sobrenome das participantes) foi uma das mães que chegaram a este nível de esgotamento. Além de assumir o papel de professora, os cuidados com a casa ficavam inteiramente nas suas mãos devido ao trabalho em tempo integral do marido. A certeza de que estava fazendo a vontade de Deus a fez continuar independente da exaustão, "Sentimos que isso é o que Deus quer que façamos com os nossos filhos", contou à pesquisadora.
Mães como Leanna abandonam a vida profissional e fazem sacrifícios pessoais para poderem praticar o homeschooling. O perfil majoritário das entrevistadas pela pesquisa foram de mulheres brancas, casadas e de classe média, em que os maridos são responsáveis financeiramente pela casa, enquanto elas assumem os demais afazeres, como cuidado com as crianças, com a casa e a educação dos filhos.
A pesquisadora observa que mulheres que possuem expectativas de relações igualitárias são propensas a estar menos satisfeitas com o mesmo suporte dos maridos do que mães que não esperam equidade. "Eu diria que mesmo quando os maridos as apoiavam no ensino, as mães ainda tendiam a se sentir emocionalmente esgotadas, pelo menos em parte do tempo", explica.
A pesquisa aponta que quando as demais tarefas eram divididas entre os pais, estas mães estavam menos propensas a desenvolver a Síndrome de Burnout.
As razões que levam ao ensino em casa
De acordo com o Departamento de Educação dos Estados Unidos, cerca de 1,7 milhão de crianças recebiam educação em casa (ensinadas pelos pais ou professores particulares) em 2016, dado mais recente. Isso representa cerca de 3% dos estudantes de educação básica do país.
Entre as principais justificativas para a decisão de educar os filhos em casa estão a preocupação com o ambiente escolar (justificativa dada por 90% das famílias), seguida da necessidade de fornecer instruções religiosas ou morais (81%) e em terceiro lugar a insatisfação com a instrução acadêmica das escolas (74%).
Segundo a pesquisadora, o perfil das famílias que optam pelo ensino em casa é tradicional. Das famílias que ela estudou, quase todas eram brancas, de classe média e constituída por pais heterossexuais. Apesar da menor representatividade, famílias negras também optam pelo ensino domiciliar nos EUA. As razões, porém, se diferenciam das demais.
Muitos pais e mães afro-americanos decidem ensinar os filhos em casa para evitar que sofram racismo na escola. Por acreditar que crianças negras são "desassistidas" nas escolas públicas, Marciea Pinder, de 37 anos, decidiu educar Yazmine, Terryn e William em sua própria casa. "História negra é uma disciplina eletiva, enquanto a história europeia é uma exigência. Não é esta educação que eu desejo para meus filhos", explica.
As regras para o homeschooling nos EUA variam de acordo com o estado. A Associação de Defesa Legal do Ensino Domiciliar (HSLDA) divide os Estados entre baixa, média e alta regulamentação, além daqueles que não exigem notificação dos pais o governo para que os filhos sejam educados em casa. Dos 50 estados americanos, seis são de alta regulamentação (os pais passam por processos burocráticos para iniciar o método e, no geral, precisam aplicar testes periódicos aos filhos e reportar ao governo), outros 19 estados possuem regulação moderada e 25 têm baixa regulação.
A realidade do Brasil
Assim como nos EUA, são semelhantes os motivos que levam o governo de Jair Bolsonaro a propor um projeto de lei para regulamentar o ensino domiciliar no Brasil. A medida era uma das prioritárias dos primeiros 100 dias de governo e uma das principais metas do Ministério da Mulher, Família e dos Direitos Humanos. Grupos religiosos e conservadores são os principais entusiastas da pauta no Congresso, com a bancada católica e evangélica majoritariamente a favor, cujos parlamentares também defendem a Escola Sem Partido.
O Brasil não possui regulamentação sobre a educação domiciliar. Por conta disso, quem deseja educar os filhos em casa precisa pedir autorização da Justiça. A prática foi considerada ilegal pelo STF (Supremo Tribunal Federal) no fim do ano passado justamente por falta de regulamentação. Realidade que pode mudar com o projeto de lei apresentado ao Congresso pelo governo de Bolsonaro em abril.
O projeto do governo visa alterar a lei que dispõem sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e a lei que estabelece as diretrizes de educação no Brasil. Hoje, a Lei de Diretrizes e Bases Educacionais define que os pais devem "efetuar a matrícula de crianças na educação básica a partir dos quatro anos de idade".
Cerca de 7.500 famílias, com 15 mil estudantes, são adeptas à prática do ensino em casa no Brasil, de acordo com a Associação Nacional de Ensino Domiciliar (Aned) - o número equivale a 0,03% dos alunos do ensino básico no país.
O crescimento do número de famílias adeptas da prática foi de 2.000% entre 2011 e 2018. Segundo a associação, cerca de 60 países têm regras para a educação em casa, entre eles, os EUA, França, Portugal, México e Paraguai. Já em países como Alemanha e Suécia, a prática não só é proibida como considerada crime.
No Brasil, o ensino dos filhos também deve se somar às tarefas domésticas e os cuidados com a família que já estão a cargo das mulheres. O estudo Outras Formas de Trabalho, do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia Estatística de 2017, dividiu as tarefas domésticas em cinco grupos.
Entre eles estão o auxílio nas atividades escolares, no cuidado de pessoas, a preparação de alimentos, manutenção de vestimentas e reparos do domicílio. As mulheres são a maioria responsável em quase todos os indicadores, com exceção do último, que diz respeito à manutenção técnica e física da casa.
Considerando a experiência americana de homeschooling, usado como exemplo no projeto de ensino domiciliar do governo Bolsonaro, a pesquisadora Jennifer Lois considera que será um desafio adaptar à realidade brasileira.
"Imagino que em uma cultura com níveis altos de pobreza, a escolaridade obrigatória ajuda as pessoas a superar a pobreza e contribui para que mulheres controlem sua reprodução. Me parece que permitir que as mulheres se desvinculem da criação de filhos é libertador", analisa Jennifer.
"O ensino em casa é, na verdade, um luxo de famílias abastadas com pai, mãe ou pelo menos algum integrante da casa que possa arcar com os custos de manter um dos pais em casa." No Brasil, 26,5% dos cidadãos são considerados pobres, de acordo com a Síntese dos Indicadores Sociais, também do IBGE. De acordo com o Departamento de Educação dos Estados Unidos, em 2012 cerca de 83% das crianças e adolescentes educados em casa eram brancos, enquanto 89% deles foram identificados como não pobres.
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