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"Temos que tirar lições desta crise para combater desigualdades"

A matemática e filósofa Tatiana Roque, professora da UFRJ - Divulgação
A matemática e filósofa Tatiana Roque, professora da UFRJ Imagem: Divulgação

Por Letícia Ferreira

16/04/2020 15h45

E se qualquer cidadão tivesse dinheiro para garantir suas necessidades básicas de sobrevivência independentemente de ter ou não um emprego? De forma simplificada, é isso que a política de renda básica propõe: que a segurança social de uma pessoa não esteja necessariamente ligada ao emprego, como é hoje, o que deixa cidadãos que não têm oportunidades de trabalho em situação de vulnerabilidade.

A ideia de estabelecer a renda básica como uma política pública parecia algo utópico, mas a pandemia do coronavírus mostrou que ela é não só possível como também transformadora para combater desigualdades, e deve se tornar algo permanente, defende a filósofa e matemática Tatiana Roque, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e vice-presidente da Rede Brasileira de Renda Básica (RBRB). A entidade reúne ativistas e apoiadores de uma renda básica universal.

"Essa renda serviria como um colchão de proteção social. Porque [hoje] a segurança que as pessoas têm é pelo emprego. Se elas não têm emprego, elas não têm nada", explica Tatiana, que considera três meses de benefício insuficientes.

Com a pandemia, trabalhadores informais perderam sua fonte de renda com comércios fechados e a queda do movimento nas ruas. Como a economia brasileira é ainda muito informal, isso representa uma grande parcela dos trabalhadores: 41,3% da população ocupada no Brasil, segundo o IBGE. E mulheres (especificamente as mulheres negras) são a maioria entre os trabalhadores informais, entre elas empregadas domésticas, babás e cuidadoras.

A primeira resposta do governo de Jair Bolsonaro foi propor um voucher de R$ 200 por três meses para que esses trabalhadores ficassem em casa, mas graças à pressão da sociedade civil e da oposição foi aprovada uma renda básica emergencial de R$ 600, com o benefício em dobro para famílias lideradas por mulheres.

A medida contou com articulação e campanha da rede da qual Tatiana faz parte. Em entrevista à Revista AzMina, ela explica mais sobre a renda básica e por que ela deveria ser adotada como uma política pública permanente, para além da pandemia. Confira os principais trechos desse bate papo:

AzMina: Você acha que vamos sair melhores dessa crise enquanto sociedade?

Tatiana Roque: Eu gosto de dizer uma frase que nem é minha, que surgiu em algum grafite. "Não há volta ao normal porque o normal era o problema". Nós temos que tirar lições desta crise e ir em direção a políticas de combate às desigualdades e ter uma preocupação com o colapso ambiental, climático.

São os dois principais problemas do mundo e a renda básica é importante para os dois, principalmente a distribuição de renda e um modelo de desenvolvimento que não seja prejudicial ao meio ambiente.

O que é a renda básica?

É uma renda garantida incondicional, para todas as pessoas adultas, assim elas terão segurança de renda para a sua sobrevivência, independentemente de terem ou não um emprego. Elas poderão escolher melhor um trabalho ou fazer escolhas melhores de vida, para que possam ter mais estabilidade.

Essa renda serviria como um colchão de proteção social que não é necessariamente ligado ao emprego. Porque a segurança que as pessoas têm é pelo emprego. Se elas não têm emprego, elas não têm nada. Então que não seja só pela via do emprego e com isso as pessoas teriam mais autonomia em relação a ter um emprego ou ter um emprego qualquer. É nessa perspectiva de autonomia e liberdade.

Neste momento, com mais trabalhadores informais no mercado, pessoas que são autônomas e que não têm garantias, é preciso ampliar esse conceito de produção social que vem do trabalho para garantir um meio de renda. Além de educação e saúde pública gratuita, as pessoas precisam ter acesso a um meio de renda básica.

A aprovação da renda emergencial abre possibilidade para tornar essa política permanente?

A renda básica sempre foi vista como uma política utópica, agora ela é algo possível. O fato de ela ser implementada avança na direção de uma política que é transformadora como algo que não é algo utópico, que pode ser real, dá um mar de realidade para essa política que será muito oportuno.

Depois dessa crise do novo coronavírus, o mundo vai mudar. Alguma coisa vai mudar, o impacto tem sido muito grande. É preciso mudar numa direção de menos desigualdade, de mais justiça social, mais solidariedade, e a renda básica é justamente uma medida que vai nessa direção.

Como foi a articulação da renda básica entre as políticas públicas de enfrentamento à Covid-19?

Ficou muito nítido que o Brasil precisa de uma renda básica emergencial para enfrentar a crise, principalmente para que os mais pobres, informais e autônomos que não têm garantia de renda pudessem respeitar as orientações da Organização Mundial de Saúde e ficar em casa. Não adiantaria as autoridades pedirem para as pessoas ficarem em casa se os cidadãos não tinham como cumprir essa determinação.

Para enfrentar esta situação, nós organizamos uma campanha pela renda básica emergencial e nos juntamos a outras organizações (Nossas, a Coalizão Negra por Diretos, o Inesc e o Instituto Ethos) e fizemos essa mobilização que teve algum sucesso. Conseguimos muita coisa, mas ainda menos do que nós gostaríamos.

O que ainda falta?

Existiam duas questões. Uma era o prazo: três meses é muito pouco. Obviamente essa crise vai durar mais, e mesmo depois da crise nós vamos precisar de um período de recuperação. Em segundo lugar, nós não gostamos da proposta que foi aprovada com a exclusão dos trabalhadores formais, porque muitas pessoas com carteira assinada são muito pobres e complementam a renda da família com atividades informais. Excluir essas pessoas não foi muito justo.

A renda básica emergencial disponibiliza o valor em dobro para famílias monoparentais lideradas por mulheres, ou seja, para as mães solo. Por que isso?

Isso foi uma conquista realmente da nossa mobilização, que teve acolhimento de algumas deputadas da oposição. No início não tinha isso, eram R$ 600 por adulto. A mãe ganharia R$ 600 e uma família de pai e mãe ganharia R$ 1.200. Rapidamente as mulheres do nosso movimento perceberam e falaram: "Isso é injusto, e a mãe solo?" Então fizemos pressão junto com as deputadas da oposição. A Fernanda Melchionna (PSOL/RS), Jandira Feghali (PcdoB/RJ) e a Tábata Amaral (PDT-SP) foram bastante receptivas e ajudaram nisso.

Políticas de renda básica devem considerar as desigualdades de gênero e raça?

Eu acho que elas precisam considerar, principalmente no caso dos arranjos familiares. As famílias brasileiras mais pobres, em geral, são lideradas por uma mulher e na maioria das vezes por uma mulher negra. Essas pessoas estão à frente de arranjos familiares no Brasil e que, portanto, precisam ter um olhar especial. Essa renda precisa estar associada à essa mulher. Isso já é assim no Bolsa Família, que já encara a mulher como principal provedor da família, e no programa Minha Casa Minha Vida. E podemos fazer isso atribuindo uma renda maior para mulheres que são chefe de família.

Em outros países a renda básica foi a primeira opção de vários governos. Qual foi a dificuldade no Brasil?

Já se falava sobre renda básica em vários países do mundo e a gente [na Rede Brasileira de Renda Básica] acreditava que no Brasil ela iria entrar na agenda, nós não esperávamos que seria em uma pandemia como a que estamos vivendo. Essa agenda entrou na pauta em vários países, inicialmente para enfrentar a epidemia, mas acreditamos que isso vai acabar indo além.

Eu acho que no Brasil a principal dificuldade foi o governo, que primeiro queria aquela proposta horrível de voucher. Depois eles perceberam que a proposta de renda básica ia passar e tentaram dizer que a proposta era deles. O projeto do governo era muito ruim e era não uma renda básica. Depois veio a disputa com esse campo que ficou chamando a medida de coronavoucher. Isso não é só anedótico, mas um recurso para marcar a medida como algo transitório. Nós queremos que seja algo mais prolongado.

Chamar de voucher é uma maneira de dizer que vai acabar. Nós fizemos uma "batalha" nas redes, a economista Monica de Bolle foi uma aliada nisso. Eu e outras pessoas também argumentamos, para evitar que a imprensa chamasse a medida de coronavoucher.

A renda básica emergencial foi aprovada por três meses e pode ser estendida. Essa medida é suficiente para o contexto desta epidemia?

Acredito que essa renda básica emergencial deveria ser de seis meses com a possibilidade de ser estendida por mais seis e, assim, durar um ano. Queremos que essa seja uma política permanente, mas claro que não temos a ilusão de que vai existir só a partir da pressão dos movimentos sociais, vamos precisar de pressão popular.

Estamos chamando as pessoas no site da Rede Brasileira de Renda Básica para deixarem seu e-mail, pois queremos reunir voluntários, pensar em formas de mobilização para levar essa causa para frente. O ideal é que os beneficiados pela política de renda básica façam parte dessa luta. Sem mobilização não vamos conseguir que essa renda seja permanente.

Uma das dificuldades de distribuição da renda básica emergencial é o acesso ao cadastro por quem precisa. Como vocês analisaram essa questão?

Isso é um problema sério. Batalhamos para isso ser mais rápido. Uma coisa grave foi que o governo demorou muito para implementar o sistema. Agora o cadastramento está um pouco lento, mas está sendo feito. Para as pessoas que já estão no Cadastro Único, o dinheiro poderia ser depositado no dia seguinte após a aprovação da lei, no máximo em uma semana.

Existe também a dificuldade das pessoas que não tem acesso à internet, ou uma internet boa, que não têm CPF na família. Estamos em contato com alguns movimentos para ajudar no processo de cadastro.

Possíveis argumentos de quem é contra a política de renda básica são a questão da meritocracia e a defesa do estado mínimo. Você acha que o debate sobre as desigualdades, que ficaram mais evidentes na pandemia, pode ajudar a superar essas visões?

Acho que sim. A meritocracia é uma visão muito injusta e está associada a uma sociedade injusta. Um exemplo é a taxação de grandes fortunas e heranças de pessoas que acumulam muitas riquezas de uma forma desigual. Alguém que nasceu em uma família tem tranquilidade e uma pessoa que não nasceu não tem. Que meritocracia que tem nisso?

É algo que precisamos trabalhar melhor no discurso, mas eu acho que é um discurso que é possível desmontar, assim como do estado mínimo. Mesmo economistas que sempre defenderam o estado mínimo, a austeridade, que sempre foram fiscalistas, estão vendo que a intervenção do estado é importante para segurar a economia. Os economistas ficaram mais à esquerda nesse sentido.

Como você se envolveu com a questão de renda básica e com a Rede Brasileira de Renda Básica?

Na pós-graduação de filosofia, eu estudo alguns autores que trabalham com filosofia e política e que olham a questão do mundo do trabalho e como isso altera as visões das teorias da esquerda tradicional. Tem aí uma perspectiva de renovação da esquerda que tem falado sobre subjetividade.

Eu tenho uma linha de pesquisa que se chama capitalismo e subjetividade. Estudo como a subjetividade é um dos focos da atuação do capitalismo e agora do neoliberalismo. E essa questão do trabalho entra justamente aí. As mudanças no mundo do trabalho acabam criando um novo modo de se lidar com a subjetividade que muitas vezes a esquerda não enxerga e ainda fica insistindo na visão do trabalhador mais tradicional.

O que seria essa subjetividade no mundo do trabalho atual?

Normalmente, um trabalho está relacionado a um tipo de subjetividade. O trabalhador, por exemplo, é alguém que está associado ao trabalho da fábrica, que é coletivo, é um trabalho organizado. Um trabalho em que o trabalhador tem uma identidade com o seu ofício. Ultimamente isso vem mudando, e vem mudando também a questão da subjetividade.

Nos trabalhos realizados hoje em dia por conta própria, uma das tentativas é fazer com que os trabalhadores se vejam como empreendedores - empreendedores de si mesmo. Aquele que é responsável pelo seu sucesso e pelo seu fracasso. O que também gera muita culpa, pressão, gera responsabilização individual. E é dessa maneira que o capitalismo molda as subjetividades e isso tem mudado no campo do trabalho.

Por que a esquerda ainda não enxerga essa nova interpretação sobre subjetividade nas relações de trabalho?

Eu acho que é porque a esquerda é muito fixada na categoria do trabalhador nos moldes tradicionais. Um trabalhador que desenvolve suas atividades em um espaço e tempo determinado na fábrica, com horário de trabalho, equipamentos. A natureza do trabalho atualmente não tem um espaço e características tão bem determinadas. Os próprios trabalhadores que deveriam ser o principal sujeito político da esquerda não se identificam como trabalhadores. E esse é um problema que enfraquece bastante a esquerda.