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Como desmontei um esquema de fraude à Lei de Cotas

AzMina
Imagem: AzMina

Lindinês de Jesus Sousa

26/07/2023 04h00

Todos os dias, quando chego na faculdade de Medicina e entro na sala para estudar, eu reafirmo o compromisso com toda a minha comunidade. Digo para mim e para eles que eu vou ser aquela profissional que eu gostaria de ter conhecido. Quero que as pessoas pretas e pobres entrem e saiam da minha presença, como médica, dizendo: me sinto segura neste espaço, sou vista, essa pessoa se importa.

Recentemente acompanhei a minha professora de nefrologia até um laboratório do Sistema Único de Saúde (SUS) que trata pacientes com problemas renais, muitos deles negros. Foi importante interagir com eles, sentir que eu posso ser útil. A medicina, pra mim, é mais do que aquilo que eu ofereço para o outro, é aquilo que eu construo com o outro. É uma ponte.

Escutar, criar vínculos, conhecer as pessoas, ouvir suas histórias, isso é algo que mexe com o meu coração. Sem dúvidas, esse sempre foi o meu grande "porquê" na escolha do curso, sempre foi o meu propósito. E foi isso que me sustentou, quando as coisas ficaram nebulosas e tentaram me tirar do caminho (antes mesmo da entrada na universidade). Sim, essa história não começa agora.

Quase anularam meu sonho

Quando a lista de aprovados para cursar Medicina na Universidade Federal da Bahia (UFBA) saiu, mulheres brancas ocupavam as duas únicas vagas destinadas a pessoas pretas, pardas e indígenas. Na época, não existia "Comissão de Identificação Racial" para avaliar quem migrava de um curso para outro. Bastava se autodeclarar, ninguém ia ver se a informação era real. Elas aproveitaram disso e fraudaram a lei de cotas. Fui educada para me orgulhar de ser preta, mas nessas horas é difícil sentir qualquer coisa além de dor.

Lindinês quando criança - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Lindinês quando criança
Imagem: Arquivo Pessoal

Desde o primeiro ano do Ensino Médio, estudei muito para entrar em Medicina. Frequentei uma escola pública e fiz o que pude, mas o ensino era muito defasado. Não tinha professor de química, nem de física. O tempo sem aula era enorme e ensino superior não era um horizonte para nenhum dos meus colegas. Quanto mais eu me sentia em desvantagem, mais minha ansiedade aumentava e minhas notas caíam. A sensação é que eu só tinha uma chance, e tava perdendo.

Ao me formar, pedi para meu pai pagar um cursinho para eu tentar me preparar melhor. Eu gastava duas horas para chegar numa sala cheia de pessoas brancas, num ambiente em que eu não me sentia segura para tirar minhas dúvidas. Eu estava vendo várias matérias pela primeira vez. No fim daquele ano, prestei o vestibular de novo e não passei nem na primeira fase. Já era a terceira tentativa frustrada. Me senti envergonhada por ter feito meu pai gastar o dinheiro dele, e aceitei colocar um fim no meu sonho. Não ia passar em Medicina, tinha que fazer outra coisa.

Outro caminho

Acabei me candidatando para outros dois cursos: Farmácia e Bacharelado Interdisciplinar (BI) em Saúde. A lista de aprovação foi uma festa na minha casa. Fui a primeira da família a entrar numa universidade pública federal, a terceira no ensino superior. Embora eu não sonhasse em ser farmacêutica, fiquei feliz, porque era uma profissão em que não me faltaria emprego.

Lindinês e mãe - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Lindinês e mãe
Imagem: Arquivo Pessoal

Um dia, voltando da aula, minha irmã me ligou. A lista de aprovação para BI em Saúde tinha saído, e eu também passei. Ela estava eufórica, porque quem faz o bacharelado pode concorrer a uma vaga em Medicina após três anos, se tiver notas altas. O curso é muito concorrido, todo mundo dá o sangue para entrar. Larguei Farmácia e fui. Era a minha chance.

Passei a pesar 40 quilos. Ficava dias inteiros só bebendo água, sem comer, dormindo o mínimo, para conseguir estudar a maior parte do tempo. Competia com alunos que tinham formações e históricos muito diferentes dos meus. Como todo mundo queria se destacar, o ambiente era racista e hostil. Ainda assim, consegui manter minhas notas altas.

Estava perto de concluir o curso e disputar a vaga para Medicina, mas meu pai ficou desempregado. Eu fazia estágio no Hospital Geral do Estado da Bahia (HGE), e se me formasse perderia a bolsa. Peguei outras matérias para adiar minha formação e garantir a renda em casa por mais um ano.

O meu lugar

No início do ano seguinte, me inscrevi para esse processo seletivo interno. Coloquei Medicina como primeira opção, e como segunda, Odontologia. Quando o resultado saiu, eu estava na casa da minha vó. Eram poucas vagas para Medicina - e a lista mostrava as duas aprovadas: ambas brancas. Usando a Lei de Cotas. Ocupando lugares destinados a pessoas pretas, pardas e indígenas, que tinham estudado em escola pública, e acumulavam boas notas. Foi o meu lugar que elas pegaram, mas eu estava exausta de lutar.

Minha irmã pediu para eu contar o que tinha acontecido, desabei. Ela ouviu em silêncio, e disse: "entendo a sua exaustão e a sua dor. Então vou te dar duas opções: ou você abre mão da sua vaga - porque essa vaga é sua, e a gente enterra esse assunto; ou a gente vai atrás e só para quando conseguir". Decidi pela segunda opção. Eram 2h da madrugada, minha irmã ligou para um amigo, funcionário de uma universidade, e perguntou: fraude na lei de cotas, a gente resolve como? Montamos uma estratégia.

Família reunida - Olga Leiria | Ag. A TARDE - Olga Leiria | Ag. A TARDE
Família reunida
Imagem: Olga Leiria | Ag. A TARDE

No dia seguinte, às 8h, a gente estava na Ouvidoria da UFBA para protocolar a denúncia. Passamos pela Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Estado da Bahia e quando estávamos lá, o [jornal] Correio da Bahia ligou. Depois me colocaram no telefone com a fundadora do Coletivo de Advogados Negros, e redigimos um recurso para rever o processo seletivo. Toda vez que eu abria a boca para contar essa história, eu chorava muito, porque ser negro no Brasil é um trabalho não remunerado.

Ação coletiva

Na Defensoria Pública, me perguntaram se eu queria uma ação individual ou coletiva, e lembro de responder: não é mais sobre eu estar ou não em Medicina, é sobre as pessoas pretas privadas de entrar em seus cursos e empurradas para a permanência na linha da pobreza. Quero uma ação coletiva! Onde tiver fraude nessa faculdade, que se revele! Só tinha mulheres pretas na sala. Todo mundo chorou comigo.

Lindinês e sua avó - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Lindinês e sua avó
Imagem: Arquivo Pessoal

Antes que virasse uma ação, a Universidade Federal da Bahia emitiu um comunicado convocando todos os alunos que não tinham passado pela "Comissão de Identificação Racial" para a banca examinadora. Fui a primeira a entrar na sala. Estava com muito medo daquelas pessoas, podia sentir a negatividade no espaço, os olhares para mim. Meu rosto tinha saído no jornal, elas sabiam quem eu era. Muita gente foi com os pais, com os advogados, e com avós negros. Tinha muita gente branca. Fui a primeira a levantar e dizer: Me autodeclaro mulher preta.

Aí começou a pandemia e todos os processos pararam. Tive que esperar seis meses, até que em setembro de 2020 saiu a lista com meu nome, e na mesma linha estava escrito: Medicina. Todos os dias daquela semana eu fui para a casa de minhas mães - que é como chamo minha vó também. Assim que eu entrava lá, ela dizia: "vai ser doutora, vai ser doutora". "Doutora linda", era como ela me chamava.

Família reunida - Olga Leiria | Ag. A TARDE - Olga Leiria | Ag. A TARDE
Família reunida
Imagem: Olga Leiria | Ag. A TARDE

Pouco tempo depois, minha avó faleceu, mas teve a chance de viver esse sonho comigo. Eu sou um trabalho de muitas mãos. Sou todas as mulheres que vieram antes de mim e todas as que ainda virão. E digo em coro: vai ter Médica Preta, sim. Meu nome é Lindinês de Jesus Sousa, e eu fui educada para me orgulhar de ser preta.