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Por trás dos antidireitos na América Latina

AzMina
Imagem: AzMina

Nathalia Guerrero Duque

01/08/2023 04h00

O que têm em comum uma evangélica negra feminista chamada de "demônio" no Brasil, uma adolescente trans que sofre discriminação na escola da Colômbia e uma mulher trans presa numa "clínica de conversão" contra a sua vontade no Equador? O que une essas três histórias é a proliferação do discurso de ódio contra mulheres e pessoas LGBTQIAP+, algo que tem avançado nos últimos anos na América Latina. Uma forma de discriminação sistemática, online e offline, com um impacto profundo na vida de pessoas reais, como as histórias desta série de reportagens.

Esta investigação jornalística transfronteiriça é uma parceria da Revista AzMina com os veículos Edición Cientonce (Equador), Manifiesta e Andariegas (Colômbia).

Entidades como as Nações Unidas definem o discurso de ódio como "discurso ofensivo dirigido a um grupo de indivíduos, que se baseia em características inerentes, como raça, religião ou gênero, e que pode pôr em perigo a paz social". Para a Unesco, o discurso de ódio pode "estereotipar, estigmatizar e utilizar linguagem depreciativa". Por causa da expansão das redes sociais, esse tipo de discurso se intensificou e compreende hoje também conteúdos ofensivos online. Isso gera um debate sobre a forma de combater essas violências sem limitar ou proibir a liberdade de expressão.

Este trabalho jornalístico identificou estratégias narrativas comuns no Brasil, na Colômbia e no Equador, de discriminação contra mulheres e populações diversas e seus direitos fundamentais. Analisamos as redes sociais de perfis representativos de grupos que disseminam o ódio. Eles recorrem a narrativas que colocam crianças como "vítimas de sexualização" ou "doutrinação", usando hashtags como #ConMisHijosNoTeMetas (não mexa com meus filhos), semelhante ao movimento Escola Sem Partido, no Brasil.

Personalidades públicas e associações religiosas contrárias aos direitos das mulheres ou pessoas LGBTQIAP+ atribuem os avanços que ocorrem em diversidade e justiça sexual e reprodutiva à famigerada "ideologia de gênero". E equiparam o aborto à morte, ao assassinato e/ou ao genocídio, incitando à proibição total da interrupção da gravidez. Nos três países, constatamos a presença de material pedagógico contra o aborto baseado em preceitos cristãos.

"Cidadãos de bem" poderosos

São utilizadas figuras constantes de pais de família para justificar os discursos antigênero. Em Colômbia, Brasil e Equador, há uma autoidentificação desses grupos como "pessoas de bem", provocando uma desproporção com pessoas que são "diferentes" do padrão heteronormativo que defendem.

Os atuais porta-vozes de grupos antidireitos apresentam argumentos que falam da vida e da liberdade religiosa como direitos fundamentais, bem como alegações biologicistas com uma suposta defesa das mulheres. Se reúnem em associações com nomes como pró-vida, pró-família, unidos pela vida, etc.

Essas pessoas são convidadas para conferências, nacionais e internacionais, e até mesmo para a mídia, para apresentar suas posições. Não apenas têm presença religiosa no seu país, mas muitos são ou têm claros aliados políticos em diferentes instâncias de poder: congresso, conselhos, prefeituras, presidência, ministérios, entre outros.

Perseguição sem fronteiras

Estratégias comuns dos grupos antidireitos identificadas no Brasil, na Colômbia e Equador:

  • Uso da lei - por meio de ações judiciais coordenadas, silenciam agendas feministas e ativistas que lutam pelos direitos das mulheres e das diversidades;
  • O papel das escolas - organização de famílias e pais buscam banir a educação sexual e de gênero, transformando as escolas em campos de disputa política. A exemplo na Colômbia e Equador do movimento Con Mi Hijos No Te Metas; no Brasil, Escola Sem Partido;
  • Clínicas e redes antiaborto - com bases religiosas, organizações tentam mudar a opinião de mulheres que decidem abortar, ou promovem 'terapia de conversão' sexual. Também estimulam a objeção de consciência dos prestadores de serviços de saúde e o constrangimento de mulheres que abortam nas unidades de atendimento;
  • Vozes femininas - mulheres religiosas e políticas como Mamela Fiallo no Equador, María Fernanda Cabal na Colômbia e Ana Campagnolo no Brasil, se posicionam como porta-vozes de um discurso que demoniza o feminismo, o aborto e a luta pela identidade de gênero.
  • Influência política - deputados, senadores e vereadores representam grupos antidireitos nos espaços legislativos, propõem projetos de lei com argumentos biologicistas, que na verdade vão prejudicar mulheres. Eles se esforçam para tirar a palavra gênero de todas as políticas públicas.

Desinformação estratégica

Há uma dinâmica transversal do discurso de ódio digital nesses países latinos: desinformação sistemática para deslegitimar direitos como o acesso ao aborto e atacar populações divergentes. Um exemplo concreto disso nos três países são as ofensivas e mentiras contra cartilhas de "educação sexual".

As redes sociais tornaram a desinformação e a sua rápida disseminação online um dos principais instrumentos de propagação e consolidação do discurso de ódio. E vai além de uma informação imprecisa: busca enganar e disseminar, com o objetivo de causar efeitos concretos.

Organizações que defendem a liberdade de imprensa, como a Fundación para la Libertad de Prensa (FLIP) da Colômbia, afirmam que as estratégias de desinformação e o volume do discurso de ódio "geram riscos especialmente contra mulheres, pessoas transgênero e outras identidades de gênero e diversidade sexual, comunidades afro e indígenas que estão expostas à violência e ao assédio nas redes".

"Ideologia de gênero" contra direitos

Em cada um dos países analisados, a "ideologia de gênero" possui a sua própria história. O sociólogo e pesquisador brasileiro Rogério Junqueira afirma em seu artigo que essa expressão se opõe à legalização do aborto e do casamento igualitário, alémd e criminalizar a homotransfobia. Se baseia na ideia de uma "família natural" (heterossexual) que está ameaçada.

Mas nem todas as pessoas pertencentes a grupos religiosos se alinham com essa visão. A evangélica Simony dos Anjos - protagonista da história do Brasil - apoia o direito ao aborto. Por isso, é alvo de acusações infundadas e agressões que já a levaram a se afastar da vida pública.

No Equador, o termo "ideologia de gênero" ganhou força nos anos de 2010. Uma década mais tarde, cresceu com a ajuda de setores antidireitos, que reuniam católicos, evangélicos e outros atores antigos. Com a desinformação espalhada, em 2020, a legislatura equatoriana vetou o Código de Saúde Orgânica, que proibia clinicas e terapias para modificar a orientação sexual ou a identidade de gênero no país. Karlina Quiroz, uma mulher trans equatoriana - cuja história contamos nesta série -, acabou confinada à força em uma dessas "clínicas de conversão".

A Colômbia viveu sua batalha frontal contra os direitos das mulheres e a diversidade sexual e de gênero em 2016, durante a campanha do plebiscito sobre os acordos de paz entre o governo e as antigas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC). Os evangélicos, cristãos e pentecostais foram as principais forças a fazer campanha contra os acordos de paz. E o motivo era a "ideologia do gênero".

"Já não será (?) imposta às nossas crianças, através de uma cartilha, mas estará na Constituição. O governo e as FARC estão tentando fazer da ideologia de gênero uma norma constitucional", afirmava conservadores como o antigo procurador do país Alejandro Ordóñez. Essa visão continua a permear as escolas do país hoje, assim como no Brasil e Equador, onde se faz oposição à educação sexual. Meninas transgênero como a colombiana Luna - narrada pela reportagem -, sofreu violência no ambiente escolar devido à sua identidade de gênero.

*Esta reportagem transfronteiriça é uma parceria de AzMina com Manifiesta e Andariegas (Colômbia), Edición Cientonce (Equador).

O trabalho foi realizado por quatro jornalistas dos três países da América Latina, com apoio do Consorcio para Apoyar al Periodismo Independiente en la Región (CAPIR) e Institute for War and Peace Reporting (IWPR).

Os mentores desta investigação foram Martin Slipczuk, Patricia Curiel e Fernanda Aguirre. A responsável pela edição é Soledad Dominguez. Revisão e tradução em português: Juliana Delfino de Oliveira, Fernanda Rosa da Silva, Isabela Castilho, Joana Suarez e Ana Carolina Araujo. Designer: Ana Rodriguez