Homem pode ser feminista? Pesquisadora diz que sim, mas não tem jeito certo
Jade Santana;
de AzMina
12/08/2023 04h00
Os feminismos são complexos porque somos pessoas plurais. Muitas de nós acreditam na interseccionalidade, enxergam a raça como elemento central de nossas vivências e algumas até aliam vertentes religiosas à luta feminista. E uma questão que surge nos movimentos de mulheres, de tempos em tempos, é: "Afinal, homens podem ser feministas?".
Enquanto algumas feministas ainda descartam a possibilidade da participação de homens no movimento, nos anos 80, o feminismo negro já apontava para uma luta conjunta com homens negros. Para pensadoras como bell hooks e Angela Davis, a mobilização não poderia ser segregada se o seu objetivo final fosse a equidade de gênero.
Isabela Venturoza pesquisa sobre a relação entre homens e feminismos. Ela é professora na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) e doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E reflete sobre o que acontece quando masculinidades e homens passam a compor o cenário e a agenda das mobilizações feministas.
AzMina convidou Isabela para responder algumas perguntas recorrentes sobre homens no feminismo. Ela dá sua opinião de estudiosa no tema, entrega dicas de como podemos evitar que eles reproduzam machismo dentro do movimento, aponta como oferecer resistência aos discursos masculinistas e especula os ganhos para o feminismo a partir dessa cooperação.
Começando com o que queremos saber, os homens podem ser aliados no feminismo?
Isabela Venturoza: Eu caminho em uma perspectiva de que o feminismo é um movimento por equidade de gênero, por relações mais justas entre homens e mulheres e outros sujeitos. Nessa medida, não vejo a possibilidade de que a gente produza um mundo com mais equidade sem que os homens também se transformem com a gente.
Para algumas pessoas não faz sentido homens dentro do feminismo, pois ele foi pensado como movimento de e para mulheres. Atualmente, temos visto o crescimento de movimentos com posições que não acreditam que o feminismo pode ser encarnado por múltiplas identidades, então essa interdição não é só com homens cis, mas às vezes contra mulheres trans, pessoas não binárias. E já ouvi relatos de homens trans que faziam parte do movimento antes da transição e que não encontraram mais lugar naquele que foi um espaço de formação e construção para eles.
Gosto muito de um artigo do Tom Digby, um filósofo branco, estadunidense, que organizou uma coletânea sobre homens e feminismos chamada Men doing feminism. Ele fala que se uma pessoa é a favor de uma série de direitos que as mulheres reivindicam, então ela é feminista. Não é preciso tanta coisa assim para ser feminista. Ele faz essa discussão para apontar que ser a favor dos direitos humanos, ser a favor dos direitos das pessoas, é feminista.
Acredito, não só como pesquisadora, mas como ativista e feminista, que os homens - e pessoas de múltiplas identidades - não só podem, como devem ser feministas.
AZMINA: Mas o que significa ser um "homem feminista"?
Isabela: Existe um receio de como esse feminismo vai ser praticado por esses homens. Sobre o que eles estão chamando de "ser um homem feminista" e como eles podem, ao englobar o feminismo e se aproximar dele, acabar também tendo posições e práticas que não são nada feministas. Eles podem acabar reproduzindo relações de gênero desiguais - falar por cima das mulheres, explicar o que elas sentem, roubar lugares de visibilidade.
Não acho que existe uma resposta certa. Porém, acredito que um homem feminista é um cara que acredita e defende os direitos das mulheres, que admira e respeita mulheres, tem mulheres como referências. Que não tenta apagar as mulheres ou falar por elas, que compartilha a sua influência, que tem escuta para as mulheres.
São homens que pensam a masculinidade num outro lugar, e buscam produzir masculinidades não restritas àquele modelo tradicional. São os que olham para as questões relacionadas ao gênero e tentam não reproduzir o que aprenderam em diferentes espaços sociais. Eles buscam interpelar essas formas de ser de uma maneira crítica, e que aponte para relações de respeito, relações mais justas.
No fim do dia, ser feminista é se interessar e lutar por relações mais equânimes, independente do gênero que ela (a pessoa) se identifique. A luta não deve ser só do ponto de vista do gênero, mas de forma interseccional, pensando nas múltiplas formas de diferença e desigualdade.
AZ: Existe um "tipo ideal" de homem para participar desta luta ao nosso lado? Há uma forma de evitar falas e ações machistas vindas de homens dentro do movimento?
Isabela: Acho que não existe um homem ideal e não deve existir. Mas um aprendizado para a gente de uma postura feminista independente do gênero é a capacidade de escuta e diálogo, e de aprender com a diferença. Se existe o homem feminista ideal, é o que está bastante interessado na escuta. Um homem que está interessado não só em falar, explicar as coisas e ocupar um espaço de fala, mas também que possa ouvir. Mas essa idealização não é só para homens.
O feminismo não é um espaço só de convergência. A gente também briga, também discorda umas das outras. Por exemplo, tem colegas feministas que não fazem o feminismo no qual eu acredito e que são transfóbicas. Às vezes, vou fechar mais com um homem que escuta e entende as dores do próximo do que com elas. O meu feminismo é o feminismo da diferença, o feminismo da democracia radical da Judith Butler, no qual às vezes eu não entendo o outro. Não conheço esse outro completamente, mas defendo os direitos dele tanto quanto os meus. A gente não precisa mais desse feminismo de espelho.
A gente acaba aprendendo e tendo mais arsenal para se colocar no mundo de maneira menos violenta quando entende o que fere a outra pessoa, e passamos a usar esse conhecimento também para lutar junto.
AZ: Hoje em dia, muitos homens afirmam serem desconstruídos, mas acabam se tornando "esquerdomachos". Como homens que realmente querem ajudar no movimento feminista podem agir de forma mais responsável quanto à nossa luta?
Isabela: Um colega que é sociólogo trabalha com questões de classe e neoliberalismo, Túlio Custódio, foi convidado para fazer um Ted Talk em que ele faz uma diferenciação entre estética e ética. Acho que o esquerdomacho fica muito nesse campo da estética, no campo da aparência. Na superfície, ele é todo desconstruidão, respeita as mulheres, mas na hora do vamos ver, é um cara que não guarda coerência com a própria estética. A sua ética cotidiana não é tão fidedigna ao que ele discursa e projeta para o mundo.
Acho que talvez o melhor para a gente é que esse cara esteja menos interessado nessa dimensão estética, e muito mais atento às suas próprias práticas. Jonathan Crowe, professor de direito na Universidade de Queensland, na Austrália, fala que no final do dia não interessa o que alguém diz que é, se diz ser feminista, pró feminista ou aliado, mas suas ações interessam mais. Para esses homens, é preciso sair do plano discursivo e ir para o plano das práticas. Não interessa se você diz ser feminista e não luta cotidianamente com a gente, não só no Dia das Mulheres ou quando é conveniente para você, mas até quando é desagradável.
AZ: Se por um lado existe um movimento crescente de homens se desconstruindo, muitos movimentos masculinistas, como os red pill e os incel, também se multiplicam. O que explica esse aumento da reprodução coletiva do machismo e como combatê-la de forma organizada?
Isabela: Acho que esse crescimento é muito menos uma resposta à possibilidade de homens próximos aos feminismos, e mais uma resposta às movimentações pelos direitos das mulheres. A gente teve muito avanço e crescimento da visibilidade dos feminismos e de outros movimentos progressistas nos últimos anos. A gente conquistou bastante coisa, mas nossas conquistas incomodaram muita gente. Junto delas teve um avanço também do conservadorismo, de ultradireita, de uma série de posições totalmente contrárias às nossas pautas.
Embora essa discussão tenha crescido muito na última década, são poucos os homens falando de masculinidades de uma forma mais contínua, se comparado aos movimentos feministas. Acho que essa conversa é de todos, e que a gente é responsável coletivamente por fazer essa disputa no contemporâneo.
Na minha perspectiva, homens, mulheres e pessoas não-binárias têm que estar falando de masculinidades, tentando se contrapor a esses discursos masculinistas. Combatê-los é uma questão de ocupar espaço com conteúdos que contrapõem esse discurso de ódio. Precisamos de táticas, e isso implica também conversar com pessoas que às vezes nem são tão fáceis de dialogar. Acho que estar disposto a essas conversas é essencial e, nesse lugar, construir um letramento sobre direitos das mulheres e até sobre as questões dos próprios homens.
AZ: Quais são os ganhos da cooperação entre mulheres e homens para o movimento?
Isabela: Quando a gente tem homens próximos do feminismo, a gente tem circulando formas de conhecimento e de política importantes para a sociedade toda. Com isso, uma sociedade menos violenta e mais respeitosa à subjetividade e à vida das pessoas. Ter homens perto do feminismo significa uma mortalidade menor das mulheres, menos vítimas de outras violências. Significa homens percebendo suas posturas de gaslighting ou de mansplaining, por exemplo.
Talvez a gente até consiga diminuir os índices de homicídio e suicídio entre homens, porque que eles vão aprender a lidar com as próprias emoções e sofrimento, e vão construir uma rede de apoio para além da brotheragem. Os ganhos são comunitários, não são só para homens ou mulheres.
Matéria publicada orginalmente em AzMina.