Meninas e mulheres ficam desassistidas para realizar um aborto legal em SP

A Prefeitura de São Paulo deixou de oferecer atendimento ao aborto nos casos previstos em lei no Hospital Municipal e Maternidade da Vila Nova Cachoeirinha, zona Norte da cidade. A instituição é referência no país e um dos únicos serviços públicos que não colocava limite de tempo gestacional para a realização do procedimento.

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Segundo levantamento do Projeto Vivas e do Portal Catarinas, somente 4 dos serviços de referência do país interrompem gestações acima de 20 semanas no Brasil. A lei, vale lembrar, não estabelece limite de tempo gestacional para a interrupção legal da gravidez. Com o fechamento do serviço, histórias como a de Luísa* e Roberta* ficaram suspensas - fazendo com que elas vivessem a violência física, psicológica e institucional.

Patrícia*, mãe da adolescente Luísa*, de 15 anos, procurou o serviço de abortamento legal logo que descobriu que a filha havia engravidado após ser vítima de um estupro. Ela estava com 29 semanas de gravidez. Em casos de violência sexual é comum que o abuso demore a ser notificado e a gestação seja descoberta pela família e amigos em um estágio mais adiantado.

Patrícia chegou a procurar outro hospital de referência antes de ir ao Vila Nova Cachoeirinha, mas justamente pelo avanço da gestação da filha, elas foram encaminhadas à zona Norte da capital paulista.

Luísa* passou por todo o processo burocrático - veja aqui o passo a passo de um aborto previsto em lei - para a realização do procedimento e já estava com a data da interrupção da gravidez agendada, mas teve o procedimento cancelado e reagendado três vezes antes do fechamento total do serviço.

Sem a certeza de que conseguiriam prosseguir com o aborto em São Paulo, mãe e filha se deslocaram até a Bahia. "Passamos 2 dias e 5 horas dentro do ônibus. Lá ela realizou o procedimento graças à médica e uma pessoa maravilhosa que pagou as passagens. O que nós vivemos, não desejo para nenhuma família", contou Patrícia*.

Uma espera cruel

Outras meninas, mulheres e pessoas que podem gestar, no entanto, seguem na incerteza. Roberta*, de 36 anos, também foi vítima de violência sexual e está com 7 semanas de gestação. Assim como Luísa*, já havia iniciado o processo para a interrupção da gravidez no Hospital de Vila Nova Cachoeirinha. Conversou com enfermeiras, assistente social e fez um relato de próprio punho da violência que sofreu, o chamado Termo de Relato Circunstanciado.

Nesta semana, Roberta* tinha um atendimento marcado com a médica ginecologista e foi informada de que talvez pudesse sair de lá com o procedimento realizado. Chegou a levar uma troca de roupa, absorventes, etc. Mas quando chegou ao hospital, recebeu a notícia do fechamento do serviço de abortamento legal.

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Encaminhada para outra unidade, agora precisa recomeçar o processo. "Não me senti tão bem recebida nesse novo hospital, senti uma desconfiança. E relatar tudo de novo também me traz muitos gatilhos, preciso lembrar de muitas coisas", desabafou. Roberta* ainda não sabe quanto tempo demorará para acessar o direito ao aborto.

Telemedicina e AMIU

O fechamento do serviço de abortamento legal no hospital também impacta de outras maneiras a vida de meninas, mulheres e pessoas que podem gestar, que têm o direito de interromper sua gestação. O Vila Nova Cachoeirinha era o único hospital em São Paulo que oferecia atendimento por telemedicina, e várias mulheres preferem fazer o procedimento assim. "São mulheres que pegavam o medicamento e faziam o aborto em casa. Isso confronta o que a Prefeitura diz, de que o fechamento é para remanejamento de demandas de cirurgias eletivas", explicou Rebeca Mendes, criadora do Projeto Vivas, organização que auxilia mulheres a realizarem o aborto legal dentro e fora do Brasil.

Hoje, são apenas oito centros especializados no Brasil que oferecem o procedimento via telemedicina.

Rebeca também conta que o fluxo entre a unidade Vila Nova Cachoeirinha e a Defensoria Pública funcionava muito bem, e que o hospital era referência nos casos de aborto legal por anencefalia e má formação fetal. Além disso, era o único da região Sudeste que realizava o procedimento em gestações de terceiro trimestre. "Isso impacta muito na vida das meninas de menos de 14 anos", lamenta Rebeca. Atualmente, no Brasil, a interrupção legal é prevista em lei em três casos: estupro, risco de morte da mulher e anencefalia.

Veja mais: https://www.youtube.com/watch?v=oeZpJfwzgZw

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O hospital também havia retirado a curetagem do seu rol de procedimentos para casos de aborto, e usava Aspiração Manual Intrauterina (AMIU) e dilatação e evacuação em gestações menos avançadas, o recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). A reportagem d'AzMina já mostrou que 90% dos abortos atendidos pelo SUS são feitos com curetagem, um procedimento cirúrgico e invasivo, ultrapassado, que coloca em risco a vida de mulheres. "Agora as pacientes não têm mais essa opção (de uma unidade que realize tratamentos melhores)", destacou Rebeca.

Justificativa para desassistência

AzMina entrou em contato com o Hospital Municipal e Maternidade da Vila Nova Cachoeirinha por telefone e pelo WhatsApp oficial da instituição. "Neste momento nosso serviço de interrupção da gestação não está funcionando, mas, você pode procurar estes outros serviços", informou o hospital em mensagem, indicando a lista de unidades.

A partir de agora, o hospital somente faz o primeiro atendimento às vítimas de violência sexual e indica outras quatro instituições municipais para o aborto legal. São eles: o Hospital Municipal e Maternidade Prof. Mario Degni, o Hospital Municipal Tide Setúbal, o Hospital Municipal Dr. Fernando Mauro Pires da Rocha e o Hospital Municipal Dr. Carmino Caricchio.

Pedimos à Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo (SMSP) um posicionamento oficial sobre a interrupção do serviço, mas até o momento não tivemos retorno. O órgão afirmou a outras instituições que a paralisação do serviço é para que "sejam realizadas no local cirurgias eletivas, mutirões cirúrgicos e outros procedimentos envolvendo a saúde da mulher". No entanto, não foi dito se o serviço seria retomado.

O Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem) da Defensoria Pública de São Paulo, enviou um ofício ao secretário municipal da Saúde, Luiz Carlos Zamarco, pedindo esclarecimentos e "imediato recredenciamento" do Hospital Cachoeirinha como referência para realização de aborto legal. O Nudem ainda está entrando em contato com as pacientes que já tinham iniciado o atendimento para garantir o procedimento. Dois casos foram transferidos para outra unidade paulista.

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Vítimas de estupro sem atendimento

Em ofício, o Nudem alerta que o fechamento de serviço de referência de aborto legal vai na "medida oposta da necessidade de criação de políticas públicas para o enfrentamento do problema do aumento dos crimes de estupro." No ano de 2022, o número de registros de crimes de estupro de vulnerável - vítimas menores de 14 anos - foi o maior da história do Brasil, 56.820 vítimas, representando 75,8% do total dos casos de estupro já noticiados, conforme o Anuário Brasileiro de Segurança Pública do ano de 2023.

"Essa interrupção do nada de um serviço sem uma justificativa plausível pode representar um retrocesso no direito de mulheres e meninas", afirmou Tatiana Bias Fortes, coordenadora do Nudem. Ela ressalta que a limitação de idade gestacional para abortos legais não está prevista na lei. A Rede Médica pelo Direito de Decidir já apontou o quanto o procedimento do aborto, mesmo nas idades gestacionais mais avançadas, é marcadamente mais seguro que um parto. A entidade emitiu nesta quinta-feira nota de repúdio pelo fechamento intempestivo do Serviço de Atenção a Mulheres e Meninas vítimas de violência sexual e de interrupção da gravidez, prevista em lei do Hospital referência de São Paulo.

"Ressaltamos a relevância da Maternidade Escola na formação de profissionais de saúde especialistas em ginecologia e obstetrícia e de residência multiprofissional, por meio da qualificação no atendimento à mulher em toda sua complexidade e dimensão", diz um trecho da nota. A Rede aponta ainda o impacto que o fechamento do serviço terá para mulheres pobres e periféricas, "justamente o público majoritário no Hospital Municipal e Maternidade da Vila Nova de Cachoeirinha."

Movimentos Sociais e Organizações da Sociedade Civil em prol dos direitos sexuais e reprodutivos se manifestaram pela previsível desassistência às vítimas de estupro de São Paulo. Há uma petição pública para apoiar a reabertura imediata do serviço.

Mais informações sobre hospitais que realizam o procedimento em casos previstos em lei podem ser encontradas no Mapa do Aborto Legal, da Artigo 19.

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*Os nomes das meninas e mulheres citadas nesta reportagem são fictícios para garantir sua privacidade e segurança

Matéria publicada originalmente em AzMina

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