Legislação brasileira é insuficiente na proteção do abuso infantil
*Alerta: esse texto contém relatos de violência sexual
Quando era menor de idade, a jornalista Rafaela* foi levada a um motel duas vezes pelo seu "genitor" (estuprador não é pai). Os abusos que ela sofreu na infância eram constantes. Só em 2021, quando sua mãe faleceu, ela teve coragem para denunciá-lo - 14 anos após o abuso. Mas o crime já havia prescrito. "Sinto que o que eu passei não importa para a justiça", diz. E pergunta: "Tem prazo de validade o abuso e a dor que senti?"
Apesar dos avanços legislativos no enfrentamento de crimes contra adolescentes e crianças no Brasil, ainda existem barreiras no acesso à justiça e na prevenção de estupros de menores. Somente no carnaval deste ano, foram registradas 73,9 mil violações no período de 8 a 14 de fevereiro. Desse número, foram mais de 26 mil casos de violências sexuais físicas - abuso, estupro e exploração sexual - e psíquicas contra crianças e adolescentes.
Ainda jovem, Rafaela contou para uma amiga sobre algumas atitudes abusivas do seu pai, e a sua mãe acabou tomando conhecimento da situação por meio da tia desta menina. O agressor e a mãe tentaram abafar a situação. Em uma reunião no grupo espírita que frequentavam, em Pernambuco, insinuaram que "maus espíritos" estariam utilizando a amiga para atrapalhar a imagem da instituição.
"Confrontei a minha mãe, mas fui ameaçada psicologicamente, e antes da minha formação na faculdade surgiu a ideia de que eu fosse passar um ano no exterior", comenta a jornalista. O intercâmbio no Canadá tinha a intenção de afastá-la para ela não relatar o ocorrido e impedi-la de denunciar o pai. Lá, ela ficou por 9 anos até retornar ao Brasil para fazer a denúncia.
Como funciona a prescrição de crimes de estupro no Brasil hoje (2024)
A Lei Joanna Maranhão, de 2012, aumentou o tempo de prescrição do crime de estupro de vulnerável e contra menores de idade para 20 anos. O prazo passa a contar quando a vítima completa 18. Então, no caso de um abuso que ocorreu em qualquer idade antes dos 18, é possível realizar a denúncia até os 38 anos. Mas isso só vale para as violências datadas a partir de 2012 (ano da lei).
Para os abusos infantis anteriores a data da legislação e os crimes de estupro cometidos contra vítimas adultas, segue valendo o prazo de 16 anos para prescrição. Com essa lacuna na lei, muita gente segue sem o direito de denunciar, como Rafaela e a própria Joanna Maranhão.
O aumento do tempo de prescrição para menores de idade foi uma conquista da ex-nadadora e ativista pernambucana. Joanna trouxe a público os crimes que sofreu em 1996, cometidos por seu antigo treinador durante a infância, mas que já tinham prescrito quando ela denunciou. Joanna enfrentou uma batalha legislativa que culminou na mudança do código penal brasileiro, com a criação da Lei Joanna Maranhão, que completa agora 12 anos.
Mas o art. 5º da Constituição Federal de 1988 afirma que normas não têm efeito retroativo e isso tem sido um entrave na aplicação da lei, como foi no caso da jornalista Rafaela, que foi violentada desde os 5 anos de idade até 2007.
Mesmo com a existência da lei, a impunidade segue presente pela irretroatividade da lei e pela prescrição. Repercutiu recentemente no judiciário o caso do treinador de futebol Alexi Stival, o "Cuca", que respondia pelo crime de estupro de uma criança de 13 anos, cometido em 1987 na Suíça. A justiça brasileira anulou a condenação esse ano devido ao prazo de prescrição. A vítima morreu aos 28 anos em circunstâncias não especificadas.
Por que não é tão "simples" denunciar?
Oito em cada 10 mulheres vítimas de estupro não procuram atendimento, segundo pesquisa dos institutos Patrícia Galvão e Locomotiva. Isso significa que apenas 5% das vítimas foram à polícia e a uma unidade de saúde. Para Marina Ganzarolli, existem diversas razões que levam as vítimas a tardar ou não denunciar seus algozes. Uma delas é a relação afetiva com o abusador, que "gera uma confusão no cérebro da pessoa."
Michele*, natural do Maranhão, hoje com 33 anos, foi estuprada por dois familiares e um pastor de igreja evangélica dentro de casa. Os abusos começaram aos seus 8 anos e se perpetuaram durante sete anos. A casa dos seus pais sempre hospedava muitas pessoas, entre elas, os abusadores. "De madrugada eles iam até a mim, eu dormia em uma rede no corredor".
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Quero receberCom família de base evangélica, era tabu falar de menstruação, namoro e sexo, gerando medo e culpa de contar sobre os abusos. "Se eu falasse: 'mãe, o tio passou a mão em mim', eu ia estar inventando uma história, ia ser mentira", partilha Michele.
A jornalista Rafaela também teve dificuldades de buscar ajuda no ambiente doméstico: "como eu ia fazer uma denúncia antes, se eu morava com os dois ['pai' e mãe] e passava por toda uma lavagem cerebral dentro e fora de casa, naquele centro espírita?" Mesmo adulta, Rafaela ainda tinha medo do que pudesse acontecer com sua mãe caso ela denunciasse.
A barreira do ambiente "familiar"
Considerando que a maioria dos casos de estupro ocorre no ambiente familiar, para a criança chegar a contar a alguém de confiança que possa ajudar, é um processo que pode levar tempo. Isso não significa que elas não resistam de algum modo. Rafaela contou para amigas e familiares em momentos distintos. Michele tentou matar um dos abusadores com uma faca. O algoz contou para mãe de Michele sobre a tentativa de assassinato — e ela apanhou.
"Para mim o mais difícil era chegar no café da manhã e ter que pedir benção, beijar na mão e sentar no colo dessas pessoas", relata. Michele contou para família sobre o que sofreu por parte de um dos abusadores quando veio a tona que ele tinha sido preso por estuprar outra menina. "Meu pai ficou em choque, mas fez de tudo, até pagar advogado para ajudar o abusador." Ela sente que não pode confiar no judiciário, "a justiça não tem a capacidade de me proteger, por isso eu fico calada."
Thais Bandeira, professora de Direito Penal e Conselheira da Ordem dos Advogados da Bahia (OAB-BA) reforça que uma série de fatores, além do medo, da culpa e da falta de confiança na justiça, impossibilitam que o crime de estupro contra a menor seja denunciado. "Como se passam muitas vezes nas relações familiares, podem vir acompanhadas de chantagens, ameaças e outras estratégias de silenciamento."
Muitas vezes, somente será possível que a vítima reconheça e busque por justiça anos depois, quando já é adulta, o que dificulta a punição do crime. "A criança e adolescente não vai lembrar do caso por conta do trauma, o abusador já pode estar idoso, então será difícil construir as provas", aponta Thais.
Luta para tornar imprescritível
Rafaela participa ativamente de conversas, tanto com a Comissão de Cidadania, Direitos Humanos e Participação Popular, da Assembleia Legislativa de Pernambuco (ALEPE) e com membros do parlamento, buscando alternativas para que haja uma revisão na legislação sobre crimes de estupro de vulnerável. Ela tem recebido mensagens de outras mulheres que também estão passando por situações semelhantes, vítimas de crimes que prescreveram ou vão prescrever. "Saber que isso continua acontecendo é inaceitável."
Em razão da grande subnotificação que ainda existe para os casos de abuso sexual de menores e da denúncia comumente tardia, a advogada Marina Ganzarolli defende que o crime se torne imprescritível, apesar de não se considerar punitivista. "Considerando a cultura do estupro, é quase uma reparação histórica que o legislativo deveria corrigir", afirma Marina, especialista em Direito da Mulher e Diversidade, idealizadora do MeToo Brasil, iniciativa de enfrentamento ao assédio sexual e cofundadora da deFEMde - Rede Feminista de Juristas.
Acabar com prazos e permitir a denúncia a qualquer momento é tema de debate na ciência criminal e no Legislativo. O projeto de lei (PL 5102/2020) de autoria do deputado Guiga Peixoto (PSL/SP), tramita na Câmara dos deputados para tornar o crime de abuso sexual de vulnerável imprescritível.
Na esfera cível, em relação à reparação civil das vítimas (pagamento de indenização), tramita no Senado o Projeto de Lei (PL nº 4.186/2021), de autoria da deputada federal Sâmia Bomfim. O PL fixa em 20 anos o prazo prescricional de crimes de estupro contra vulnerável a partir dos 18 anos da vítima.
Falta educação sexual e conscientização
As especialistas e as vítimas ouvidas nessa reportagem acreditam que a educação sexual integral pode ajudar a evitar os abusos, mas o tabu em torno do tema ainda impossibilita essa prevenção. A educação é insuficiente quando feita só nos lares, considerando que cerca de 80% dos casos de abuso acontecem no ambiente familiar, segundo Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos.
Seja em nome da religião ou da romantização da família, evitar a educação sexual é muito perigoso. "Minha mãe me silenciou por medo do 'escândalo'", comenta Rafaela. Para ela, parentes e demais adultos do entorno da criança têm a responsabilidade de buscar mais informações e fazer perguntas aos menores de idade quando houver uma comunicação ou uma percepção sobre um comportamento estranho dentro, ou fora de casa. "A criança precisa de alguém que diga: 'eu te apoio!'", opina.
Nem sempre centros religiosos são espaços seguros também para vítimas buscarem apoio. No caso de Michele e Rafaela foram impeditivos. Rafaela foi culpabilizada pela sua mãe por "não ter evitado o abuso". Foi vilanizada por um membro do grupo espírita como se ela estivesse sendo vingativa por querer justiça. A crença na reencarnação foi usada para justificar o abuso. "Ele me disse que eu era rancorosa, e que o abuso que vivi era resultado de algo que fiz em outras vidas."
Semelhantemente, para Michele, a religião foi um espaço de silenciamento, assim como para outras pessoas de seu círculo social. "Não deixam falar com ninguém e dizem 'vamos orar, colocando culpa no diabo'", diz.
A advogada Thais acredita na educação sexual e conscientização dentro das escolas para criar uma confiança entre as menores e a instituição. As meninas precisam se sentir à vontade para contar o abuso para uma coordenadora ou professora, "porque as famílias acobertam e muita coisa não chega aos conhecimentos do Estado", diz.
Quando há leis, não são aplicadas
De maneira geral, o Brasil é amparado legislativamente para proteção de crianças e adolescentes, principalmente na defesa e enfrentamento de crimes contra a dignidade sexual de vulneráveis. Corrigiram-se lacunas como a de 2009, quando proibiram o casamento de menores de 14 anos. Antes disso, se a menor tivesse grávida, estaria emancipada para casamento. Também existe aparato judicial, com delegacias especializadas e varas de violência de criança e adolescente. "Tem estrutura, mas falta provocação", comenta Thais Bandeira.
Em 2018, houve outro avanço na legislação, o crime de importunação sexual, foi considerado um problema de interesse do Estado e do Ministério Público, assim como a divulgação de cena de estupro de pessoa adulta ou vulnerável e de pornografia. Portanto, o problema não se restringe ao âmbito do legislativo, mas para as leis serem aplicadas é preciso acessar a justiça. "Isso tem um custo material, econômico, emocional além do privilégio de conhecimento de entender como a estrutura da justiça funciona", opina Marina Ganzarolli.
Existe também no Brasil um Sistema de Garantia de Direitos de Crianças e Adolescentes com atendimento especial a crianças vítimas de violência e Conselhos Tutelares. Mas, esses espaços estão sendo sistematicamente ocupados por representantes de igrejas evangélicas e católicas, que não estão necessariamente interessados na aplicação da lei. "É a catequização das famílias e o controle moral de suas decisões", sugere Marina.
Segundo a idealizadora do MeToo, a resposta do Estado e da justiça brasileira na proteção de mulheres e meninas ainda é ineficaz. O legislativo faz o seu trabalho, mas, na prática, isso não se aplica. "Há até um excesso desse poder, novas leis são feitas para afirmar o que outra lei já falou", afirma Marina.
Para ela, no caso de abuso sexual de vulneráveis, além de torná-lo crime imprescritível, uma das soluções para melhor proteger as vítimas é investir e desenvolver recursos humanos e materiais das redes de acompanhamento e acolhimento.
Como denunciar e buscar ajuda:
Qualquer pessoa pode realizar denúncia de abusos sexuais contra menores pelo "disque denúncia", o número é 181, ou 180 para os casos envolvendo Violência Contra a Mulher. A identidade da pessoa denunciante pode ser mantida em sigilo. Consulte também os endereços de delegacias especializadas no Mapa das Delegacias da Mulher. Além disso, hospitais e postos de saúde públicos devem dar apoio imediato a qualquer pessoa que se apresente dizendo que foi violentada e que precisa de ajuda.
Matéria publicada originalmente em AzMina
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