Projetos de 2023 prepararam terreno para PL que equipara aborto a homicídio

O debate em torno do PL 1904/2024 para equiparar o aborto acima de 22 semanas de gestação ao crime de homicídio é parte de um movimento contra os direitos das mulheres comandado pela extrema-direita no Brasil. A comoção causada pela proposta de penalizar mais a vítima do que o estuprador é coerente com o perfil do Congresso Nacional na atual legislatura, de maioria conservadora.

É o que mostraremos nessa reportagem, primeira da série análises da nova edição do Elas no Congresso com dados de 2023. Desde 2020, o projeto do Instituto AzMina acompanha a atividade legislativa sobre direitos das meninas, mulheres e pessoas LGBTQIAP+, discute os avanços e retrocessos, e mostra um ranking de atuação dos parlamentares e partidos em relação a estes temas de interesse.

Tentativas de penalizar o aborto, seguidas de propostas sobre gestação, parto e maternidade foram maioria entre os 94 projetos de lei relacionados a Direitos Sexuais e Reprodutivos protocolados na Câmara dos Deputados e no Senado em 2023, primeiro ano da atual legislatura. Se aprovadas, metade das propostas podem ajudar diferentes perfis de famílias, mas a outra ameaça direitos, inclusive os já conquistados.

A análise é resultado da nova edição do Elas no Congresso, projeto do Instituto AzMina que acompanha a movimentação legislativa federal sobre gênero. Dessa vez, a agenda esteve dividida principalmente entre avanços nos temas de maternidade e retrocessos na discussão sobre aborto.

Ofensiva antidireitos

As tentativas de influenciar a regulamentação — ou a criminalização — de qualquer tipo de interrupção da gravidez no Brasil se concentram em projetos considerados desfavoráveis aos direitos femininos. São 42 proposições sobre o assunto, mas só três carregam avanços para garantir um procedimento digno às pessoas gestantes.

Outros 39 atacam o direito ao aborto de forma variada, sendo protagonizados principalmente por homens — que são, também, quem detém o maior número de cadeiras no Legislativo federal. Somando Câmara e Senado, o Congresso Nacional tem hoje 488 homens e 106 mulheres.

A tendência conservadora verificada nas eleições de 2022 influenciou diretamente a agenda. Partidos com grandes bancadas protagonizaram o movimento pela retirada de direitos: PL, Republicanos, União Brasil e Podemos. Entre os parlamentares, o senador Eduardo Girão (NOVO-CE) foi quem mais participou de projetos sobre o tema - com seis coautorias -, seguido pelos senadores(as) Damares Alves (Republicanos-DF) e Carlos Viana (Podemos-MG), e pelos deputados(as) Helio Lopes (PL-RJ) e Christine Tonietto (PL-RJ), co-autores em 4 PLs cada um.

Clara Wardi, assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), reforça o fortalecimento da extrema-direita no Congresso, apesar da vitória progressista no Executivo. "A agenda de Direitos Sexuais e Reprodutivos não tem sido prioridade desse governo [federal], apesar de, no começo, ter sido feito um aceno muito positivo — revogou algumas portarias que fragilizavam o direito ao aborto legal e saiu de convenções internacionais como o Consenso de Genebra, redirecionando o Brasil internacionalmente e se alinhando mais aos direitos humanos" analisa.

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Cruzada antiaborto

Essa ofensiva se concentrou no segundo semestre de 2023, período de intensa discussão sobre o tema, catalisada pelo voto da então Ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, relatora da ADPF 442 pela descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. "A ação está parada e a gente teve uma série de reações no Congresso, com a extrema-direita pautando audiências públicas para propagar desinformação e fortalecer as ações que já existiam junto ao STF, acusando o Supremo de ativismo jurídico e tentando restringir o alcance dos ministros", lembra Wardi.

A professora Taysa Schiocchet complementa que, na época, a resposta social e política ao voto da relatora veio também na letra da lei. "Notamos grande capacidade de proliferação desses PLs anti-aborto, similar ao que já se viu em debates anteriores sobre a discussão de gênero. Eles são facilmente replicáveis e pode ser que eles utilizem o mesmo modelo de projeto, para facilitar a tramitação". Ela ressalta que a entrada do Judiciário no debate sobre a descriminalização do aborto no Brasil é recente, e impôs desafios adicionais à militância.

Os movimentos sociais são demandados a incidir também no campo judicial, mas o parlamento segue sendo disputa, como evidenciam os dados do Elas no Congresso. No Legislativo, as bancadas conservadoras demonstram uma frente ampla anti-direitos, que inclui elaboração coletiva de matérias, promoção de audiências públicas e atuação nas comissões parlamentares, advogando pela penalização do procedimento que deveria ser um direito.

GRÁFICO 2

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Os riscos de retrocesso

Nos países da América Latina onde o aborto foi descriminalizado nos últimos anos, a mudança veio a partir de extensos programas de educação e desestigmatização do procedimento. Contudo, no contexto brasileiro atual, segundo a professora Taysa, a polarização e a desinformação criam ainda mais entraves para o debate. "Hoje o cenário não é de estagnação, é de retrocesso. Além de não avançar, a gente tem agendas que tentam limitar e dificultar mesmo os casos que já estão previstos na legislação".

E os ataques não param. Em abril de 2024, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou a Resolução n.º 2.378/2024, para proibir médicos de realizar a assistolia fetal, passo necessário à interrupção da gravidez acima de 22 semanas em casos decorrentes de estupro. A medida foi derrubada pelo STF no dia 17 de maio.

Poucas semanas depois, em junho, a bancada conservadora da Câmara se articulou para votar em caráter de urgência o PL1904/2024, que equipara o aborto ao crime de homicídio e estabelece uma verdadeira caçada às pessoas que gestam no Brasil. "O Congresso elegeu a dita 'pauta moral' como agenda para mobilizar o eleitorado, pois inclui pautas que mobilizam muito os afetos e são estratégicas. Esse contexto faz com que o principal desafio seja a própria manutenção dos direitos já conquistados", completa Clara Wardi.

Para ler mais sobre o contexto do aborto legal no Brasil, acesse o site da Revista AzMina especializado sobre o tema, o Aborto no Brasil. Acompanhe também outros conteúdos sobre a atuação do Legislativo no site do Elas no Congresso.

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Trabalho de cuidado e violência obstétrica

Entre os PLs, 47 versam sobre parto, gestação, maternidade, adoção e cuidados neonatais, 40 foram avaliados positivamente. Uma das principais preocupações dos(as) parlamentares foi com a licença-maternidade e a licença-paternidade. Foram 11 PLs sobre este assunto, com foco em aumentar o período de afastamento remunerado da pessoa gestante e do(a) companheiro (o) ou associar outros benefícios à licença.

Numa entrevista à Revista AzMina em 2023, a deputada Luísa Canziani (PSD-PR) explicou que o planejamento da bancada feminina no ano era se concentrar em temas onde havia mais consenso, como as licenças parentais.

Outros textos legislativos chamam a atenção no escopo dos Direitos Sexuais e Reprodutivos, sugerindo, por exemplo, garantir a presença de doulas no parto e dar prioridade na assistência psicológica a mulheres que sofreram óbito perinatal, aborto espontâneo ou aborto legal voluntário.

Clara Wardi observa que, recentemente, a maternidade vem sendo tratada a partir de uma perspectiva de reconhecimento do cuidado enquanto um tipo de trabalho, ao menos por uma parte minoritária do Congresso Nacional. Ela comenta que o debate da violência obstétrica também foi abraçado por parlamentares em discursos e proposições legislativas, por parlamentares de esquerda, centro e direita, principalmente as mulheres e as feministas, que são a minoria nas duas casas.

"Todo o trabalho que os movimentos de mulheres, as feministas e as organizações da sociedade civil têm feito junto da área da saúde têm trazido frutos", afirma, lembrando ainda que a legislatura atual (2023-2026) marcou a criação da Comissão Especial de Violência Obstétrica e Morte Materna (CEVOMM), na Câmara dos Deputados. Apesar disso, parte dos deputados e senadores entrevistados em 2023 pela pesquisa Além do Plenário - parceria AzMina e Mulheres Negras Decidem - sequer conhecia a expressão violência obstétrica, como mostramos nessa reportagem.

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Cavalos de Troia legislativos

Dentro das proposições sobre maternidade, sete PLs foram classificados pelas organizações avaliadoras do Elas no Congresso como desfavoráveis aos direitos das mulheres. Destes, cinco propõem assistência a famílias, como o PL 3820, para criar um "plano especial para aquisição de veículos por quem adotar criança ou adolescente", e o PL 3040, que "concede benefício especial a adotante de criança maior de três anos". Embora à primeira vista pareçam bem intencionados, ambos têm potencial para estimular a adoção irresponsável e colocar crianças e adolescentes em risco.

Outros dois projetos sobre maternidade promovem desinformação ou empecilhos ao aborto legal — o PL 2674 e o PL 3233. Este último propõe alterar a redação da Lei 14.598, sobre cuidados nos exames de pré-natal, e incorporar o conceito de nascituro. O texto sugere que, "constatada qualquer alteração que coloque em risco a gestação, o médico encaminhará a gestante e o nascituro para tratamento médico adequado a fim de salvaguardar suas vidas". Caso aprovada, a emenda poderia limitar o acesso ao aborto legal país.

Segundo Taysa Schiocchet, há tentativas recorrentes de camuflar elementos que poderiam impactar o direito ao aborto em emendas aparentemente positivas. "Há uma sofisticação da linguagem e da técnica legislativa nestes projetos que tentam proibir o aborto. Hoje, os projetos não vão discutir o tema em termos religiosos, ainda que os fundamentos anteriores o sejam. Isso fica mais camuflado com linguagem jurídica e supostamente protetiva às mulheres".

Matéria publicada originalmente em AzMina

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