Um PL a cada 30 horas: violência domina projetos sobre mulheres e LGBTQIAP+

Parlamentares propuseram um Projeto de Lei (PL) sobre violência de gênero a cada 1,3 dias (30 horas) em 2023. A nova edição do projeto Elas no Congresso, do Instituto AzMina, mostra que, dos 502 PLs sobre direitos das meninas, mulheres e pessoas LGBTQIAP+, 282 (56,2%) tratam do tema. A maioria sugere medidas preventivas ou punitivas contra agressões físicas e psicológicas diferentes; entre elas, 73 proposições sugerem alterar a Lei Maria da Penha.

A violência doméstica e familiar é a modalidade mais debatida — aparece 117 vezes, algumas delas junto a outros temas. Violência e dignidade sexual estão em 69 projetos, enquanto feminicídio aparece em 13. Violência política, obstétrica e misoginia foram tratadas de maneira tímida, com menos de cinco projetos cada. A facilitação do acesso e porte de armas às mulheres, que em anos anteriores concentrou propostas de senadores e deputados, em 2023 está somente em cinco PLs.

Efeitos da representatividade

A participação da bancada feminina na autoria ou coautoria das proposições sobre violência de gênero é quase equivalente à da masculina, embora elas sejam 17,9% do Congresso — 15 senadoras e 91 deputadas. 74 parlamentares mulheres — o equivalente a 69,8% da bancada —, atuam em 136 PLs. Entre os homens, esse número é de 21,3% (104), com atuação em 159 proposições.

Segundo Alexandra Lourenço, doutora em ciência política e professora da Unioeste do Paraná, o aumento da parcela de mulheres no Poder Legislativo pode ser positivo, ainda que longe do ideal. "Em países onde aumentou muito o número de mulheres no Legislativo, o perfil das políticas públicas implementadas também mudou", afirma, ressalvando que a eleição de mulheres não é garantia para a agenda de gênero. "Algumas estão mais comprometidas com as pautas dos partidos a que pertencem".

No caso do Brasil, ela acredita que alguns avanços recentes resultam desta maior participação feminina, que ainda é baixa. "Podem ser políticas mais punitivas, mas são políticas que estão tentando compreender como atender essas mulheres e oferecer a elas uma situação de reinserção social pós-violência, como a Lei Mariana Ferrer e a Lei do Minuto Seguinte, por exemplo".

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40 anos depois: prevenir e punir, mas nada de erradicar

Quase 15% (42) dos projetos sobre violência de gênero foram avaliados pelo Elas no Congresso como contrários aos direitos das mulheres. Há maior preocupação com a prevenção, o que pode indicar uma mudança na abordagem da questão. São 109 PLs com medidas de educação e proteção à mulher e à família, e 90 com inclusão de novas penas ou aumento das punições já existentes. Outros 82 sugerem formas de compensação ou assistência às vítimas e à família depois que a violência acontece, em especial em casos de feminicídio.

Essa mudança é importante, mas insuficiente. A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres, conhecida como a Convenção de Belém do Pará, está completando 40 anos, mas o Brasil ainda falha na última etapa: erradicar.

Na visão de Regina Célia Almeida, co-fundadora e vice-presidente do Instituto Maria da Penha, faltam ações amplas e articuladas para quebrar o ciclo da violência e compreendê-lo como um fenômeno estrutural. "É necessário tornar esse debate multidisciplinar, transdisciplinar e interdisciplinar".

Além de prevenir e punir, a erradicação passa por educar continuamente e monitorar os resultados e a eficiência da aplicabilidade da lei. A pergunta proposta por Regina Célia é: "como vamos quebrar a geracionalidade da violência?". Ela defende a opção dos centros de reabilitação para agressores, com administração do Ministério dos Direitos Humanos no escopo do programa de reeducação e reabilitação para autores de violência. "Isso vai contribuir para quebrar o processo de reprodução", afirma.

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Medidas populistas para combater violência, como o armamento das mulheres e a redução da maioridade penal, no caso da violência de gênero, se mostram pouco eficazes. "Sem considerar a relação daquele jovem com a violência doméstica e seu desenvolvimento cognitivo, é totalmente irresponsável", completa Regina, lembrando que, neste ano, a Lei Maria da Penha completou 18 anos. Com ela, uma nova geração de jovens também atinge a maioridade. Mas, por conta dos desafios de aplicação da norma, cresceram em lares atravessados pela violência doméstica, e podem reproduzir esse comportamento.

Receita difícil de executar

O texto da Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, é referência internacional de combate à violência contra a mulher por se apoiar nos três pilares essenciais da Convenção de Belém: prevenir, punir e erradicar. O desafio, contudo, é aplicar o que diz a norma em cada canto do país.

Luanna Tomaz de Souza, diretora adjunta do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará, explica que há obstáculos desde o atendimento das vítimas até o processamento jurídico. Neste último, o avanço dos processos em varas de competência híbrida - que podem decidir questões criminais, cíveis, relacionadas, por exemplo, ao divórcio e à guarda -, por exemplo, poderia facilitar as tramitações. . "A mulher precisa discutir a violência numa vara, o divórcio na outra, e isso traz muitas dificuldades", analisa.

A implementação de políticas públicas de enfrentamento, prevista na Lei, é outra lacuna prática. "A violência é um problema complexo que exige múltiplas políticas, voltadas à moradia, à questão da dependência econômica, a diferentes aspectos de saúde para a mulher. E, nos últimos anos, houve redução de investimento nessas políticas", elabora Luanna, explicando que a situação é pior longe das capitais, na defesa de mulheres indígenas, ribeirinhas e moradoras de regiões de floresta.

Regina Célia Almeida,do Instituto Maria da Penha, ressalta também a falta de capacitação das pessoas que atuam na execução da norma. "Vemos muito isso nos casos de violência psicológica e moral; as mulheres ainda lutam para que seja reconhecido o boletim de ocorrência e medida protetiva nessas situações, porque os profissionais nem sempre conseguem identificar que se trata de um caso de violência psicológica, e muitas vezes por falta de orientação e atualização dos códigos de conduta".

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Maria da Penha sempre na mira

Desde que foi sancionada, em 2006, a Lei Maria da Penha vem sofrendo constantes tentativas de alteração. Entre 2019 e 2023, 436 proposições do Congresso Nacional citam a legislação — 73 só em 2023. O Elas no Congresso vem mostrando essa tendência desde 2020.

As duas mudanças mais recentes em vigor vieram pela Lei 14.857/2024, que determina os sigilo do nome das vítimas de violência doméstica e familiar nos processos, e pela Lei 14.149/2021, que regulamentou a aplicação do Formulário Nacional de Avaliação de Risco também às vítimas de violência doméstica e familiar.

Há avanços positivos, como o reconhecimento da violência psicológica. "A medida protetiva também foi importante, mas deveria ter como reforço a presença de equipes multidisciplinares nas delegacias", complementa Regina Célia.

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A professora Luanna Thomaz explica de onde vem tanto foco na Lei Maria da Penha. Os principais fatores são o baixo nível de investimento em políticas de enfrentamento à violência de gênero, gerando aumento dos casos, a tentativa de alcançar o eleitorado feminino, que é mais de metade da população, e o crescimento do discurso punitivista na sociedade, refletido na composição do Congresso. "A bancada da bala tem crescido, acompanhada da demanda por aumentar penas, criar novos tipos penais. Durante muito tempo, o interesse pela lei era de setores e de partidos mais progressistas. E hoje você vê partidos mais à direita, mais conservadores, tentando imprimir modificações".

Dos 73 PLs sobre o tema analisados pelo Elas no Congresso, seis foram consideradas desfavoráveis - três são de parlamentares do Republicanos, uma do MDB, uma do PSD e uma do PP. As outras 67 trazem propostas consideradas positivas pelas avaliadoras.

Ataques pessoais

Se a lei que leva seu nome permitiu principalmente avanços no combate à violência de gênero, em outros campos da sociedade, Maria da Penha sofre assédio constante. Ela enfrenta campanhas orquestradas de descredibilização, impulsionadas em plataformas digitais como o YouTube e em alguns canais de televisão, que promovem discursos revisionistas, questionando o processo e os detalhes do caso.

Os ataques que começaram em canais de influenciadores masculinistas e misóginos (Red Pill) migraram para outros espaços. Recentemente, após receber ameaças de indivíduos de extrema-direita, a ativista e suas filhas passaram a receber proteção do Estado. "Depois de décadas, Maria da Penha passa por uma nova jornada do júri, agora nas redes sociais. Mas não é um descrédito à lei, é pior do que isso. É um descrédito à própria história da Maria da Penha, desqualificando, desvalorizando tudo que uma mulher passa quando busca uma delegacia, um hospital, quando vai expressar sua narrativa de violência", lamenta Regina Célia.

Conheça a história da Lei Maria da Penha e leia mais sobre como as proposições do Congresso em 2023 se voltam a temas como Direitos Sexuais e Reprodutivos e Direitos LGBTQIA+

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Metodologia

O Elas no Congresso usa dados públicos do Congresso Nacional para monitorar os direitos das mulheres no Poder Legislativo e avaliar a atuação dos parlamentares nesse campo. A nota de cada senador e deputado no ranking depende da pontuação dos projetos com os quais ela/ele e seu partido estiveram envolvidos e da pontuação geral do seu partido. Cada proposta recebe uma pontuação, que vai de -2 a 2, de acordo com sua relevância e seu posicionamento em relação aos direitos das mulheres. Para entender como a pontuação é feita, acesse: elasnocongresso.com.br/metodologia.

Matéria publicada originalmente em AzMina

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