Neon Cunha: 'O que falta para mover o parlamento diante da transfobia?'

Em 2016, Neon Cunha pediu à Organização dos Estados Americanos (OEA) o direito à morte assistida, caso não pudesse retificar seu nome e gênero oficialmente sem os abusos a que fora submetida até então. Seu processo abriu caminho para que toda pessoa transgênera pudesse fazer o mesmo. Hoje o primeiro RG como Neon Cunha é parte do Acervo Bajubá e está exposto no Museu da Resistência, em São Paulo (SP).

Uma das vozes LGBTQIAPN+ mais importantes do país, Neon se autointitula "mulher negra, ameríndia e transgênera, nessa ordem de importância". A ativista independente também é publicitária e diretora de arte, e foi a primeira pessoa transgênera a discursar na OEA, a convite do Geledés - Instituto da Mulher Negra.

Ela atua em diversas frentes, promovendo o debate e a defesa da igualdade de gênero e orientação sexual desde os anos 80, quando o país ainda vivia uma ditadura militar. Neon defende que essas pautas atravessem a construção de políticas públicas em todos os campos. E cobra ação urgente do Congresso Nacional para reforçar os direitos conquistados e assegurar a dignidade humana prometida pela Constituição Federal - algo que passa longe de boa parte da população LGBTQIAPN+, em especial das pessoas transexuais e transgênero, cuja mortalidade, no Brasil, é uma das mais altas no mundo.

Em entrevista à Revista AzMina, como parte do projeto Elas no Congresso, Neon Cunha falou sobre como o Legislativo Federal exclui pessoas e pautas trans, e sobre os direitos das mulheres, meninas e pessoas não binárias em 2023. Numa conduta que ela considera "perversa", a Câmara e o Senado propuseram mais de 30 Projetos de Lei avaliados como negativos sobre os direitos desses grupos - a maioria, perseguindo pessoas trans.

Uma das principais estratégias de parlamentares antidireitos das pessoas LGBTQIAPN+ em 2023 foi penalizar aliades da causa trans - punir familiares, pais, professores ou qualquer pessoa adulta que favoreça o reconhecimento da identidade de gênero de crianças e adolescentes. É um projeto para silenciar, invisibilizar e estigmatizar quem desafia a normatividade.

Ao mesmo tempo em que celebra a estreia de duas parlamentares trans no Congresso, a ativista Neon considera que a atuação conservadora e antidiversidade reflete um Legislativo branco, cisgênero e heterossexual. Confira, a seguir, a entrevista com Neon Cunha.

AzMina: Como você entende os projetos de lei de 2023 para penalizar quem "incentiva" ou "influencia" crianças e adolescentes a reconhecerem sua identidade de gênero?
Neon Cunha:
O que me intriga é de onde vem essa psicopatia, essa perversidade, em perseguir determinados grupos carregados de estigmas e exclusões sociais. Quem ganha com a negação da evolução humana sempre tão demarcada pela individualidade? Meu processo de retificação de nome e gênero, que recusa a patologização, é de 2016. Ele visibiliza o direito à dignidade plena com uma sentença inédita baseada no direito constitucional e na autodeclaração. A Constituição é de 1988 e o direito à existência plena reconhecida pelo Estado Brasileiro ocorre somente no meu processo, um vácuo de 36 anos. O número de pessoas trans está crescendo porque passamos a reivindicar visibilidade, direitos básicos ainda tratados como privilégios, porque estamos ocupando cargos e espaços que eram controlados por um patriarcado branco e cisheteronormativo.

A pauta LGBTQIAPN+ está além da discussão sobre identidade de gênero ou orientação sexual. Está na intersecção de classe e raça, está nos estigmas que criam exclusões e desumanizações cruéis.
Neon Cunha

AZ: Qual o impacto dessas ofensivas no Poder Legislativo contra a comunidade trans no Brasil?
NC:
O maior impacto está diretamente ligado à negação ao direito do livre exercício da personalidade humana que clama por igualdade, dignidade e respeito, com a eliminação do preconceito e da discriminação. [Esses são] elementos fundamentais da Constituição que defende o que dever ser uma sociedade democrática, justa, equânime acima de tudo, orientada e fundamentada pela dignidade humana. Considero uma estratégia perversa para desviar a atenção de coisas mais urgentes, como repensar métodos educacionais, garantir infâncias sem estigmas. E rever uma sociedade com adoecimento psíquico que parece não estar disposta à empatia e alteridade, elementos basilares para ser agente político de transformação. Mas, o maior impacto, de fato, é a ameaça às conquistas constitucionais.

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AZ: Como você avalia o primeiro mandato das duas deputadas federais trans?
NC:
Estes mandatos são conquistas das articulações de movimentos sociais, militantes e ativistas que estão aí desde muito tempo. Acompanho essas transformações desde os anos 80, inclusive com candidaturas de pessoas trans e travestis na retomada da democracia e com as primeiras eleições diretas em novembro de 1989. Tanto Erika Hilton quanto Duda Salabert têm trazido debates de alta qualidade. A estratégia pedagógica tem funcionado para sensibilizar a população, considerando que nenhuma das duas se valem de megaestruturas, tanto em recursos humanos quanto financeiros. Para além da visibilidade, destaco a qualidade do trabalho de ambas, acusadas de lacração. Mas, diante de tanto comportamento imaturo e irresponsável, elas têm de fato sensibilizado uma grande parcela da população para essa resistência, o que, a meu ver, tem funcionado muito bem.

AZ: Com a atual composição do Congresso, a mais conservadora desde a redemocratização, existe abertura para diálogo com os movimentos LGBTQIAPN+?
NC:
Nunca imaginei um momento como esse, nem na Ditadura. Esse Congresso é a maior denúncia de como a educação no Brasil foi subestimada, anulada, e de como os privilégios ainda são frutos de uma política com bases coloniais. A capitania hereditária ainda negocia cargos, onde partidos se renomeiam para ter um verniz novo em molduras podres. Nunca imaginei que a fé seria uma negociação política com bases explicitamente capitalistas. Por outro lado, é emocionante o quanto a diversidade tão atacada continua nas bases lutando e defendendo a Democracia por meio do diálogo. Talvez essa seja uma das nações mais civilizadas, onde os oprimidos não revidam ódio com ódio. Sim, ainda estamos abertas ao diálogo. Essa pergunta deveria ser feita a eles e não a nós.

AZ: Quais desafios da população LGBTQIAPN+ que precisam estar no radar dos congressistas nos próximos anos?
NC:
Defesa e garantia dos direitos constitucionais. Uma vez que somos minoria e com poucos aliados, fica inviável criar uma lei como a de enfrentamento ao racismo [o Estatuto de Igualdade Racial, Lei 12.288/2010], ou mesmo a Maria da Penha [Lei 11.340/2006]. Lembrando que esta surge quando o Estado brasileiro foi condenado por omissão e negligência pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, o que levou aproximadamente 20 anos. Tendo em vista as inúmeras mortes brutais de pessoas trans e pouco avanços nessa discussão, questiono: o que falta para sensibilizar o atual parlamento para a criação de uma legislação específica?

AZ: Como essa atuação do Congresso se reflete nas assembleias legislativas?
NC:
De forma objetiva, impulsionando financeiramente, politicamente e na difusão das pautas relevantes para determinados grupos. Basta uma olhada em uma foto desse Congresso para vermos o quanto não reflete a população brasileira em sua diversidade. A pauta LGBTQIAPN+ está além da discussão sobre identidade de gênero ou orientação sexual. Está na intersecção de classe e raça, está nos estigmas que criam exclusões e desumanizações cruéis.

Matéria publicada originalmente em AzMina

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