Com diminuição de casamentos, pais anunciam filhos em 'mercado de noivos' na China
"É normal vir aqui. Os pais querem que os filhos casem, consigam um bom trabalho e tenham filhos", resume com simplicidade um senhor que anuncia seu filho para casamento em uma grande praça em Xangai.
Apesar de tratar a prática como algo natural e conversar com bom humor, ele prefere se identificar apenas por seu sobrenome, Li, e se recusa a posar para uma foto.
A Praça do Povo recebe todos os sábados e domingos à tarde centenas de mães e pais aflitos pela demora de seus filhos em se casar - algo cada vez mais comum na China, conforme o país se urbaniza aceleradamente.
Eles fazem propaganda de seus pupilos em folhas de papel, preenchidas à mão, quase sempre apoiadas em um guarda-chuva. Os anúncios trazem idade e altura das moças e rapazes, seguidas de descrições elogiosas e uma série de exigências quanto ao perfil do potencial parceiro(a), mas fotos são raras.
A prática de anunciar "noivos" em praça pública ganhou impulso nos últimos anos. Segundo os frequentadores do que ficou conhecido em inglês como "marriage market" (mercado de casamento), a estratégia começou há cerca de uma década. O nome em chinês, porém, não fala em "mercado", mas em ponto de encontro.
Há outras iniciativas do tipo no país, mas o de Xangai é o maior e mais famoso. Preocupado com a queda no número de casamentos, o governo vêm incentivando também feiras para solteiros, como a Shanghai Matchmaking Expo.
Insistência
Em um giro de cerca de quatro horas pela Praça do Povo em um sábado de setembro, a reportagem da BBC Brasil entrevistou frequentadores com o auxílio de uma intérprete - e foi questionada algumas vezes se buscava um pretendente.
Apesar da taxa de sucesso não parecer muito alta, os pais são persistentes. Li, de 64 anos, conta que já frequenta o local há três. Ele diz que conseguiu arranjar alguns encontros para seu filho, mas infelizmente não deram em casório.
"Ele aceita que eu venha. Mesmo que não goste, eu vou vir. Vou procurar até um dia conseguir", garante.
Seu anúncio segue mais ou menos o padrão geral da praça. Começa dizendo que seu filho nasceu em 1982, tem 1,82 metros de altura e boa aparência. É formado na área de justiça e trabalha como policial, com salário de 120 mil yuans por ano (R$ 58 mil). Acrescenta ainda que é simpático, honesto e estável.
Em seguida, enumera as exigências para a noiva, que deve ser um pouco mais nova (nascida entre 1986 e 1989) e mais baixa que seu filho (1,62m ate 1,72m) - essas diferenças de idade e altura se repetem em quase todos os anúncios, sejam os que oferecem mulheres ou homens.
Li também quer que seu filho se case com uma mulher que tenha ensino superior, um trabalho estável e boa aparência. O anúncio diz ainda que ela deve ser simpática, comunicável e ter Hu Kou de Xangai - um documento da cidade que facilita trâmites burocráticos na hora de comprar uma casa ou ter filhos.
Uma última exigência chama atenção, pois não é tão comum: a mulher ideal para casar com seu filho não pode ter sido casada antes ou ter vivido com alguém.
Isso significa que ela deve ser virgem? "Sim, precisa ter história limpa", respondeu.
Li explica que a estabilidade - do trabalho, da família, e da sociedade - é algo muito importante para o chinês. "É a cultura oriental", resume.
Na sua visão, a virgindade da noiva trará estabilidade ao casamento.
"Se a pessoa teve sexo (com seu antigo parceiro), mesmo que se separe, a relação não é 100% cortada", acredita. "Pode ser má influência para o futuro, para meu filho e para o casamento", diz ainda.
A reportagem conversou com outros pais no "mercado". Há muitas mulheres também, mas nenhuma aceitou dar entrevista. Alguns demonstraram vergonha. Por outro lado, sempre que alguém aceitava conversar, logo uma roda de curiosos se formava ao redor.
"Essa reportagem não é boa. Mostra algo ruim da China", reclamou um, ao lado de Zhou, um dos pais que concordou em contar sua história. "Besteira, qual o problema de querer que os filhos casem? É tradição", rebateu outro.
"Tradição", aliás, foi a resposta mais ouvida ao questionar os pais sobre por que queriam tanto casar os filhos - eles encaram o casamento como algo óbvio e natural.
Muitos também citaram a necessidade de perpetuar a espécie. A BBC Brasil encontrou apenas tentativas de casamentos heterossexuais na praça.
"Quando chega a hora tem que casar. Para ter companhia quando ficar velho e para continuar a geração. A vida tem que continuar", explicou Zhou, de 78 anos.
Outra preocupação é a solidão na velhice, nota ele, lembrando da política do filho único que perdurou na China por mais de 30 anos (1979-2015).
"Muitos não têm irmãos. Não vão ter ninguém quando os pais morrerem", lamenta, sentado ao lado da descrição de seu filho.
'Moças deixadas para trás'
A política do filho único é apontada como um dos fatores que explica a recente queda no número de casamentos no país. Segundo dados levantados pelo jornal americano The New York Times, os matrimônios recuam há dois anos na China, tendo somado 12 milhões em 2015.
Além da redução do número de jovens, a restrição a um único filho também provocou um desequilíbrio de gênero - devido a uma preferência cultural por homens, muitos bebês do sexo feminino foram abortados.
Por causa disso, a previsão é que até 2020 haverá 30 milhões de homens a mais do que mulheres atingindo a vida adulta e entrando no "mercado do casamento" chinês.
Diante da escassez de noivas e preocupado com os efeitos econômicos do menor número de bebês no futuro, o governo chinês tem colocado pressão para que elas casem logo. Em 2007, o governo adotou oficialmente a expressão "moças deixadas para trás (sheng nu) para mulheres que não se casaram até os 27 anos - termo criticado por feministas e acadêmicos.
Em abril deste ano, uma marca de cosméticos filmou uma campanha no mercado de casamento de Xangai questionando essa pressão sofrida pelas mulheres chinesas e o vídeo acabou viralizando mundialmente.
Questionado sobre se estava tarde para tentar casar sua filha, de 29 anos, um dos pais entrevistados pela BBC Brasil, Chen Er Yi, disse que "ainda não".
"Se ela casar agora, ainda está bem", conta ele, que há um ano vai quase toda semana à praça.
Outro senhor, que não quis se identificar, divulgava sua filha de 35 anos em um raro anúncio com foto. Ele contou que frequenta a praça há quatro anos, mas diz que ela não gosta.
"Ela aceita. Se não, seria inútil vir aqui. Mas ela preferia que eu não viesse, pois acha que não adianta e que é muito cansativo eu ficar aqui o dia todo."
O pai tem uma tese para a demora nos casamentos hoje em dia: os jovens estão mais exigentes, acredita. Já ele casou com uma vizinha, que conhecia desde pequeno.
"Na minha época era mais fácil casar. As pessoas tinham um nível parecido, eram menos exigentes. Os salários eram mais baixos e todos ganhavam o mesmo. Então, as pessoas se conheciam e, mesmo que achassem mais ou menos, casavam. Agora, há variação de salário, de formação", teoriza.
Solteiros têm menos direitos
Aos 40 anos e solteira, Chen Yaya é exemplo dessa nova geração de mulheres chinesas que não vê o casamento como prioridade. Feminista e professora do departamento de gênero da Academia de Ciências Sociais de Xangai, ela diz que o matrimônio traz muitas responsabilidades e que gosta da sua liberdade.
"O governo tem essa preocupação (de incentivar os casamentos) por causa do nascimento dos bebês. Mas esses fatores não estão tão ligados, pois mulheres solteiras podem ter filho também. Só que elas têm menos direitos", critica Yaya.
As regras na China são mais favoráveis aos casados, explica a professora. Pais solteiros precisam pagar uma multa ao registrar os filhos caso não tenham o documento de família (Hu Kou), fornecido no casamento. O valor varia de acordo com a renda e a região do país. Sem o registro, ficam sem acesso a serviços gratuitos de saúde e educação.
Solteiros que não tenham Hu Kou da cidade em que vivem, por exemplo, se nasceram em outra região, também não podem comprar apartamento, observa ela.
"Um amigo já pediu para casarmos, apenas formalmente, só para ter esse documento, mas eu não aceitei", contou.
Passeando pela Praça do Povo com a BBC Brasil, Yaya nota que os jovens em geral não gostam dessa alternativa, que "parece uma feira". Mas ela vê um aspecto positivo na prática: uma oportunidade de os idosos se distraírem e compartilhares suas angústias.
"É bom porque os mais velhos se sentem sós. É uma atividade para eles", observa.
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