Personagens mulheres têm pouca voz nos filmes premiados com o Oscar, aponta levantamento da BBC
Em meio aos acalorados debates sobre igualdade de gênero em Hollywood, a indústria cinematográfica anglófona ainda não foi capaz de garantir a representatividade feminina no cinema, aponta uma análise realizada pela BBC a partir do chamado "teste de Bechdel", que mensura a participação de mulheres em obras de ficção.
Desde a primeira cerimônia do Oscar, em 1929 (a deste ano será realizada neste domingo), a influência política e social das mulheres cresceu em muitas áreas, mas não tanto no cinema - pelo menos segundo os critérios do teste.
Um filme passa no teste de Bechdel se tem ao menos duas personagens femininas que conversem entre si pelo menos uma vez sobre algo que não seja um homem.
Até agora, neste 90º ano dos prêmios da Academia, menos da metade dos vencedores do prêmio de melhor filme foram "aprovados" nessa mensuração, segundo a pesquisa da BBC.
E não houve melhora com o passar das décadas: vencedores recentes e relativamente recentes como Moonlight: Sob a Luz do Luar, Gladiador e Quem Quer Ser um Milionário? não passam no teste, bem como dois dos indicados neste ano.
"Acho que está ocorrendo como sempre ocorreu - histórias contadas de forma similar a como foram contadas antes, sem questionamento", opina Ellen Tejle, que lançou um ranking para destacar, na Suécia, filmes que passam no teste de Bechdel.
"Os integrantes da indústria (cinematográfica) precisam entender que têm poder e responsabilidade no processo de produção de um filme."
O Destino de uma Nação, indicado ao Oscar de melhor filme neste ano, cumpre o pré-requisito de ter duas mulheres, mas em nenhum momento do filme elas conversam entre si sobre algo que não seja um homem.
Dunkirk, que se passa durante a Segunda Guerra Mundial, sequer tem personagens mulheres com nomes - apenas intérpretes de uma "enfermeira" e uma "comissária de bordo".
Limitações
"O que eu odeio é que mulheres são enfiadas em filmes sobre homens; nós merecemos nossa própria narrativa", afirma a crítica de cinema Rhianna Dhillon. "Não é o bastante começar a fazer um filme antes de se dar conta de que apenas homens brancos são representados nele."
O teste foi batizado com o sobrenome da artista gráfica Alison Bechdel: em um cartum de 1985, duas personagens mencionam a mensuração como indicativo de se o filme deve ser visto ou não.
Ainda que a proposta nunca tenha sido criar um método oficial de mensuração, o teste é hoje amplamente utilizado na crítica cinematográfica - ainda que tenha diversas limitações.
"Adoro o fato de que o teste de Bechdel abre o diálogo a respeito do que está acontecendo (na indústria de cinema)", diz Holly Tarquini, diretora do festival de cinema de Bath, no Reino Unido.
"(Mas) a dificuldade é que muitos filmes misóginos passam no teste; ele não atesta nada a respeito de quem está contando a história. (O filme pornô) The Bikini Carwash Company passa no teste de Bechdel, mas Gravidade (em que a protagonista feminina, interpretada por Sandra Bullock, é praticamente onipresente) não passa."
Como os filmes foram mensurados
A BBC reviu dezenas de filmes, usando como medida de referência os padrões estabelecidos pelo teste de Bechdel. Também coletou e cruzou informações levantadas pelo site bechdeltest.com, abastecido pelo público coletivamente.
Em casos em que o revisor da BBC tinha questionamentos a respeito de como classificar determinado filme - ou em casos de discordância com relação ao bechdeltest.com -, acionavam-se ao menos outros dois revisores, até que se obtivesse um consenso.
Na Suécia, Ellen Tejle usa o teste para avaliar filmes em cartaz no país.
"Muitos filmes passam por conta de apenas uma cena", diz ela. "Recebemos diversos e-mails raivosos e contestadores, alegando que um determinado filme 'não deveria ter passado só por causa de alguns trechos'. Mas isso também é representativo de que as pessoas estão procurando por aquelas cenas - que estão prestando atenção e se importam com isso."
Interseccionalidade
Outros, no entanto, argumentam que o teste de Bechdel é restrito ao gênero, por não mensurar se os personagens dos filmes são bem representados sob outros critérios.
Corrina Antrobus, fundadora do site Bechdel Test Fest, diz que, se coubesse a ela pensar em novas formas de avaliar filmes, "seria de alguma forma que avaliasse a interseccionalidade", ou seja, que considerasse o modo como diferentes aspectos humanos, como etnia, classe e sexualidade, se afetam entre si.
"Seria uma mensuração de como poucos filmes retratam mulheres de diferentes raças, sexualidades, religiões e habilidades, para ter um retrato melhor de quem está faltando ou está mal representado", diz.
Segundo uma análise da Fundação Annenberg, dos 100 principais filmes de 2016, apenas 34 tinham uma personagem principal feminina.
Desses 34, três eram interpretadas por atrizes femininas pertencentes a grupos raciais ou étnicos subrepresentados.
"Quase a metade dos 100 filmes avaliados em 2016 não tinham nenhuma personagem mulher negra com falas (47 de 100) e dois terços ou mais não tinham mulheres asiáticas (66 de 100) e latinas (72 de 100)", aponta o estudo.
"Em contraste, só 11 dos 100 principais filmes de 2016 não tinham meninas ou mulheres brancas."
Que tipo de falas?
Quarenta e três dos últimos 89 vencedores do Oscar de melhor filme passam no teste de Bechdel, incluindo Argo e A Lista de Schindler.
Em ambos os filmes, há bem poucas falas para personagens mulheres - só que, por acaso, essas falas cumprem os pré-requisitos do teste.
Críticos de cinema e espectadores têm debatido o quanto personagens deveriam dizer entre si, para o filme passar no teste de Bechdel.
Um exemplo é Spotlight - Segredos Revelados, que venceu o Oscar de melhor filme em 2016 abordando a investigação jornalística pelo Boston Globe do acobertamento de sacerdotes católicos acusados de abuso sexual. A obra gera debates no site do teste de Bechdel.
Uma das cenas alvo de discussão é a em que a jornalista Sacha Pfieffer (interpretada por Rachel McAdams) ouve de sua avó (cuja personagem não é nomeada no filme) um pedido por um copo d'água.
"Não acho que a (cena da) avó pedindo um copo de água ao ficar sabendo que sacerdotes cometeram abusos passe no teste", diz uma usuária do site.
Outra usuária discorda: "Na verdade, acho essa cena crucial e poderosa no filme. Ainda que a avó não seja nomeada, ela é um personagem importante - ela é a voz do leitor médio do (jornal Boston) Globe. O acobertamento sobre o qual ela está lendo é maior do que uma história de homens. Diz respeito a milhares de pessoas e ao fracasso de uma instituição."
Da mesma forma, uma cena de Forrest Gump - O Contador de Histórias provoca discussão: o momento em que duas mulheres conversam sobre veteranos da Guerra do Vietnã se qualifica como conversar sobre homens ou sobre questões maiores?
Ainda que esse levantamento se limite, sobretudo, a filmes americanos, é interessante notar que estudos do Instituto Geena Davis sugerem que a indústria cinematográfica de outros países tem tido maior sucesso em produzir filmes com maior equilíbrio de gênero.
Uma análise de filmes lançados entre 2010 e 2013 colocou a China com o país com o maior número de obras com igualdade de representação de gênero, seguida por Coreia do Sul, Reino Unido, Brasil e Alemanha.
Essa mesma análise apontou que, no caso brasileiro, apenas 9,1% dos diretores cinematográficos dessas obras eram mulheres.
A representação feminina nos bastidores cinematográficos, por sinal, é pequena no mundo inteiro.
Apenas um dos 89 vencedores do Oscar de melhor filme foi dirigido por uma mulher: Guerra ao Terror (2010), de Kathryn Bigleow - que também levou o Oscar de melhor diretora.
Seu filme, no entanto, não passa no teste de Bechdel.
"Por décadas, partiu-se do pressuposto de que as mulheres assistiam a esses filmes, quem quer que estivesse neles, porque eles eram tudo o que havia para assistir", afirma Rhianna Dhillon.
"Enquanto isso, homens têm mais liberdade de escolha porque estão sempre representados. Nós mulheres somos estereotipadas, mas não nos damos conta porque é tão subliminar."
Dhillon acredita que levará muito tempo até que Hollywood encare seus problemas com representação, mas ela vê esperança em filmes como Eu, Tonya e Pantera Negra (elogiado pelo Twitter pela ex-primeira-dama americana Michelle Obama - "graças a vocês (equipe do filme), jovens finalmente verão no cinema super-heróis que se parecem com eles", disse ela).
"Pantera Negra é muito animador, porque não foi feito por um estúdio pequeno; é um filme gigantesco da Marvel e da Disney", diz ela.
Ela nota que o o blockbuster tem diversos exemplos de mulheres "inteligentes e corajosas" que são representadas como "a norma". "É uma das razões pelas quais o público está tão empolgado com o filme", agrega.
Isso indica que pode haver benefícios financeiros aos estúdios que encamparem filmes mais representativos. E há pesquisas sugerindo que filmes com paridade de gênero faturam mais por dólar investido na produção.
"Ouse romper os estereótipos", diz Tejle a cineastas. "Talvez vocês acabem fazendo um filme melhor, com uma história melhor."
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