Quando é bom ou ruim ajudar os filhos com a lição de casa?
Há cerca de dois meses, a servidora pública mineira Cristina Dorneles, 43, começou a mudar o jeito como ajuda na lição de casa da filha Maria Rita, de 10 anos, aluna de uma escola particular de Brasília.
"Eu sempre a acompanhava, todos os dias. Explicava novamente as questões estudadas, ia até pesquisar no YouTube. Ficávamos até as 23h fazendo as tarefas, mas percebi que ela ficava esperando a minha ordem (para fazer a lição). O fato de eu estar sempre ali estava tirando a autonomia dela", conta Dorneles.
"Conversamos e eu disse: 'Vamos fazer de forma diferente? A mamãe acaba te dando uma segurança que nem sempre você vai ter, e você tem que fazer o seu esforço'. Ela ainda está se adaptando, mas ajudo só quando ela tem dúvidas e a gente pesquisa juntas."
Assim como Dorneles, muitos pais fazem bastante esforço para ajudar os filhos com a lição de casa. Mas qual é a melhor forma de fazer isso?
Uma pesquisa recente da fundação educacional britânica Varkey concluiu que pais brasileiros dedicam uma média de oito horas por semana ajudando os filhos com as atividades escolares - uma hora a mais do que a média global, entre 29 países que participaram do levantamento.
E 46% dos mil pais brasileiros entrevistados na pesquisa acham que não passam tempo suficiente auxiliando na educação dos filhos.
Como ajudar - e como não ajudar?
Mais importante do que o tempo, porém, é o modo como os pais participam da vida escolar dos filhos.
A primeira coisa é nunca ceder à tentação de resolver os problemas da tarefa para as crianças, destacam especialistas ouvidos pela BBC Brasil. E lembrar, assim como fez Cristina Dorneles, que a lição é um momento de praticar autonomia.
"A tarefa é para o aluno, não para o pai. É de se questionar se ele se envolve demais e com muita frequência na tarefa do filho", diz Silviane Bueno, diretora escolar no Balneário Camboriú (SC) e autora de dissertação de mestrado sobre lição de casa na Universidade Federal de Santa Catarina.
"É o momento em que o aluno se depara sozinho com seu conhecimento, e isso não pode exigir sempre a presença de um adulto."
Dito isso, acrescenta Bueno, os pais têm um papel importante na lição de casa: principalmente para as crianças menores, é ajudar a preparar o ambiente - um local bem iluminado, organizado e silencioso - e a controlar o tempo, "para que o filho não acabe se distraindo e ficando quatro horas fazendo a mesma tarefa".
É o que Cristina tem aprendido em seu novo modo de acompanhar a vida escolar tanto de Maria Rita quanto do filho mais novo, Davi Henrique, de 5 anos.
"Já ensinei que ele é que tem a responsabilidade de me dizer quando tem lição de casa. E criamos uma rotina: o Davi toma banho ao chegar da escola, janta, descansa um pouco e eu leio para ele a tarefa (o menino está em processo de alfabetização), mas é ele quem faz." Com Maria Rita, Dorneles tem focado seus esforços em mostrar à filha em quais fontes confiáveis ela pode buscar dados para tirar as dúvidas das lições.
Silviane Bueno sugere ainda explicar às crianças a importância de limitar o acesso a eletrônicos - celulares e tablets - durante a lição: "As crianças hoje já funcionam no modo 'multitask' (de fazer múltiplas coisas ao mesmo tempo). É importante que o momento da tarefa seja para elas pensarem, sem interrupções de WhatsApp, e usar os eletrônicos apenas para pesquisa".
E se a criança deixou a tarefa para última hora e não vai conseguir terminar sozinha?
Bueno acha que nem sempre os pais devem intervir nesse momento. "Às vezes, deixar que a criança vá à escola sem a tarefa e enfrente as consequências disso é um momento educativo. A frustração faz parte do processo", diz.
Aproveitar para conversar
Vale lembrar que a lição de casa serve, também, para indicar à escola o que os alunos aprenderam ou não. Mais um motivo para os pais serem cautelosos ao intervir.
"A utilidade da tarefa é a criança entender que ela consegue fazer aquilo sozinha, se estiver dentro dos seus limites. E, se ela não conseguir fazer, o professor precisa saber disso", diz Maria Amabile Mansutti, coordenadora técnica do Cenpec - Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária.
Ao mesmo tempo, as especialistas afirmam que as tarefas de casa podem ser bons ganchos para conversas entre pais e filhos - seja sobre os temas das lições, que podem render bons debates ou leituras em conjunto, seja sobre o cotidiano das crianças na escola.
"A juventude acha que sabe tudo, mas às vezes sua base teórica é o que leu no Facebook. Então quanto mais os pais conversarem, mais deixarão claros seus valores, que serão bases de construção de opinião", prossegue Bueno.
O paranaense Paulo Sérgio Pacheco, de 43 anos, aproveitou o interesse do filho Paulo Henrique, 11, em um trabalho escolar de filosofia para presenteá-lo com o livro O Mundo de Sofia, obra infantojuvenil de referência sobre o assunto. Ele e a mulher também ajudaram o menino a fazer uma apresentação de PowerPoint sobre filósofos, e a avó vai costurar para ele uma fantasia, com a qual vai apresentar o projeto na escola.
"A gente curte muito o processo de acompanhar a vida escolar dele", conta. "Eu ajudo mais com as dúvidas de história e geografia, por exemplo, e a mãe, com matemática, sempre deixando ele fazer antes para identificar o que entende ou não e permitindo que ele chegue à própria conclusão. Mas é um processo que não tem hora nem lugar - acontece o tempo todo. Estamos sempre conversando sobre os temas que despertam a curiosidade dele."
Para que serve a lição?
A escola, por sua vez, tem um papel crucial nesse processo: garantir que a tarefa de casa reforce o conteúdo dado em sala de aula de modo estimulante e construtivo, o que nem sempre acontece.
"É algo sobre o qual ainda há pouca reflexão, tanto que há poucos estudos sobre isso", diz Silviane Bueno. "Mas estamos avançando: antes, a lição de casa era usada só para controle - 'aluno fez, aluno não fez'. Hoje, já é vista como um momento importante da aula, que permite a retomada do conteúdo no dia seguinte. E já existem softwares online em que os alunos completam as tarefas (no computador ou celular) e o professor recebe imediatamente um relatório de quais foram as principais dúvidas."
"A tarefa não pode ser para castigar o aluno, mas sim para ajudar no desenvolvimento de competências", agrega Amabile Mansutti, do Cenpec. "Tem que ser relevante, adequada (à faixa etária) e voltada a rever o que foi dado em sala de aula, mas não só repetindo-o, e sim motivando a criatividade."
Mansutti cita, por exemplo, o modelo de "aula invertida" - em que os alunos pesquisam o tema da aula antes e, depois, ajudam a construir um conhecimento conjunto em sala - como um método cada vez praticado nas etapas do ensino médio e do fundamental II.
De todo modo, a própria lição de casa é alvo de debates - desde a intensidade com que deve ser aplicada até mesmo se ela deve existir. Há especialistas, escolas e sistemas educacionais no mundo inteiro que rejeitam a prática, com base em algumas pesquisas acadêmicas que encontraram pouca evidência de que as tarefas de casa ajudavam a melhorar o desempenho escolar dos jovens.
Em 2016, a mensagem da mãe de uma aluna da 2ª série de uma escola no Texas (EUA) viralizou na internet: ela postou o bilhete que recebeu da professora da filha, explicando que a classe havia abolido a lição de casa e sugerindo aos pais que dedicassem seu tempo com os filhos "fazendo coisas que comprovadamente influenciam com seu sucesso acadêmico, como refeições em família, leituras em conjunto, brincadeiras e dormir cedo".
Na Finlândia, país que é referência global em educação, a lição de casa continua a existir, mas tem um papel muito claro, explica à BBC Brasil Pasi Sahlberg, especialista no sistema educacional finlandês.
"A quantidade de tempo dedicada a tarefas escolares aumenta com a idade do aluno, e estudantes do ensino médio muitas vezes têm uma carga pesada de trabalho a ser feito em casa", diz ele. "(Mas) muitas escolas acreditam que as crianças devem ser capazes de fazer na própria escola a maior parte da preparação para o próximo dia de aula."
Papel dos pais
Segundo Sahlberg, "é muito importante ensinar crianças a serem responsáveis por suas próprias obrigações escolares. Fazer as tarefas dos filhos seria uma grande violação desse valor educacional. (...) Não é comum que pais ajudem os filhos com a lição - o melhor que podem fazer é ajudar as crianças a assumirem essa responsabilidade e manter comunicação constante com a escola delas."
De volta ao Brasil, Mansutti, do Cenpec, diz que há muitas formas de participar da vida escolar dos jovens, citando estudos que mostram que até mesmo pais com pouca instrução - e, portanto, com dificuldade em acompanhar a lição de casa - conseguem ser presentes mantendo diálogo constante com os filhos, ensinando-os a se esforçar e cobrando capricho nas tarefas.
Para os pais entrevistados pela BBC Brasil, a tarefa de casa acaba sendo um momento para se manter a par da vida escolar das crianças - e tentar criar laços ainda mais forte com elas.
"O dever de casa acaba sendo um momento para toda a família, de ver como meus filhos agem, como eles estão lidando com as frustrações e até mesmo se a escola está conforme os meus anseios", diz Cristina Dorneles. "Também quero que eles não tenham vergonha de dizer 'não sei', de falar a verdade e de receber críticas. E mostrar que estou aqui para ajudá-los, mas não para resolver o problema para eles, como fiz tantas vezes antes."
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