Medo de estupro faz mulheres deixarem de beber água no calor da Índia
O sol está no auge e o calor supera 40 graus.
Em uma favela urbana em Nova Déli, capital da Índia, Mona* evita deliberadamente beber água.
"Às vezes, eu bebo menos - porque (ela estimula a produção de fezes) o local que usamos para defecar ao ar livre fica cheio de rapazes. Tenho medo de ir lá."
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A menina de 13 anos de idade também restringe sua ingestão de alimentos e vai ao 'local' apenas uma vez por dia para se aliviar.
Quando vai, segue em bando com outras mulheres, no início da manhã ou no final da tarde.
Violência sexual
Cerca de 524 milhões de indianos, a exemplo dela, não contam com banheiro em casa e são obrigados a defecar ao ar livre todos os dias, de acordo com números da Organização das Nações Unidas (ONU).
Para as mulheres, há um nível adicional de vulnerabilidade nessa história: o risco de estupro ou de outros tipos de violência sexual.
Uma pesquisa da Fundação Thomson Reuters divulgada esta semana mostra que a Índia é o país mais perigoso do mundo para mulheres, devido ao alto risco de sofrerem violência sexual e de serem forçadas ao trabalho escravo.
Vários estudos têm apontado para o quanto as indianas estão sujeitas a ataques sexuais ao irem ou voltarem de instalações públicas ou de campos abertos onde são obrigadas a fazer suas necessidades.
Savita, que vive em uma favela urbana em Nova Deli, relata o calvário que muitas são forçadas a enfrentar todos os dias.
"Várias mulheres sofrem com comentários obscenos, perseguições e olhares de rapazes da região quando saem para defecar nessas áreas."
"É por isso que temos medo de ir. E sempre temos que reunir outras mulheres e pedir que elas nos acompanhem até o mato", acrescenta.
Evitando água
O que acontece quando essas mulheres são forçadas a escolher entre saúde e segurança?
"Elas se desidratam intencionalmente - e isso pode ter sérios efeitos se estiver muito quente ou se houver uma onda de calor", diz Gulrez Shah Azhar, pesquisador da RAND Corporation, dos Estados Unidos, reforçando que as mulheres param de beber água em quantidade suficiente para não sentirem vontade de defecar e serem forçadas a ir a áreas onde ficam vulneráveis.
Enquanto estudava a onda de calor de 2010 na cidade de Ahmedabad, no oeste do país, Gulrez descobriu que as mulheres tinham risco de morte bem maior nesses períodos que os homens. "Acredita-se que as mulheres que ficam em ambientes fechados não enfrentam alto risco durante uma onda de calor. Mas há uma série de fatores que contraria essa ideia, incluindo a falta de saneamento básico ", diz ele.
Em algumas casas, um ventilador de teto é a única fonte de refrigeração, que pode, no entanto, não ser tão confiável devido ao fornecimento inconsistente de eletricidade.
O calor também aumenta quando cozinham dentro de casa. O traje típico no país - o sari, como é chamado o longo pedaço de tecido que envolve o corpo - também ajuda pouco.
"Mas o dano potencial que o calor pode causar não é reconhecido", diz Gulrez.
Extremamente quente
Bhuni Shelukar é de uma aldeia chamada Makhla, localizada na região de Vidarbha, no estado de Maharashtra. Os verões nessa área podem ficar extremamente quentes, com temperaturas que chegam a 47ºC.
E com uma crise aguda de falta de água, Bhuni e outras mulheres são obrigadas a caminhar no calor escaldante para buscar alguns litros, que carregam em potes sobre suas cabeças.
"Nós andamos de dois a três quilômetros para conseguir a água e ainda não é suficiente. Temos que fazer várias viagens, já que só podemos carregar um pote de cada vez", diz Bhuni.
"Nos sentimos exaustas", acrescenta ela, enquanto caminha de volta para casa.
Na cidade de Ahmedabad, no oeste do país, as mulheres relatam que são encarregadas de tarefas domésticas, como cozinhar e limpar, mas que não podem dar prioridade à própria saúde ou a necessidades básicas.
Damini Rameshbhai Marwadi é uma dessas mulheres.
"É difícil usar o banheiro. Temos de esperar os homens irem primeiro."
'Me segurando'
Segundo ela, espera-se das mulheres que elas deem conta do trabalho doméstico antes de cuidarem desse tipo de necessidade.
"Durante o verão, acabei ficando com icterícia (que tem sintomas como pele e olhos amarelados, além de urina escura) porque ficava me segurando".
Gulrez diz que há "uma cultura de silêncio que envolve questões sanitárias das mulheres que levam à morte".
"A solução a longo prazo envolveria lidar com questões difíceis de igualdade e direitos das mulheres", analisa ele.
O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, da sigla em inglês), que é o órgão das Nações Unidas para assuntos do clima, tem alertado há muito tempo que as ondas de calor devem ser tornar cada vez mais graves no Sul da Ásia - Afeganistão, Paquistão, Índia, Butão, Nepal, Sri Lanka, Bangladesh e Maldivas.
Essa região abriga um quinto dos habitantes do mundo.
"O aquecimento ocorreu, em escala nacional, na maior parte do Sul da Ásia ao longo do século 20 e nos anos 2000", diz o quinto relatório de avaliação do IPCC.
Celulares e banheiros
Apesar desse cenário, as ondas de calor receberam pouca atenção.
Gulrez Shah Azhar ressalta que é importante encontrar soluções adequadas ao ambiente local.
Isso inclui acesso a celulares para que as pessoas possam receber alertas de ondas de calor ou pedir ajuda.
"Outras medidas práticas, como a pintura de telhados com tinta reflexiva branca ou cortinas de esteira de juta para as janelas, proporcionariam algum alívio para quem fica em casa", diz ele.
"Mas o acesso a um banheiro interno e a água potável continua sendo primordial."
* Nome fictício, para preservar a identidade da entrevistada.
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