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Brasileiras com calvície enfrentaram medos e passaram a se aceitar

"Foi uma libertação para mim. Não apenas do cabelo, mas de todo o peso que carreguei ao longo da vida", diz Freitas - arquivo pessoal
'Foi uma libertação para mim. Não apenas do cabelo, mas de todo o peso que carreguei ao longo da vida', diz Freitas Imagem: arquivo pessoal

Vinícius Lemos

De Cuiabá para a BBC News Brasil

02/09/2018 16h42

Na manhã de 11 de junho de 2017, Fernanda de Freitas, de 26 anos, colocou um ponto final em uma luta que travava desde a infância. Ela pediu ao marido que raspasse os fios que restavam em sua cabeça. Ao ficar totalmente calva, olhou-se no espelho e sorriu.

"Foi uma libertação para mim. Não apenas do cabelo, mas de todo o peso que carreguei ao longo da vida", diz.

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Na infância, aos três anos, Fernanda foi diagnosticada com alopecia areata, doença que causa queda de cabelo e de pelos do corpo. A partir de então, passou a consumir remédios e produtos para cuidar dos fios. Durante um período, chegou a tomar, diariamente, seis cápsulas de medicamentos com corticoide. Os fármacos apenas reduziam a intensidade da queda capilar, mas não evitavam que o cabelo continuasse caindo.

"Quando notava, eles (fios) tinham desaparecido. De repente, havia uma nova falha no meu couro cabeludo", relata. Seu cabelo era uma das primeiras coisas em que pensava ao acordar. "Sempre ia para o espelho olhar se ainda tinha cabelo em minha cabeça."

O fator emocional intensificava o problema. "Se eu estava muito feliz, caía. A situação se repetia quando eu estava muito triste. Não tinha o que fazer."

A alopecia é um dos motivos mais associados a problemas capilares. Ela atinge homens e mulheres e representa a perda de pelo em qualquer parte do corpo. O problema pode ser causado por influências genéticas, processos inflamatórios locais ou doenças sistêmicas.

Um dos tipos mais comuns de alopécia é a areata, que é uma doença autoimune - quando as células atacam o próprio organismo. Ela atinge aproximadamente 2% da população mundial, em diferentes níveis - pode afetar desde pequenas áreas do couro cabeludo até causar a completa ausência dos fios em todo o corpo.

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Fernanda de Freitas foi diagnosticada com alopecia areata e por anos recorreu a tratamentos para manter os fios
Imagem: Arquivo pessoal

Outro tipo comum da alopecia é a androgenética, que também é autoimune e causa o afinamento progressivo dos fios. Mais recorrente entre os homens, estima-se que atinja 5% das mulheres.

Conforme especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, há outros motivos que também causam a perda dos fios, como estresse, uso exagerado de processos químicos no cabelo, dietas, consumo de medicamentos e doenças que afetam outras áreas do corpo, como o hipotireoidismo.

Segundo a Sociedade Brasileira do Cabelo, 50% das mulheres têm alguma queixa sobre queda capilar.

De acordo com o médico tricologista Ademir Carvalho Leite, presidente da Academia Brasileira de Tricologia - área que se dedica a estudos do cabelo -, o número de mulheres com problemas capilares tem aumentado. "Hoje, ao menos 70% dos pacientes que atendo são mulheres. Não era assim quando comecei. Elas estão perdendo mais cabelo."

Leite orienta que as mulheres procurem ajuda médica logo que perceberem os primeiros sinais de falhas no couro cabeludo.

No Sistema Único de Saúde (SUS) não há nenhum tipo de tratamento para pacientes que sofrem com a perda de cabelo.

Batalha de décadas

Desde a infância, Fernanda preferia esconder a doença de colegas e conhecidos. "Somente a minha família e amigos muito próximos sabiam. Para mim era inadmissível comentar sobre isso com outras pessoas", relata.

Ela teve dificuldades para contar sobre a alopecia ao marido, com quem está há dez anos. "Nós estávamos no início do namoro e eu relutei, mas falei sobre o assunto. Ele me perguntou se a alopecia matava ou prejudicava algum órgão e respondi que não. Então, ele disse que eu não deveria dar tanta importância."

Antes de decidir tornar-se calva, Fernanda tinha de lidar diariamente com a baixa autoestima ocasionada pela dificuldade em aceitar a perda de cabelo. "Para mim, era inadmissível uma mulher careca", conta. Ela costumava passar horas em frente ao espelho antes de sair, para disfarçar as falhas no couro cabeludo. "Apesar disso, nunca me privei de pintá-lo ou deixá-lo maior. Eu tinha uma vida normal nesse aspecto."

A psicóloga Rosane Granzotto explica que a dificuldade em aceitar a perda dos fios acontece em razão da relevância que as mulheres costumam atribuir ao cabelo. "Ele faz parte da imagem, do modelo estético que a cultura perpetua para a mulher. A perda dos fios é como a ausência de uma parte do corpo feminino e esse fato requer uma reconfiguração da autoimagem."

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Freitas diz que pensava ser 'inadmissível' uma mulher assumir a calvície
Imagem: Arquivo pessoal

Há três anos, Fernanda mudou os hábitos e passou a adotar uma rotina que considera mais saudável. Aprofundou-se em estudos sobre alimentação e começou a publicar vídeos no YouTube.

"Fui lendo sobre o assunto e percebi como os remédios eram prejudiciais para o meu organismo. Eu não comia alimentos industrializados, mas me entupia de medicamentos e decidi, há pouco mais de um ano, parar de consumi-los", relata.

Mas, sem os remédios e com o estresse das provas da faculdade - ela cursa Nutrição -, os fios passaram a cair ainda mais e novas falhas apareceram. O cabelo ficou cada vez mais escasso.

"Eu já não conseguia mais disfarçar, mas tinha que gravar vídeos e atender meus clientes", comenta Fernanda, que trabalha como life coach. Ela comprou uma peruca sob medida, com fios humanos. "O problema é que demoraria três meses para chegar, porque viria da China. Então não me restavam muitas opções, mas eu não cogitava voltar aos medicamentos."

Diante da falta de opções, raspar os fios virou a melhor alternativa. "Eu chorei muito, mas não havia outra saída", diz. O marido apoiou a decisão da mulher. "Ele viu o meu sofrimento e me incentivou a ficar careca."

Liberdade

Mas, ao se olhar no espelho, depois de raspar os fios, Fernanda teve a maior sensação de liberdade de sua vida. "Eu me enxerguei de verdade pela primeira vez. Parece que o cabelo me escondia", conta. No mesmo dia, a jovem publicou uma foto mostrando o novo visual em suas redes sociais. "Contei toda a minha história com a alopecia areata. Muitas pessoas me elogiaram e me apoiaram. Foi muito lindo", diz.

A jovem nunca chegou a utilizar a peruca comprada na China. "Quando ela chegou, usei algumas vezes por brincadeira, mas nunca para sair nas ruas ou algo do tipo. Hoje em dia me sinto mais bonita careca."

Já para a publicitária Carla Lambert, de 36 anos, as perucas foram constantes companheiras durante parte de sua vida. "Não queria que as pessoas vissem que eu não tinha cabelo, porque isso para mim era o fim. Eu me achava um extraterrestre e preferia esconder isso", comenta à BBC News Brasil.

Carla sofre com problemas capilares desde os 15 anos, quando notou uma pequena falha em sua nuca. Aos 22 anos, pouco após o nascimento de seu filho, ela se separou, enfrentou um período de depressão e a queda dos fios passou a ser intensa, embora contida com um tratamento com medicamentos que fez até os 31 anos.

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Antes de aceitar ficar calva, Carla usava apliques e fazia penteados para ocultar falhas nos fios
Imagem: Arquivo pessoal

"Mas chegou uma fase em que caía mais do que crescia e isso foi me preocupando e deixando a minha autoestima cada vez pior. Essa situação estava me consumindo e me deixava insegura em todos os aspectos da vida", relembra.

Aos 32 anos, foi diagnosticada com alopecia areata universal. "Os tratamentos não faziam mais efeito, a queda era muito intensa e decidi raspar", diz a publicitária. Ela passou a usar perucas o dia inteiro, mas perdeu a vontade de sair de casa. "Eu morria de vergonha, nunca estava bem e nada era motivo para comemorar."

Com terapia, ela passou a lidar melhor com a doença e a se sentir bonita mesmo sem cabelo. Mas ainda não saía sem peruca. Até o dia em que precisou ir buscar o jantar na portaria do prédio e não tinha como pegar a peruca, trancada no banheiro.

"Meu noivo estava tomando banho, com a porta trancada. Por uns instantes, não soube o que fazer", narra. Diante do impasse, decidiu sair calva pela primeira vez. "Depois que peguei a comida, enquanto subia para o meu apartamento, tive uma sensação incrível de liberdade. No dia seguinte, saí de casa careca."

As perucas passaram a ser apenas acessórios e deixaram de ser obrigação para a publicitária. "Hoje, uso quando tenho vontade. Eu nunca pensei que fosse me sentir linda careca, mas consegui."

Nas ruas, Carla diz nunca ter ouvido comentários ofensivos. "As pessoas normalmente me perguntam sobre a minha careca e acreditam que sou assim por questão de estilo."

Superando os comentários negativos

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'Hoje, me acostumei a chamar a atenção. Se vou a um lugar e ninguém me olha, acho estranho', conta ilustradora
Imagem: Arquivo pessoal

Certa vez, a ilustradora Lolla Angellucci, de 38 anos, andava pela rua quando um carro com vários homens passou perto dela e um dos rapazes a ofendeu. "Ele perguntou se eu tinha sido pega pela Febem (fundação que cuidava de menores reeducandos)", relembra.

A ilustradora, que possui alopecia areata, conta que os comentários negativos fazem parte de sua rotina. "É o que mais escuto em minha vida. As pessoas sempre apontam. Uma vez passei em frente à casa de uma senhorinha e ela disse que eu tinha ficado bem feia de cabelo raspado", diz. Outra situação que a incomoda são os constantes abraços de desconhecidos. "Eles acham que eu tenho câncer e vêm me abraçar. A última coisa que quero é ser abraçada por alguém que não conheço."

Os contratempos, no entanto, não costumam afetar Lolla atualmente. Ela afirma ter aprendido a lidar com a situação.

"Eu demorei muito para me aceitar. Foi um processo difícil e longo. Não sei direito quanto tempo demorou, foram anos. Atualmente lido bem com o fato de ser careca", diz. "Hoje, me acostumei a chamar a atenção. Se vou a um lugar e ninguém me olha, acho estranho."

Lolla é divorciada e criou um perfil no Tinder, no qual costuma avaliar possíveis pretendentes pelo modo como eles encaram o fato de ela ser calva. "Recebo abordagens do tipo: 'gostei de você, apesar desse defeito'. Eu acho isso ótimo, porque descarto o rapaz logo de cara."

"Há homens também que dizem: 'olha, aprovei'. Eu sempre agradeço e respondo que a aprovação deles era tudo o que eu estava esperando para a minha vida", ironiza.

A confiança da ilustradora foi conquistada após muitas dificuldades que enfrentou em razão da alopecia, diagnosticada quando ela tinha poucos meses de vida. "A minha mãe conta que eu tinha muitos redemoinhos no cabelo desde que era recém-nascida. Por isso, ela procurou um médico e descobriu a doença."

Na infância, ela sofria com as diversas falhas que possuía no cabelo. "Isso chamava a atenção das pessoas. Lembro que minha mãe andava com um atestado médico quando a gente saía, para provar aos outros que não era nada contagioso", conta.

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Lolla aponta para a autoaceitação como fator crucial em seu processo para lidar com a alopecia
Imagem: Arquivo pessoal

Durante toda a infância e até o início da vida adulta, Lolla fez tratamentos para tentar reverter a queda capilar. "O meu cabelo crescia por um tempo, mas depois voltava a ficar ralo", diz. No período da faculdade, metade do cabelo dela havia caído. "Eu chorei no banheiro muito mais do que gostaria de admitir. Não havia mais jeito de eu disfarçar a minha falta de cabelo", relembra.

Por anos, ela usou peruca para disfarçar os problemas capilares. Com o passar do tempo, Lolla raspou o cabelo e decidiu assumir a calvície. "Foi como uma saída do armário. Hoje, enxergo que sair de casa careca é uma forma de inspirar outras mulheres que também passam por isso."

A vida depois da perda de cabelo

Para Fernanda de Freitas, a autoaceitação foi o passo mais importante após ficar calva. "Eu mudei meu modo de enxergar as coisas quando me aceitei. Percebi que o mundo muda quando me vê bem comigo mesma", afirma.

O tricologista Ademir Leite diz que existem diversos tratamentos capilares que podem auxiliar em doenças que causam a perda do cabelo. "Mas isso depende de um conjunto de fatores. É importante, primeiro, eliminar a causa dessa perda capilar. Depois, o paciente precisa ter disciplina para seguir o tratamento", explica.

Leite destaca que casos de mulheres que passaram a aceitar a calvície e desistiram de tratamentos têm se tornado comuns. "Muitas entendem que é preciso seguir em frente e que o cabelo é parte da identidade, mas não representa tudo o que ela é."

Para Fernanda, é preciso ponderar se vale a pena procurar algumas alternativas para manter os fios. "Hoje existem muitos tratamentos e é sempre importante as pessoas procurarem especialistas no assunto. Mas também é fundamental analisar até que ponto é necessário usar muitos remédios por conta disso. Cabelos são apenas fios, não definem quem cada um é."

Lolla acredita que é importante que as mulheres falem sobre questões relacionadas à queda capilar. "Hoje, enxergo que a minha função é contar a minha história, para que as mulheres carecas, seja por conta de câncer, alopecia ou outro motivo, possam reconstruir a autoestima perdida", afirma.