De onde vem o papel da primeira-dama e a tradição de fazer trabalho social
Neste trecho do discurso que fez em libras, a língua brasileira de sinais, na posse do marido, Jair Bolsonaro, na terça-feira, Michelle Bolsonaro reiterou sua vontade de trabalhar com ações sociais - principalmente com os surdos. Naquele momento, ela se tornava a primeira mulher de um chefe de Estado brasileiro a discursar nesse tipo de cerimônia.
A ex-secretária parlamentar já havia declarado ter recebido "um chamado de Deus" para as ações sociais que ela já fazia de maneira voluntária na igreja evangélica que frequenta, e avisou que seguiria esse mesmo caminho quando se tornasse primeira-dama.
Se Michelle realmente se dedicar à assistência social nos quatro anos de mandato de Bolsonaro, ela percorrerá o mesmo caminho da grande maioria de suas antecessoras.
A advogada e ex-miss Marcela Temer, a quem Michelle substituiu, foi embaixadora do Criança Feliz, programa social que o governo de seu marido, Michel Temer, lançou em 2016. É um projeto que trabalha com o desenvolvimento das crianças que recebem o Bolsa Família.
Mas será que é uma obrigação das mulheres dos presidentes fazer caridade ou trabalhos sociais?
A BBC News Brasil dá um panorama sobre o papel das primeiras-damas no Brasil e mostra a origem desse termo.
Origem do termo primeira-dama
A designação "primeira-dama" surgiu nos Estados Unidos em meados do século 19.
Segundo a Associação Histórica da Casa Branca, não há registro de uma data oficial de quando esse termo passou a ser usado - nem especificamente com qual mulher de chefe de Estado.
Em um livro publicado 40 anos após sua morte, Martha Washington, mulher do primeiro presidente dos Estados Unidos, George Washington, já há uma referência a ela como "primeira-dama da nação".
Até o termo "primeira-dama" ser adotado, os norte-americanos se referiam à matriarca da Casa Branca como "Lady" (Dama), "Esposa do presidente" ou "Senhora Presidente".
É a partir do governo do 22º presidente americano, Grover Cleveland, entre 1885 e 1889, que começam a aparecer com mais frequência na imprensa referências à sua mulher, Frances Folsom Cleveland, como "a primeira-dama da nação".
Entre 1929 e 1932, o termo é encurtado na imprensa para "primeira-dama" nas referências a Lou Hoover, mulher do presidente Herbert Hoover.
Desde então, a designação foi cada vez mais sendo usada até virar o título oficial das companheiras de chefes de Estado.
Função no Brasil
O Brasil seguiu o modelo americano de republicanismo. E assim como acontece nos Estados Unidos, a mulher ou o marido do chefe de Estado brasileiro não tem nenhuma função administrativa no governo. Não há nenhuma atividade definida pela Constituição para cônjuges dos mandatários.
Toda a atividade que venha a ser exercida é voluntária e, portanto, sem remuneração. As verbas para essas atividades, no entanto, precisam sair da cota destinada ao Poder Executivo.
"Ser uma primeira-dama nada mais é do que ter uma posição, um status meramente simbólico. Não há nenhuma competência para essas cônjuges, a não ser que o presidente a designe para ocupar um cargo de natureza assistencialista. Aquelas que acabaram tendo alguma importância historicamente foi mais por causa da personalidade do que por algo efetivo que tenham feito", diz à BBC News Brasil Carlos Fico, historiador e professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Reecentemente, o presidente francês Emanuel Macron tentou oficializar a função da primeira-dama em seu país, mas sofreu críticas e até um abaixo-assinado por parte da população que achou que se tratava de nepotismo com a mulher, Brigitte.
Para Fico, tentar dar uma função a uma mulher apenas pelo fato de ela ser casada com um mandatário é uma atitude machista.
"É um papel de submissão. Não faz sentido o simples fato de você ser mulher do cara te levar a ter uma posição específica", afirma. "Isso é ridículo, é uma visão machista de que toda mulher está por trás de um grande homem. Em países onde o machismo e essas visões tradicionalistas são menos fortes, os cônjuges dos chefes de Estado prosseguem sua vida e não têm nada a ver com o governo."
Início do assistencialismo
No início da República no Brasil, cabia às primeiras-damas aquele que era tido como o papel das mulheres à época: cuidar dos afazeres domésticos. Além disso, elas acompanhavam os maridos nos eventos oficiais.
A partir de 1915, as primeiras-damas começam a aparecer fazendo caridade.
É naquele ano que Maria Pereira Gomes, mulher do então presidente Venceslau Brás, promove uma festa na Quinta da Boa Vista, no Rio, para arrecadar dinheiro para as pessoas que estavam sofrendo com a seca no Nordeste.
Esse caráter assistencialista das primeiras-damas vai ganhar mais destaque quase 30 anos depois, em 1942, com Darcy Vargas, mulher do presidente Getúlio Vargas.
É quando ela, uma dona de casa que já se ocupava de trabalhos sociais, cria a LBA, a Legião Brasileira de Assistência, entidade que se tornaria símbolo do trabalho voluntário feminino no país durante décadas.
A LBA foi criada para atender às famílias dos soldados brasileiros que lutavam na Segunda Guerra Mundial (1939-1945).
Com o fim da guerra, a organização passou a ajudar famílias necessitadas em geral, fornecendo alimentos e promovendo cursos de capacitação para mulheres.
Até a sua extinção, em 1995, a LBA se tornaria a principal ocupação das primeiras-damas no Brasil - praticamente todas desde Darcy Vargas, incluindo as do período militar, ocuparam algum cargo de direção na entidade.
Essa característica assistencialista das primeiras-damas ganha mais força quando Juscelino Kubitschek chega ao poder em 1951.
Sua mulher, Sarah, que havia criado uma rede de caridade em Minas Gerais - as Pioneiras Sociais, quando o marido era governador -, ampliou o trabalho da entidade para mais dez Estados.
Além disso, ela inaugurou diversos hospitais, incluindo alguns flutuantes para atender à população ribeirinha no Amazonas.
Para a doutora em ciência política Graziella Guiotti Testa, na base dessa percepção antiquada da primeira-dama como aquela que faz caridade, a que vai ajudar os pobres, estão dois conceitos claros de política e sociedade que definem o papel do Estado e o da mulher.
"Essa visão da primeira-dama que faz obra social se encaixa nesse contexto do Estado paternalista, que é o pai que ajuda. E a mulher que é responsável pelo cuidado. Então, ela vai ter a função de ajudar aqueles filhos relegados do Estado que é pai e que é bom, bem na noção populista, desses populismos que estão se fortalecendo na América Latina, tanto de direita quanto de esquerda", diz.
Corrupção na LBA
No governo de Fernando Collor (1990 a 1992), a primeira-dama se viu envolvida em um escândalo de corrupção e, por consequência, abalou decisivamente a reputação da LBA.
Presidindo a entidade, a ex-recepcionista e então primeira-dama Rosane Collor foi acusada de desviar dinheiro da caridade para familiares - mais precisamente, ao superfaturar o preço do leite em pó.
Ela negou todas as acusações. Após ser condenada por corrupção ativa e passiva em primeira instância, conseguiu anos depois ser absolvida em instâncias superiores.
Coube à antropóloga e professora Ruth Cardoso, na presidência de seu marido, Fernando Henrique Cardoso, acabar com a Legião Brasileira de Assistência, em 1995.
Ruth criou o Comunidade Solidária, organização responsável por programas sociais e de voluntariado. E também o Alfabetização Solidária, que envolvia estudantes universitários na alfabetização de jovens e adultos pelo Brasil.
"A Ruth Cardoso tentou reverter essa tradição assistencialista tentando não apenas 'dar o pão'. Ela adotou um padrão de comprometimento mais social. E ela odiava ser chamada de primeira-dama, não gostava desse título e tentou romper com esse papel assistencialista", diz o historiador Fico.
Também primeira-dama por oito anos, como sua antecessora, Marisa Letícia optou por não realizar nenhuma atividade durante o governo do marido, Luiz Inácio Lula da Silva. Ela, que militou no movimento sindicalista e foi babá e inspetora escolar, apenas acompanhava o presidente em atividades oficiais, o que gerou críticas da oposição.
Para alguns especialistas, essas críticas surgem não porque haja obrigação alguma das primeiras-damas fazerem algum tipo de trabalho voluntário, mas porque elas estariam jogando fora o enorme poder simbólico que têm, o chamado "soft power".
Por conta desse poder simbólico, a cientista política Graziella Testa acha que as primeiras-damas deveriam tentar ter uma atuação política maior.
"Simbolicamente, uma primeira-dama que tomasse para si atividades que não necessariamente são voltadas para o feminino e para o cuidado teriam um impacto enorme. Espaço tem e você tem visibilidade e possibilidade de fazer uma atuação política."
Algumas primeiras-damas que conseguiram uma atuação política maior chegaram até à Presidência.
Na Argentina, por exemplo, Cristina Kirchner foi eleita presidente assim que terminou o mandato de seu marido, Néstor, em 2007.
E nos Estado Unidos, a ex-primeira-dama Hillary Clinton disputou a Presidência com Donald Trump em 2016.
Nos Estados Unidos, aliás, a primeira-dama com maior poder simbólico nos últimos anos foi Michelle Obama, mulher do primeiro presidente negro do país, Barack Obama.
A advogada não ficou apenas se dedicando a programas humanitários como é costume por lá. Ela aproveitou sua posição de destaque e fez muitos discursos sobre racismo. E logo virou exemplo para diversas meninas negras.
Michelle Obama também participou ativamente do governo do marido ajudando a lançar vários programas educativos, inclusive para outros países. Hoje, ela roda o mundo ganhando dinheiro para fazer palestras e falando de seu livro de memórias que acabou de lançar.
Primeiro-marido
E quando se trata de um homem o marido do governante ou da governante do país, você sabe como ele é chamado?
Não existe um termo oficial, mas normalmente é primeiro-marido ou primeiro-cavalheiro.
Gauthier Destenay é o primeiro-marido de Luxemburgo. Ele é casado com o primeiro-ministro do país, Xavier Bettel.
O arquiteto tem uma vida independente da do marido, mas costuma acompanhá-lo em alguns eventos e viagens oficiais. Em 2017, uma foto em em que ele aparecia como o único homem em meio a nove primeiras-damas fez sucesso nas redes sociais.
O encontro de cônjuges dos mandatários aconteceu durante uma reunião de líderes da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan).
O Reino Unido e a Alemanha, que são governados por primeiras-ministras, também têm seus primeiros-maridos. E eles quase nunca aparecem em público, nem fazem trabalhos sociais ou dão entrevistas.
O da britânica Theresa May, Philip May, trabalha no mercado financeiro. E se mantém longe dos holofotes.
O mesmo acontece na Alemanha. O marido da primeira-ministra Angela Merkel, Joachim Sauer, é professor universitário e raramente acompanha a mulher em eventos oficiais.
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