Drag queens que contam histórias a crianças chegam à área religiosa dos EUA
Eventos de leitura de livros estão se deslocando de grandes metrópoles para incluir também, cidades rurais e conservadoras dos Estados Unidos; reação tem sido mista.
Um grupo de drag queens está no centro de uma pequena sala, em uma biblioteca pública de Greenville, na Carolina do Sul. As roupas coloridas e a maquiagem forte contrastam com as paredes beges do ambiente.
As crianças entram e olham rapidamente para elas, antes de começar a correr e brincar.
"Há cinco drag queens andando pela sala e nenhuma criança veio até aqui dizer que somos esquisitas", diz a drag queen Rylee Hunty.
"Crianças vivem no seu próprio mundo da fantasia e nós nos enquadramos nele."
As crianças sentam-se no chão e Rylee começa a ler. Depois de uma ou duas páginas, ela é interrompida por uma menina que a chama de "princesa" e oferece uma pulseira.
O clima de descontração dentro da biblioteca contrasta com a cena que se vê do lado de fora. Policiais armados monitoram manifestantes contrários e a favor do projeto de leitura liderado pelo grupo de drag queens. Os dois grupos gritam palavras de ordem um ao outro, debaixo da chuva.
O "Drag Queen Story Hour" (Hora da leitura drag queen) foi criado em San Francisco em 2015 e, desde então, tem se espalhado pelos Estados Unidos e o mundo.
Segundo o site oficial da iniciativa, a "DQSH captura a imaginação e o jogo da fluidez de gênero da infância", e permite que as crianças "possam ver pessoas que desafiam restrições rígidas de gênero e imaginar um mundo onde pessoas se vestem como querem".
Agora, quem defende o projeto quer que ele chegue ao religioso e conservador meio-oeste americano.
Jonathan Hamilt, membro do Drag Queen Story Hour em Nova York, disse à BBC News que ele viu um "crescimento exponencial no número de eventos nos Estados rurais, mais conservadores e localizados ao sul dos Estados Unidos".
"Tivemos eventos no Nebraska, em Indiana e no Alabama. Acho que, em parte, é uma reação ao cenário político dos Estados Unidos."
Hamilton diz que eventos em áreas rurais costumam enfrentar mais protestos.
"As pessoas tendem a ser mais conservadoras. E o medo delas pode se manifestar como raiva."
Rylee diz que sua intenção é mostrar para as crianças de Greenville que existe diversidade na cidade.
"Eu soube desde cedo que eu era diferente. Se eu tivesse tido contato com isso mais cedo, talvez eu tivesse sido mais feliz no ensino médio e menos confusa, triste e ansiosa", diz.
"Eu me sentia uma pessoa ruim. Você está no sul dos Estados Unidos. (As pessoas pensam) que, se você é gay ou diferente, você vai para o inferno."
Esse mesmo sentimento é compartilhado por Princesa Mocha, outra drag queen que participa do projeto de leitura.
Ela caminha por entre as crianças de salto alto e macacão rosa, perguntando se o animal preferido do grupo é girafa ou elefante.
Os olhos das crianças seguem Mocha, atentos. "Vocês vão mover montanhas, crianças", lê ela, antes de fazer uma pausa e olhar para o público. "Vocês realmente vão", acrescenta.
No dia do evento, as ruas ao redor da biblioteca foram fechadas, e a segurança foi reforçada diante da ameaça de violência contra o público que resolveu assistir e participar do Drag Queen Story Hour.
Amanda Osborne, uma das organizadoras, disse que se assustou com as "ameaças veladas e diretas contra os participantes e as drag queens".
"Desde a semana passada há guardas armados em frente à biblioteca local."
A oposição ao projeto foi liderada pelos grupos de Facebook "GOP Politics South Carolina" e "Greenville Tea Party", que organizaram uma "reunião comunitária pró-família" para coincidir com o horário da leitura.
"Eles estão ativamente promovendo o pecado e o que é errado, e estão fazendo isso com crianças", argumenta Jan, uma das manifestantes presentes ao protesto do lado de fora da biblioteca.
"O que eles fazem nas suas próprias casas e em algumas casas noturnas entre adultos que podem dar consentimento, tudo bem. Mas não envolvam crianças."
A biblioteca, como uma instituição pública, está sob proteção da Primeira Emenda da Constituição Americana, que garante a liberdade de expressão.
Num comunicado, os administradores da biblioteca disseram que "áreas de reunião são disponibilizadas de maneira equitativa, independentemente das crenças e filiações dos indivíduos ou grupos que requisitam o espaço".
Jan discorda. "Era preciso seguir padrões comunitários de decência", diz ela. "Se um grupo não segue essas regras, ele não deveria poder fazer reuniões na biblioteca."
Jan relaciona o evento das drag queens com o que diz ser uma tendência nos Estados Unidos.
"Eu não vejo porque os direitos delas deveriam atropelar os nossos. Parece que é isso que sempre acontece na nossa sociedade. Elas querem ser consideradas vítimas e ter direitos especiais", argumenta.
Em resposta aos protestos contra o evento, várias pessoas que apoiam o projeto também compareceram à biblioteca.
Apesar da controvérsia, ou talvez graças a ela, o evento recebeu um público grande e novos dias para leituras foram marcados.
Amanda Garrett sempre viveu no sul dos Estados Unidos. "Eu fico incomodada em ver pessoas se dizendo conhecedoras da moral do sulista ou que se apresentam como donas dos valores da comunidade", critica.
O filho dela, Alex, passou a tarde na biblioteca, participando da leitura.
"As drag queens estão se divertindo e parecem confiantes em ser quem são. Se Alex quiser, ele pode ser assim também", diz Amanda Garrett.
Christia Spears Brown é professora de psicologia da Universidade de Kentucky e estuda desenvolvimento de gênero em crianças. Ela diz à BBC News que eventos como esse podem "ter efeitos positivos em crianças pequenas, se elas se sentirem capazes de se expressar".
"Por outro lado, sabemos que pode haver impacto negativo em crianças que possam ser alvo de pressão para se enquadrar nos padrões predominantes", diz Brown.
"Essas crianças não são psicologicamente estáveis."
De qualquer maneira, Brown destaca que a "cultura pode apoiar ou não a identidade de gênero de uma criança, mas não criar essa identidade".
"É preciso deixar claro que você não pode fazer uma criança virar gay ou transgênero. A grande maioria das pessoas LGBT cresceu tendo heterossexuais como modelo", afirma.
"A frequência com que um estereótipo de gênero tradicional é reforçado - toda a vez em que uma criança usa um banheiro masculino ou feminino e é chamada de menino ou menina - é muito maior que as vezes em que há um questionamento de gênero, como a leitura de um livro por uma drag queen."
Análise de Wayne Wiegan, professor de biblioteconomia da Universidade do Estado da Flórida.
A tradição de eventos de leitura nos Estados Unidos começou em 1800, em Hartford, no Estado de Connecticut. Caroline Hewins criou um programa de leitura em voz alta e, ao final do século 19, esse tipo de evento se tornou comum em todo o país.
As bibliotecas públicas fizeram um bom trabalho convencendo o público de que agia de forma imparcial. Mas, ao longo da história, elas tiveram respostas inconsistentes à Primeira Emenda da Constituição americana.
No início do século 20, reuniões entre socialistas e comunistas eram permitidas nas bibliotecas. Mas, durante a Guerra Fria, isso deixou de ser verdade.
Durante o movimento por direitos civis nos EUA, houve vários protestos por famílias negras contra leituras do livro Little Black Sambo em bibliotecas públicas. O livro era acusado de ser racista e vários estabelecimentos o retiraram das prateleiras.
A passagem do tempo tem a tendência de modificar os horizontes morais.
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