A grande farsa do escritor trans que nunca existiu
Há duas décadas, um transgênero ex-profissional do sexo que se tornara escritor virou um sucesso - mas ele não existia. Agora que um novo filme sobre a farsa está sendo lançado, Kaleem Aftab conversou com a pessoa que estava por trás de tudo
De pseudônimos a memórias fantasiosas, o mundo literário sempre esteve cheio de enganações.
Mas a farsa mais descarada, chocante e bombástica de todas é certamente a de JT LeRoy, o adolescente transgênero HIV-positivo que, na virada do milênio, tornou-se uma sensação global com seus romances aparentemente semi-autobiográficos que tratavam de abusos na infância, famílias desmembradas e trabalhos sexuais.
Como acabou sendo revelado, em 2005, na verdade os livros de LeRoy haviam sido escritos por uma americana de meia-idade chamada Laura Albert - e que não era HIV-positiva, transgênero ou profissional do sexo.
Ela havia pedido a outra mulher, Savannah Knoop, sua cunhada na época, que colocasse uma peruca, um chapéu fedora e óculos escuros para posar como se fosse o autor, em público e em aparições para a mídia, incluindo na capa de várias revistas conhecidas.
Para complicar ainda mais as coisas, Albert acompanhava LeRoy em aparições públicas, fazendo-se passar por Speedie, sua assistente britânica.
Isso em todo lugar com exceção do Reino Unido, onde, preocupada que seu falso sotaque britânico pudesse levantar suspeitas, ela aparecia ao lado de LeRoy como sua amiga de infância Emily Frasier.
LeRoy era regularmente fotografado em eventos sociais com celebridades de Hollywood, viajou o mundo em turnês de promoção de seu livro e apareceu no tapete vermelho do Festival de Cannes, na França, para promover uma adaptação para o cinema de seu livro - "The Heart Is Deceitful Above All Things" ("O Coração Engana Acima de Tudo"), de 2004.
Entrevista bizarra
Olhando em retrospecto, parece absurdo que elas tenham conseguido montar essa farsa tão abertamente. Ainda assim, eu fui uma das pessoas que foram enganadas de perto - na verdade, em abril de 2005 eu fiz uma das últimas entrevistas com LeRoy / Knoop antes que a mentira fosse exposta pela revista "New York", quando o autor chegou a Londres para a exibição do filme no Festival de Cinema Gay e Lésbico de Londres.
Ter a chance de estar frente a frente com o celebrado escritor parecia um grande feito, mas eu deveria ter percebido que alguma coisa estava seriamente fora do lugar, por ter sido uma entrevista tão bizarra e caótica.
Uma hora antes de sentarmos para o encontro, a entrevista foi cancelada, depois confirmada, depois cancelada de novo, até que eu fui finalmente informado de que eu teria apenas 15 minutos com ele.
Havia várias pessoas na sala, e um LeRoy hostil claramente não queria estar ali; sua perna tremia violentamente durante a conversa, e suas respostas foram extremamente evasivas.
Quando eu estava saindo, sua "amiga" Frasier pediu para falar comigo - e, estranhamente, ficou me perguntando se eu tinha lido os livros e gostado.
"Mas aquele era o personagem, certo? Aquela raiva, com ansiedade", diz Savannah Knoop, de forma irônica, ao ser lembrada de nosso encontro, 14 anos depois.
Nós nos encontramos novamente em Londres, onde Knoop promovia um novo filme de Hollywood, " Jeremiah Terminator LeRoy" , que conta toda o caso e encerrou o BFI Flare Film Festival. O filme traz as atrizes Kristen Stewart, como Knoop, e Laura Dern, como Laura Albert.
Em termos de reencontros, revê-la foi, inevitavelmente, uma experiência surreal. Livre da persona LeRoy, Knoop está agora tomada por uma confiança e uma autoridade arrogantes.
Entretanto, um ponto interessante de semelhança entre a Knoop que se fazia passar por LeRoy e a Knoop de hoje, além de seu gosto eclético para moda, é o fato de que Knoop avançou na direção da fluidez de gênero de LeRoy - ela parou de utilizar para si o pronome feminino "she" (ela, em inglês) para usar o pronome "they" (que em inglês significa o plural "eles", mas pode ser usado quando não se sabe o gênero da pessoa de quem se fala).
"They é uma palavra inventada, e eu gosto de como ela é confusa e desconfortável", diz Knoop. "Quando eu estava na graduação, havia uma garotada que de alguma forma era pós-gênero, e todos eles usam 'they'."
Sem arrependimentos
O novo filme começa com Knoop sendo convencida por Albert a se vestir como o escritor. Na época já perto dos 40 anos, Albert precisava de um avatar em que ela pudesse confiar que fosse jovem o suficiente e suficientemente andrógino para passar por um homem trans.
"Foi um grande trabalho de escolha de elenco", diz Knoop, que adorou ter sido interpretada/o por Stewart no cinema - que ela/ele chama de "o atual James Dean".
Knoop parece não ter nenhum remorso em relação ao episódio e acabou abraçando a notoriedade: o novo filme é uma adaptação de seu livro "Garota Encontra Garoto: Como Eu me Tornei JT LeRoy".
Ao mesmo tempo, ela/e se tornou um artista performático de sucesso, com trabalhos nos museus Whitney e MoMa, em Nova York, entre outros. O que leva à pergunta: fazer-se passar por LeRoy teria sido na verdade um movimento esperto para avançar em sua carreira artística?
Knoop diz que não. Ela/ele alega ter sido ingênua/o a respeito do que estava fazendo. "Na época, eu não sei se entendia isso como sendo arte performática", diz, embora admita que "uma performance gera muita adrenalina e se torna uma coisa em que você busca essa sensação".
E será que ela/ele vê o que fez como uma trapaça? Knoop tende mais a ver o que aconteceu como um "experimento artístico".
"Eu acho que é bem complicado quando você olha para o lado ético. Eu acho que nessas experiências de ser LeRoy no começo, era quase desestabilizadora a forma como você pensava que as coisas funcionavam ou poderiam funcionar", diz ela/ele, de maneira criptografada. "Era uma questão de me engajar com a ética de tudo aquilo, mas estando meio confusa/o!"
O apelo da vitimização
Se existe alguma culpa a ser atribuída numa situação como essa, Knoop passa a responsabilidade para a mídia e os leitores, que abraçaram LeRoy tão facilmente.
"As pessoas estavam consumindo sua vitimização, aquilo era parte da narrativa."
Realmente, parte do motivo pelo qual Albert escolheu Knoop como a versão pública de LeRoy, em vez de simplesmente manter sua persona invisível, foi o fato de que ela percebeu que o apelo de JT LeRoy estava ligado à autenticidade da identidade alternativa de seu personagem.
Por isso, quando foi revelado que LeRoy era uma invenção, as pessoas ficaram mais indignadas do que quando, por exemplo, o escritor policial Robert Galbraith foi desmascarado como sendo ninguém menos que JK Rowling (a criadora de "Harry Potter").
As pessoas não estavam conectadas a Galbraith e sua persona masculina de meia-idade sem graça da mesma forma como estavam com a imagem de LeRoy, de um "profissional do sexo transgênero que virou escritor".
A questão toda sobre o que é arte "autêntica" - e se autenticidade tem alguma importância - tem sido polêmica há muito tempo.
No século 18, por exemplo, Samuel Johnson criticou duramente o escritor escocês e trapaceiro James MacPherson por ter escrito e publicado, com grande sucesso, "The Works of Ossian" ("Os Trabalhos de Ossian"), que ele alegava ser uma obra de um esquecido poeta do século 3. Ainda jovem, Michelangelo esculpiu um cupido dormindo e depois enterrou a peça para poder vendê-la como antiguidade.
Entretanto, a questão tornou-se ainda mais complicada no século 21, graças tanto à ascensão da política de identidade e às enganações vistas em redes sociais.
Autenticidade é importante?
Talvez obviamente, considerando o papel desempenhado por Knoop na farsa, ela/ele acredita que autenticidade seja algo excessivamente valorizado enquanto atributo para contar uma história e que a ideia de identidade enquanto uma "qualificação" para alguém escrever alguma coisa é problemática.
"Nós estamos num ponto agora em que você tem de ficar na sua área. Você só pode falar exatamente a partir da sua própria experiência."
Knoop cita o recente protesto contra a exibição do quadro "Open Casket", de Dana Schutz, na Bienal do Whitney, em Nova York. Nele, a artista branca expõe o assassinato de Emmett Till, um garoto negro de 14 anos de idade, em 1955.
Muitos críticos consideraram um exemplo ofensivo de apropriação cultural. Knoop compara a esse caso o tratamento que ela/ele e Albert receberam. "Ele levanta a questão sobre se é aceitável imaginar-se na posição de outra pessoa ou não. Qual é o papel da arte, afinal?"
É preciso dizer que, para Knoop, o caso LeRoy foi evidentemente muito bom, embora tenha havido algumas repercussões negativas. A relação de Knoop com Albert ficou difícil há um certo tempo. Albert reclamou de Knoop, por esta/e estar escrevendo sobre LeRoy.
Ao fazer o filme, Knoop deixou que os produtores assumissem as negociações com Albert. "Nós nos falamos um pouco, mas é mais na linha de respeito mútuo e distância", ela/ele diz.
O filme mostra como Knoop já havia se rebelado contra Albert antes de a farsa ser revelada: ela/ele se recusou a ser uma marionete e enfrentou Albert a respeito da imagem pública de LeRoy. No entanto, onde Knoop tem um pouco de arrependimento é em relação a Albert - e à maneira como o trabalho das duas foi desmoralizado.
"O que foi incompreensível para mim foi que, de repente, esses livros de JT LeRoy não existiam mais. Isso me parece tão estranho."
O lirismo e a poesia dos livros, que haviam sido elogiados por críticos, foram imediatamente esquecidos quando Albert foi desmascarada. Ela saiu de cena, reaparecendo apenas em 2016, no documentário "Author: The JT LeRoy Story".
No mesmo ano, "The Heart is Deceitful Above All Things" foi finalmente relançado com a foto de Laura Albert na página do autor e uma biografia que diz: "JT LeRoy é uma persona literária criada por Laura Albert".
Mesmo assim, a escritora, hoje com 53 anos, nunca foi capaz de eliminar a sombra de ser uma farsante e, ao contrário de Knoop, não recebe nenhum louro por ter criado uma das maiores farsas literárias deste milênio.
O fato de Knoop poder capitalizar todo o caso por meio de sua reveladora história pessoal, enquanto a escritora Albert é hoje uma esquecida "fake", talvez diga alguma coisa sobre o que valorizamos na cultura de hoje em dia.
"Você só pode falar exatamente a partir de sua experiência", diz Knoop. "Se você sai dela, tudo perde o valor. Você é punido."
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