Cientista e mulher na Amazônia: as brasileiras que trabalham na região
Assim como ocorre em diversas outras áreas de atuação, o território da ciência costuma ser mais difícil de ser percorrido pelas mulheres do que pelos homens. Muitas vezes elas têm que enfrentar desafios que vão além das pesquisas propriamente ditas, como o machismo, que leva à desconfiança sobre seu desempenho profissional e intelectual.
A necessidade de conciliar viagens e trabalho de campo com a gravidez ou maternidade dificulta ainda mais a seleção delas para determinadas atividades, por vezes levando-as a cargos e funções menos valorizados.
Os obstáculos são ainda maiores e mais numerosos para as cientistas que trabalham na Amazônia, região vasta, pouco conhecida e onde o clima e o ambiente não são nada amigáveis, sem falar na violência e insegurança de alguns locais.
Para a bióloga Patrícia Schneider, da Universidade Federal do Pará (UFPA), por exemplo, que estuda a biologia evolutiva e do desenvolvimento de animais, as dificuldades de se fazer pesquisa na Amazônia "são com certeza" maiores do que em qualquer outro lugar no Brasil.
"Além da logística complicada para termos acesso aos locais da pesquisa, o clima quente e a alta umidade prejudicam equipamentos, que sofrem com contaminação por micro-organismos", diz. "Infelizmente, nossos prédios de laboratórios não têm infraestrutura para manter o condicionamento adequado e, por isso, a manutenção dos aparelhos tem que ser feita com uma frequência e custo maiores do que em outras regiões."
A também bióloga e mestre em Ecologia Fernanda Werneck, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), lembra que todo trabalho de campo, principalmente naquela região, possui riscos inerentes e acidentes não são raros, quer seja na locomoção entre locais de estudo, como, por exemplo, de carro ou naufrágios, quer seja na execução das atividades de pesquisa, quando podem ocorrer com ferramentas e cobras ou alergias.
"Na Amazônia, a dificuldade de acesso rápido a centros de tratamento médico e envio de socorro acabam apresentando risco adicional às pesquisadoras e pesquisadores", acrescenta. "Infelizmente não são raros os casos de acidentes sérios e até fatais com colegas de profissão."
Adentrar florestas com equipamentos
Os obstáculos ao trabalho científico não param aí. A zoóloga Ana Cristina Mendes de Oliveira, da UFPA, que estuda como as atividades humanas afetam os mamíferos da região, amplia a lista. Um dos itens é a dificuldade de entrar na floresta com materiais e equipamentos de pesquisa, pois geralmente as estradas são ruins, principalmente em épocas de chuva.
Por isso, muitas vezes é preciso criar uma relação com as comunidades locais para ter acesso às áreas.
"O trabalho é bastante cansativo e requer experiência não só para reconhecimento dos animais, mas para evitar situações perigosas da floresta, como ataques de bichos peçonhentos, como cobras e escorpiões, ou de porte maior, como porcos selvagens e onças", explica. "Pode haver ainda encontros com caçadores na mata, chuva com queda de árvores, que nem se sabe onde estão caindo."
Diante deste quadro, não é de surpreender que as pesquisadoras tenham muitas histórias para contar sobre os perigos que tiveram de enfrentar na floresta. E por falar em queda de árvore, bióloga Claudia Azevedo-Ramos, do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da UFPA, conheceu de perto o que é isso. Em uma ocasião, ela estava com dez alunos em uma mata na região de Paragominas (PA), a 300 km de Belém.
"Era época de chuvas e aquela semana elas estavam especialmente torrenciais, mas o trabalho precisava ser feito", conta.
À noite, o grupo estava chegando a uma clareira, quando foram pegos por uma chuva tropical daquelas que não deixam ver um palmo diante do nariz.
"Esses locais abertos na floresta são muito perigosos de se ficar numa tempestade, por serem suscetíveis aos fortes ventos", diz Claudia.
"Escolhemos nos abrigar debaixo de uma árvore secular. 'Se estava aqui há tanto tempo, não seria agora que iria cair', pensei. Mas logo ouvimos um barulho imenso, seguido de tremor de terra e a árvore milenar desabou na nossa frente. A chuva e a escuridão não nos permitiam ver nada, mas o barulho foi de fim de mundo. No dia seguinte, voltamos ao local e o cenário era de devastação completa. A planta caída havia derrubado 32 outras com ela. No final, percebemos que estávamos no único lugar em que poderíamos ter sobrevivido àquele evento. Foi muita sorte."
Sorte também teve Ana Cristina. Ela brinca que até hoje acredita que foi ajudada por uma "visagem" (um fantasma). O incidente aconteceu quando ela trabalhava na região de Tefé (AM), com comunidades da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã, a 575 km de Manaus. Ela costumava ir de Belém para aquela cidade de avião e depois pegava uma voadeira (barco da região) para viajar mais oito horas até as comunidades.
Um dia, a pesquisadora resolveu ir de barco de linha. A embarcação ia de Tefé até Letícia, na fronteira com a Colômbia, e a deixaria no meio do caminho. "Para voltar, combinei com o capitão do barco que me disse que retornaria depois de dez dias, mas não podia precisar o horário", conta. "Pois bem, na volta alguém da comunidade me deixou de voadeira no ponto combinado com o barqueiro."
Com medo de perder a embarcação, Ana Cristina passou 14 horas na beira do rio Solimões, sozinha no meio do nada, aguardando. Quando o barco passou, eram altas horas da noite e ela piscou sua lanterna desesperadamente, mas o capitão não tinha como atracar por causa da maré, que estava baixa.
"Eu senti que eles me deixariam para trás, abandonada na floresta", lembra. "Foi quando um molequinho bem pequeno apareceu em uma canoa literalmente furada, perguntando se eu queria carona até o barco. Fui tirando água da pequena embarcação, desesperada, enquanto o menino remava. Até hoje acho que aquele garoto foi uma visagem, pois não tinha nada perto de onde eu estava. Mas visagem ou não, ele salvou minha vida naquele dia. Sou muito grata àquele menino desconhecido."
Mais comuns e reais do que visagens - e também mais perigosos - são os encontros indesejáveis com animais peçonhentos. Como cobras, por exemplo. Se a pesquisadora estiver grávida, a situação é ainda mais complicada. A solução nesses casos, às vezes, também pode ser acreditar na proteção de forças desconhecidas.
Foi o que fez certa vez a agrônoma Ima Vieira, do Museu Paraense Emilio Goeldi (MPEG), que trabalha com a ecologia da floresta amazônica, dinâmica de usos da terra e restauração dos ambientes.
Ela estava em pesquisa de campo na região do município de Bragança (PA), a 220 km de Belém, grávida de sete meses de seu primeiro filho, hoje com 24 anos. Era um local perto de um igapó (parte da floresta amazônica permanentemente alagada), uma capoeira muito antiga, com cerca de 40 anos de idade.
"Ali era importante fazermos estudos, pois até então era a mais velha já estudada por nós (depois achamos uma mais velha, de 70 anos)", diz. "Era uma vegetação mais fechada, longe de vilas e com pouco acesso de pessoas. Então não havia trilhas, armadilhas de caçadores, nada."
Ela admite que ficou com um pouco de medo de entrar no matagal, mas seus dois ajudantes lhe garantiram que não haveria problemas. "Entramos para abrir picadas e demarcar a primeira parcela de inventário florístico", conta. "Após cerca de uma hora lá dentro, uma cobra aparece na minha frente, pronta para dar o bote. Dei um grito. Meus colegas logo apareceram e a espantaram para longe, mas não a mataram. Ou seja, a dita cuja ficou por ali, me apavorando. Passei o resto do trabalho pensando e cantarolando a música 'Nome Sagrado'". A música diz:
O nome de mulher é tão sagrado
Mulher é nome pra ser respeitado
A cobra não morde uma mulher gestante
Porque respeita seu estado interessante...
Sair correndo
Mas às vezes, a melhor saída é mesmo correr, fugir do perigo, como quando uma onça aparece, por exemplo. Ana Cristina, a mesma da visagem, teve uma dessas experiências. Na ocasião, ela estava em um trabalho de campo, acompanhando um grupo de pesquisadores estrangeiros, que lhe pediu para desligar um aparelho bem cedinho na floresta.
"De manhã cedo lá fui eu cumprir minha missão, quando no final da trilha topei com uma onça pintada deitada, que logicamente já estava me olhando muito tempo antes de eu enxergá-la", relata.
"Acho que minha alma saiu do corpo naquela hora. A onça, extremamente desconfortável com a minha presença, mas sem muita preocupação com grandes ameaças, resolveu levantar e eu pensei: morri. Foi então que levei o balde que tinha na mão calmamente até acima da minha cabeça na intensão de parecer maior e fui 'calmamente andando pra trás' num ato de desespero. E a onça se virou e entrou floresta adentro, como quem diz, 'que saco essa pessoa veio me incomodar aqui'. Eu voltei para o alojamento tremendo toda."
Numa região dominada pelas águas, não poderiam deixar de existir dificuldade nelas, que são os principais caminhos da Amazônia. Que o diga a pesquisadora Maria Teresa Fernandez Piedade, do Inpa, que estuda a ecologia, adaptações, crescimentos e produção de biomassa da vegetação que vive nas margens dos rios.
"Uma vez, felizmente não muito longe de Manaus, apenas cerca de 25 km, estávamos fazendo uma coleta de capins aquáticos em uma canoa de alumínio com motor de popa", conta. "Ao iniciar o retorno, a hélice do motor bateu em um tronco e ficou totalmente destruída."
Mas foi pior do que isso. Nesse momento, a equipe se deu conta de que havia apenas um remo na canoa.
"Éramos cinco pessoas e logo percebemos que não havia alternativa: teríamos que remar com as mãos", lembra Maria Teresa. "A distância não era tão grande, mas as correntezas dos rios Solimões e Negro que tivemos que atravessar eram poderosas. Felizmente tudo acabou bem. Chegamos com insolação, mas contentes a Manaus, após remar por cerca de seis horas. Atualmente todos os envolvidos são bem cuidadosos com o número de remos nas canoas."
Apesar desses obstáculos e contratempos, nenhuma pesquisadora quer deixar de trabalhar na região. As recompensas são maiores que os percalços.
"É um grande privilégio trabalhar na Amazônia", diz a própria Maria Teresa. "A geração de conhecimento sobre essa fonte fantástica de biodiversidade é inigualável. Muito ainda temos por conhecer para utilizar este patrimônio com a devida sustentabilidade, então, cada resultado e trabalho finalizado é uma grande recompensa."
Para Fernanda, que, entre outros temas, estuda os efeitos das mudanças climáticas sobre a diversidade genética, capacidade adaptativa e riscos de extinção de espécies, as recompensas são significativas.
"Temos a possiblidade de conhecer regiões incríveis, se conectar com a natureza e intrigantes questões ecológicas, trabalhar com grupos biológicos e questões científicas que nos instigam e trazem satisfação e assim gerar conhecimento essencial sobre a nossa biodiversidade e vital para sua conservação", explica. "Entretanto, ainda assim é importante ressaltar que o trabalho de campo é árduo e requer capacitação especializada e a segurança das pessoas que o fazem é um importante aspecto trabalhista e profissional a ser considerado."
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