"Médicos têm de ajudar pacientes também na hora da morte", diz enfermeira que perdeu filho de 2 anos
Todos os dias, há mais de três anos, a enfermeira americana Jessica Hanson, 31 anos, encara a foto de seu filho morto exposta na parede de casa. Na residência em que ela vive com o namorado e três filhos em Flagstaff, no Estado do Arizona, o retrato pendurado na sala mostra a mão pálida e já sem vida de Mason, que morreu em 2016 aos dois anos de idade, descansando sobre o peito da mãe, no hospital, no dia de sua morte.
A imagem, que pode incomodar quem a vê pela primeira vez e já foi até rejeitada por algumas escolas em treinamentos, que a consideraram triste demais, foi a chave para que ela conseguisse continuar a viver depois da perda do filho, garante Jessica.
"Tirar foto de alguém que já morreu é uma coisa que eu teria achado estranho se alguém me dissesse antes da morte de Mason. Mas agora não imagino como seria a minha vida sem essa foto", diz Jessica, que se considera uma sobrevivente do episódio mais horrível de sua vida: o dia em que Mason morreu atropelado pelo pai em um acidente no quintal.
"Eu olho para essa foto todo dia. É tão bonita pra mim. Me lembra que eu tive um filho. Nessa foto dá para ver que tem sangue embaixo do meu braço, de tentar reanimá-lo. Dá para ver terra embaixo das unhas dele", diz Jessica, exibindo-a para cerca de 60 pessoas que assistiam a uma palestra da educadora e enfermeira no Festival InFinito, na semana passada, em São Paulo.
A inspiração da foto foi só uma das lições que ela diz ter aprendido desde a trágica perda, que mudou também a percepção que ela tinha sobre a própria profissão.
"A morte é horrível, sim, e machuca seu coração, é insuportável. Mas eu acho que falar sobre esta minha experiência com a morte só é possível porque quando ocorreu eu tive todas as ferramentas que eram necessárias para me curar. Eu me sinto quebrada, mas completa."
Hoje, além de trabalhar como enfermeira especializada em cirurgias cardíacas, ela dá palestras e treinamentos para convencer profissionais de saúde de que é preciso mais sensibilidade para ajudar o paciente e seus familiares também na hora em que ele está morrendo. Há algumas semanas, ela criou a organização Projeto 660, em referência aos 660 dias que Mason viveu, para ajudar as pessoas a lidarem de maneira mais saudável com a morte e, por isso, viverem melhor.
"Quando você estuda para ser um profissional de saúde ninguém diz que você precisa ajudar a família a passar bem por uma experiência de morte. Ninguém estuda para se preparar para nenhuma morte, estudamos para salvar vidas."
O dia em que tudo mudou
Os gritos do marido foram a primeira coisa que Jessica ouviu quando acordou naquela manhã de 31 de março de 2016. "Acordei com os gritos do pai do Mason, desesperado, chamando meu nome. Jessica, Jessica, acorda, aconteceu um erro terrível", lembra. "Quando eu desci ele estava com o Mason no colo, coberto pelo próprio sangue", conta a mãe, emocionada.
Enfermeira experiente, ela diz que logo entendeu pela cena que a situação do bebê era provavelmente irreversível; fez, no entanto, de tudo para salvá-lo. "Eu olhei para o meu filho e pensei: ele está morto, ninguém poderia sobreviver a um trauma como este. E meu próximo pensamento, imediato, foi imediatamente começar a tentar a reanimá-lo", diz.
Durante todo o caminho para levar Mason até o hospital de carona em um carro da polícia, ela tentou recuperar os batimentos cardíacos do menino com manobras de ressuscitação cardiopulmonar e respiração boca a boca. "Mas no meu primeiro fôlego sobre ele, minha boca se encheu de sangue. Foi muito difícil."
Ela lembra que gritava muito quando entrou carregando o filho no colo na emergência do hospital em que ela mesmo trabalhava, pedindo socorro aos seus colegas de equipe. "Eu gritava: meu bebê está morrendo, meu bebê está morrendo!"
"Quando encontrei a médica da emergência, a primeira coisa que eu disse a ela foi: meu bebê está morto". Mas, em vez de confirmar o diagnóstico da mãe e atestar o óbito, a médica ordenou que a equipe iniciasse os procedimentos de ressuscitação, o que, para Jessica, fez toda a diferença para que ela começasse a processar o que estava acontecendo.
"Minha cabeça sabia que ele ia morrer, mas meu coração estava implorando para aquilo não ser verdade. Quando uma pessoa que você ama muito está morrendo, nós precisamos de tempo para colocar a cabeça e o coração no mesmo tempo."
Para Jessica, o fato de os médicos e enfermeiros serem seus amigos de trabalho e demonstrarem amor por Mason durante o atendimento fez toda a diferença para que depois, embora a tristeza da perda nunca passe, ela pudesse se recuperar a ponto de conseguir prosseguir com a vida na ausência do filho. É uma das atitudes que ela define como o processo de "orquestrar a morte"; pequenas ações que tornarão a experiência, ainda que muito triste, algo mais possível de lidar.
"Eles começaram a fazer a ressuscitação claramente tomados pela emoção", diz. "Vi que um enfermeiro estava chorando de joelhos. Uma técnica de laboratório estava tão nervosa que não conseguia chegar com a agulha perto do braço de Mason. E eu pensei: nossa, eu também estou assustada, eu também estou triste! Essas coisas que eles fizeram por mim foi uma total validação de que eu tinha um filho que eu amava e todos amavam, e que ele estava morrendo. Mostrar emoção era o que eu precisava".
Jessica diz que, antes da morte do filho, faltava nela mesmo como enfermeira o hábito de firmar alguma conexão com os pacientes, especialmente em momentos dramáticos como a morte. Quando um ente querido está morrendo, detalhes como um atendente que só olha para o celular ou as palavras frias de um médico ficam marcadas para sempre, diz ela.
"Eu entrava na sala de cirurgia, preparava o paciente, e dali eu já ia para uma outra sala com um paciente morrendo, sem pensar muito. Como uma lista de procedimentos a executar", diz. "Eu nem acho que é falta de empatia dos profissionais, acho que é mais medo. Mas se você trabalha com isso e se permite estar inteiramente ali, vivendo o momento enquanto o pai se despede de uma filha, você saberá como agir."
Os dois minutos mais dolorosos
Depois de uma hora de atendimento a Mason, a médica comunicou a Jessica que eles seguiriam com a ressuscitação por mais dois minutos, e então parariam. "Foram os dois minutos mais dolorosos da minha vida. Então nesses dois minutos eu cantei a música do 'boa noite' no ouvido dele pela última vez. Eu o segurei-o no meu colo por quatro horas depois que ele morreu. Eu me permiti sentir tudo. E a coisa mais profunda que eu fiz foi tirar uma foto da mão de Mason sobre o meu peito".
Melhorando a história do luto
Desde a morte de Mason, muitas das tentativas de Jessica de lidar melhor com o luto causaram estranhamento na própria família. Como quando ela, por exemplo, decidiu convidar seus filhos, que à época tinham 5 e 6 anos, a decorar o caixão do bebê antes de enterrá-lo.
"Havia cerca de 60 pessoas reunidas na minha casa quando Mason morreu, e eu cheguei da funerária com uma amiga carregando aquele caixão infantil. Minha família ficou furiosa: 'como você aparece aqui carregando um caixão? Você tem problemas?", diz. O caixão vazio ficou no quarto de Jessica nos dias que antecederam o enterro, mas ela acha que a experiência ajudou as crianças a lidarem com a morte do irmão.
"Mostrei o caixão para as crianças, e elas disseram: nossa, que caixa bonita! Eu falei sim, nós vamos decorá-la, e é nela que seu irmão passará o resto do tempo. E eles começaram a pegar brinquedos para colocar lá dentro. E provavelmente foi uma das coisas mais terapêuticas que fizemos."
Na casa da família de Jessica, por exemplo, existe até hoje o "jardim de Mason", feito por amigos e familiares em homenagem ao bebê. Ela e o pai de Mason se divorciaram, e ela hoje tem uma filha de nove meses com o namorado, que também é médico e já lidou com tragédias pessoais, além de entender a paixão da enfermeira pelo tema. "Quando voltei a namorar e a sair em encontros, um dos meus requisitos era que fosse alguém que também tivesse sofrido", diz.
Jessica também criou um grupo de mães que perderam filhos, e passou a colecionar histórias de experiências de morte. Concluiu, a partir delas, que as que puderam viver o momento da morte com tranquilidade, em contato físico com o ente querido, com tempo e privacidade adequados, conseguiram seguir com a vida apesar do luto.
A educadora defende que, quando um ente querido morre, é necessário que a família "esgote" todos os sentidos em relação ao ocorrido. "Deixe-o ver, cheirar, beijar a mão do filho pela última vez, ouvir o pânico da equipe médica tentando salvá-lo. E, de longe, o mais importante é o toque. Deixem que o familiar sinta a temperatura do corpo daquela pessoa querida. É preciso entender que a morte é verdade para, um dia, sentir-se melhor", afirma.
Outra ferramenta muito importante ao alcance do profissional de saúde é explicar profundamente tudo o que está acontecendo em cada etapa. "O coração do seu filho parou de bater e estamos fazendo tudo o que podemos para que ele volte a bater. Ela está morrendo e estamos tentando salvá-la", exemplifica.
Embora seus treinamentos sejam bem recebidos por enfermeiros, pacientes, terapeutas e voluntários, Jessica diz que suas ideias ainda despertam muitas críticas, principalmente de médicos mais experientes. O trabalho também é visto com ressalvas até mesmo entre membros de sua família.
"Quando meu pai soube que eu ia ao Brasil para fazer minha palestra ele disse 'poxa, você já fez todas aquelas coisas estranhas para o funeral do Mason, agora ainda vai contar isso para estranhos no mundo todo? Isso é tão constrangedor'", ri. "Mas eu já perdi o medo de ser esquisita. Se eu puder ajudar uma pessoa ao menos a ter uma experiência de morte melhor, vou continuar com esse trabalho."
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