Profissionais do sexo enfrentam violência, HIV e gravidez indesejada no Malaui
A fotojornalista Isabel Corthier conheceu profissionais do sexo envolvidas em um projeto para ajudá-las a ter acesso a serviços de saúde no sul do Malaui.
O Malaui, país no sudeste da África que fica entre Moçambique, Zâmbia e Tanzânia, tem uma das maiores taxas de incidência de HIV no mundo.
Ali, profissionais do sexo têm mais probabilidade de contrair o vírus. Taxas de outras infecções sexualmente transmissíveis e de gravidez indesejada também são altas.
Desde 2014, a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) tem trabalhado com o Ministério da Saúde do Malaui e parceiros para ampliar os serviços de saúde voltados a profissionais do sexo, incluindo oferta de preservativos e acesso à PEP (Profilaxia Pós-Exposição de Risco), medicação que reduze o risco de transmissão de HIV depois de situações de possível contágio.
Corthier, a fotojornalista que acompanhou o projeto, tirou retratos de algumas dessas mulheres, resguardando sua identidade. Kate Ribet, da MSF, falou com elas e com outros trabalhadores da organização humanitária sobre suas histórias.
Os nomes das profissionais do sexo foram modificados para proteger sua identidade.
Bernadette, profissional do sexo, Dedza (cidade na região central do país)
Bernadette nasceu em uma família de 11. Ela perdeu os pais quando tinha sete anos e foi criada inicialmente pela irmã, e depois pelos avós.
Com pouco suporte financeiro da família, ela passou fome na escola e começou a fazer sexo em troca de comida, canetas e livros. Logo engravidou e abandonou a escola aos 18.
Hoje, ela é mãe de seis crianças. Seu último parceiro era abusivo e a abandonou, então ela voltou a vender sexo em 2018, acreditando que essa era a melhor opção para sobreviver.
"Eu ouvi sobre os serviços da Médicos Sem Fronteiras em novembro de 2018, quando sua equipe foi a um bar compartilhar dados sobre testes para infecções sexualmente transmissíveis e HIV", ela diz.
"Foi a primeira vez que me deram informações sobre coisas como testes de HIV, saúde sexual. Antes disso eu não sabia de nada. Me senti liberta, feliz, porque estava ouvindo falar de coisas sobre as quais não tinha ideia."
"Com esses serviços, me sinto mais empoderada que antes e posso negociar proteção com meus clientes. Sei colocar uma camisinha direito e agora temos lubrificante para prevenir acidentes."
Maria, profissional do sexo, Dedza
Maria, 36, foi casada por 11 anos, vendendo produtos da fazenda com seu marido. Depois de sofrer anos de abuso, ela foi abandonada pelo parceiro.
Com dificuldades para manter sua família - ela e uma filha -, então se voltou para o trabalho com o sexo.
"Às vezes os clientes ficam violentos ou não pagam", ela diz. "Dois anos atrás, eu tinha um cliente. Tivemos uma relação sexual, mas ele não pagou. Durante o sexo, ele deliberadamente rompeu a camisinha. As coisas ficaram violentas e ele arrancou meu dente da frente com um soco. E depois não queria pagar."
"Antes da Médicos Sem Fronteiras vir para cá, estávamos sendo chamadas de putas e prostitutas. Se fôssemos para a polícia, nos mandavam embora. Agora não temos problemas para conseguir medicamento no hospital."
Adeline, profissional de saúde da Médicos Sem Fronteiras, Bangula (sul do país)
Adeline começou a trabalhar como profissional da saúde da comunidade em fevereiro de 2015.
"Como uma trabalhadora de saúde da comunidade, aprendi a cuidar de mim mesma e viver uma vida saudável", ela diz.
"Ter conhecimento significa que você pode ir ao hospital para receber atendimento médico e você pode fazer seu trabalho (como profissional do sexo) e ajudar sua família e a comunidade."
Adeline é uma profissional do sexo desde 2005. Antes, ela era casada, mãe de dois filhos, mas depois do divórcio não conseguia mais sustentar a família.
"Uma amiga veio para mim e disse: 'por que você está sofrendo? Há uma alternativa. Você pode ganhar dinheiro com sexo'", conta ela.
"Eu tentei e me dei conta que estava ganhando mais dinheiro do que conseguiria de outras maneiras. Então, decidi seguir esse caminho."
Mas trabalhar com sexo traz riscos, ela relata.
"Em 2007, eu estava trabalhando uma noite e um grupo de homens espancou a mim e a uma amiga. Eles nos deixaram peladas, sem nada. Em outra ocasião, um cliente me estuprou durante uma sessão. Eu nunca o denunciei. O cara era conhecido na área e havia estuprado outras mulheres, e perseguiria quem o tivesse denunciado. Eu achei melhor ficar quieta, não fiz nada."
Chrissie Nasiyo, enfermeira/mentora da Médicos Sem Fronteiras, Nsanje (região sul)
Chrissie trabalha com o projeto de profissionais do sexo há dois anos.
"Para alguém dizer 'eu sou uma profissional do sexo' é difícil por causa da cultura, o estigma, a discriminação que acompanha isso. Outras não ligam muito."
Chrissie explica que há uma percepção diferente entre diferentes tipos de profissionais do sexo no Malaui.
"A maior parte quer dizer trabalhadoras do sexo 'comerciais' quando falam do trabalho com sexo, porque é um trabalho para elas. Ela acorda, se veste e vai encontrar um cliente. Mas a trabalhadora do sexo de 'transações' pode ser da classe trabalhadora, ir a seu trabalho normal e ter múltiplos parceiros em troca de produtos, sem aceitar que é uma trabalhadora do sexo."
"Para essas mulheres, definir isso pode ajudar."
Chrissie oferece os mesmos serviços para trabalhadoras do sexo "comerciais" e "transacionais". Participantes recebem camisinhas, testes para HIV e outras infecções, planejamento familiar, terapia anti-retroviral se são HIV-positivas. Ela diz que maior parte das trabalhadoras de sexo com quem trabalha são soropositivas.
"Eu amo trabalhar com as meninas porque elas têm histórias para contar. Você pode julgá-las de fora, mas se você ouve suas histórias, você sente que o que estão fazendo não é errado. Estão fazendo por um motivo."
Ketisha, trabalhadora do sexo, Mwanza (região sul, fronteira com Moçambique)
Quando Ketisha, de 16 anos, estava na escola, ela estava em um relacionamento que resultou em uma gravidez. Seu pai não a apoiou.
Ela ficou com sua irmã por um tempo, mas o arranjo não durou. Ketisha tentou evitar se tornar uma profissional do sexo.
"Eu tentei vender mandasi (pão frito), mas as coisas não deram certo. Depois disso, tentei vender milho verde, mas no final, foi só dificuldade."
"Ser uma adolescente e virar uma profissional do sexo não é fácil. Me perguntam por que eu estou em uma loja de bebidas ao invés de estar na escola. Meus pais não sabem que sou uma profissional do sexo."
"Quando olho em volta, vejo que muitas das profissionais do sexo estão enfrentando desafios. Estão sendo forçadas a manter relações com homens mais velhos sem usar proteção ou ganhar dinheiro. Se protestam, são abusadas fisicamente."
Jennifer, profissional do sexo, Mwanza
Jennifer, 26, é mãe solteira de duas crianças. Seu ex-companheiro era um ladrão profissional. Quando ela pediu para ele deixar a vida do crime, ele se recusou. Eles se separaram.
Em 2008, Jennifer entendeu que a única maneira que tinha para manter seus filhos era virando uma profissional do sexo.
"Quando meus parentes ouviram que eu havia virado uma profissional do sexo, eles me expulsaram e disseram que eu nunca deveria voltar para casa", ela diz.
"Mas o sangue é mais grosso que a água, e mais tarde eu fui visitá-los e eles me receberam. Meus filhos agora ficam com minha mãe."
"Como profissional do sexo, enfrento vários desafios. Uma vez, um cliente pagou adiantado e veio para meu quarto. Ele pediu que eu saísse e comprasse salgadinho, então eu fui. Quando eu voltei, eu vi que ele tinha roubado todo meu dinheiro e minhas roupas."
"Eu pretendo parar esse negócio de trabalhar com sexo. É muito difícil... Se eu continuar, sinto que vou morrer antes do tempo."
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