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Conheça a 1ª presidente negra do Centro Acadêmico mais antigo do Brasil

Letícia Mori/BBC News Brasil
Imagem: Letícia Mori/BBC News Brasil

Da BBC

30/10/2019 16h07

Quando a estudante Letícia Chagas entrou na Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), no ano passado, reparou que o Centro Acadêmico da faculdade era presidido por um homem branco.

"Foi impactante para mim ver que, mesmo sendo uma chapa de esquerda, o presidente era como todos os homens que estavam ali, igualzinho. Para ele aquele espaço já estava dado", diz ela, hoje com 19 anos.

O Centro Acadêmico XI de Agosto (o 'Onze', como é conhecido pelos alunos), é o mais antigo centro acadêmico do Brasil, fundado em 11 de agosto de 1903. Em seus 116 anos de história, teve entre membros diversas personalidades que depois se tornaram nomes conhecidos, como os ex-presidentes Michel Temer e Jânio Quadros, e os ex-ministros Aloysio Nunes e Fernando Haddad.

O primeiro presidente negro da entidade foi Oscarlino Marçal, em 1963. Mas até hoje o Onze nunca tinha tido uma presidente negra. Em seu segundo ano na faculdade, Letícia quebrou a barreira racial e de gênero e se elegeu como a primeira.

"O grande momento vai ser quando os calouros chegarem, porque foi um momento importante para mim", afirma ela, que diz ser importante os recém-chegados verem que uma mulher negra pode estar em uma posição de destaque.

A turma de Letícia é a mais diversa da história da faculdade: 2018 foi primeiro ano em que as cotas raciais passaram a valer no vestibular da USP, que foi a última universidade pública de São Paulo a adotar a reserva de vagas.

No entanto, embora o número de negros e pardos tenha aumentado, a universidade continua sendo majoritamente composta de alunos brancos, segundo dados da pró-reitoria de Graduação.

"A questão da representatividade vinha sendo deixada de lado nos últimos anos, embora fossem grupos de esquerda que estivessem no controle do Onze", diz Letícia.

Letícia participou da criação de uma chapa de oposição de esquerda, o coletivo Travessia, onde a maioria dos alunos é negra ou parda e estudou em escola pública. O grupo é ligado ao PSOL e ao PCdoB, mas Letícia não é filiada a nenhum partido.

Apesar de tudo, a jovem, envolvida com o movimento negro desde o ensino médio, teve dúvidas sobre se iria concorrer a presidente ou não.

"Meu maior sonho é me tornar acadêmica, e eu tinha medo de que a atuação política pudesse comprometer meus estudos", diz ela. "Hoje, qual é o esterótipo do aluno militante que a gente tem? É aquele que só se dedica à vida do partido, que não participa da faculdade em si", conta ela.

"Fiquei com receio porque quero fazer mudanças reais na faculdade, mas também quero me tornar acadêmica, lecionar."

Além de cursar as aulas normais e disciplinas optativas, Letícia faz parte de dois grupos de pesquisa acadêmica, um na USP e um na FGV (Fundação Getúlio Vargas), o SBDP (Sociedade Brasileira de Direito Público), que tem um rigoroso processo seletivo.

Nascida em uma família de classe média baixa de Campinas, no interior de São Paulo, ela sempre estudou em escola pública e seus pais não têm ensino superior. O pai é caminhoneiro aposentado e a mãe, empregada doméstica.

"Eu nunca senti vergonha [das origens], até porque a maioria dos meus amigos é assim", diz ela. "Mas tem coisas que são difícies, [os outros alunos] têm um capital cultural muito maior. Já fizeram muitas viagens, já entram sabendo inglês e alemão", conta.

"Eu sei que tenho muitas coisas que eles não têm, mas infelizmente [línguas e viagens] são coisas que a academia valoriza."

Início no movimento negro

Letícia Chagas - Letícia Mori/BBC News Brasil  - Letícia Mori/BBC News Brasil
Imagem: Letícia Mori/BBC News Brasil

Filha de pai negro e mãe branca, hoje Letícia exibe orgulhosa um cabelo black power. Mas nem sempre foi assim — quando era pequena, odiava o próprio cabelo e dizia que queria ter nascido com o cabelo liso.

"Essas falas eram uma violência, não só comigo mesma, mas com o meu pai, embora ele não percebesse", diz ela.

Ela conta que foi através da transição capilar (processo de deixar o cabelo voltar ao natural) que conheceu o movimento negro e passou a ter mais consciência sobre questões raciais.

"O processo não começou como uma coisa política. Meus pais gastavam um dinheiro que não tinham para alisar meu cabelo. Eu ficava alguns meses sem fazer e ele ficava horrível, eu não estava feliz com ele", conta.

Ela tentou duas vezes fazer a transição, e só deu certo na segunda. Foi aí que, lendo sobre transição capilar, começou a pesquisar e entender questões raciais.

"Não que eu ache que todo mundo tem que usar o cabelo natural, pelo contrário, cada um usa como quiser. Mas para mim foi muito importante", diz ela.

No entanto, apesar de atuar muito na questão racial, diz que a forma como muitas pessoas querem reduzi-la somente a isso incomoda. "As pessoas estão sempre esperando que eu estude só isso, mas eu não sou só isso, embora seja uma luta essencial para mim."

No grupo de estudos da FGV, Letícia estuda sobre cobrança de mensalidade na universidade pública com base em dados do Tribunal de Contas da União. "Foi um esforço que eu fiz, porque eu preciso descobrir outras coisas além da raça. Não querem que eu descubra, querem que pesquise só aquilo."

Movimento estudantil

Foi no ensino fundamental que ela começou também a atuar no movimento estudantil — com o apoio da irmã mais velha, que tinha cursado a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

"Quando acontecia algo errado na escola, ela sempre me dizia: 'vai lá, tem que reclamar, tem que cobrar que melhore'", conta.

Letícia diz que se incomoda quando sua história de sucesso é usada para defender a ideia de "meritocracia", de que "basta querer para conseguir". "Apesar de meus pais nunca terem muito dinheiro, eu sempre tive muitos privilégios. Nunca tive que trabalhar, meus pais sempre me deram muita força para estudar", diz ela.

Apesar de ter passado em um dos cursos mais concorridos da USP, a estudante diz que na verdade, inicialmente, nem queria fazer direito — seu objetivo inicial era fazer história na Unicamp. Mas, ao ser aprovada nas duas e ter que escolher, conversou sua professora de história, Emilene, que admirava muito.

"Ela me disse que o direito ia me dar as ferramentas para as mudanças que eu queria fazer na história, aí eu vim", conta. "Percebi que se eu não viesse seria por medo."

As mudanças que ela quer trazer são não apenas na universidade, mas na atuação da esquerda no país, diz.

"É importante pensar em uma alternativa de esquerda. Óbvio que eu queria que o Haddad tivesse ganhado, mas ele não ter ganhado mostra que boa parte da população está descontente com a política que o PT fez", diz ela.

"Precisamos estar na vanguarda, mostrar que é possível fazer uma oposição de esquerda que não seja falando do outro. Porque é muito isso que a pariferia tem: 'ah, a galera lá, da USP, que vem aqui, que não sabe nada, não sabe de onde eu vim.' A esquerda precisa disputar essas pessoas, e é muito mais fácil quando eu sou igual a elas."

Moradia estudantil

Sua decisão de ir estudar na USP, no entanto, também dependia de uma dificuldade: conseguir moradia em São Paulo, já que seus pais não teriam condições de arcar com o custo de um aluguel na capital.

"Foi muito difícil conseguir moradia, e eu só pude vir porque consegui vaga na Casa do Estudante."

Quando Letícia entrou, a moradia estudantil da Faculdade de Direito estava em condições precárias — com fiação aparente, elevadores quebrados e, segundo relatos dos estudantes, infestada de ratos. Como não havia vaga para todo mundo, ela dividiu quarto durante um ano.

"Minha mãe ficou super assustada quando veio visitar. Mas para mim não foi tão ruim quanto eu pensava porque os calouros do meu ano eram muitos unidos e a gente se apoiou", conta. Neste ano, os alunos aprovaram o saque de R$ 3 milhões do fundo de investimentos que mantém o Centro Acadêmico para fazer uma reforma no prédio.

Disputa acirrada

A campanha eleitoral para a presidência da entidade em 2019 foi cheia de acusações e polêmicas. Letícia diz que foi na campanha que deparou com os episódios mais difícieis de racismo estrutural desde que entrou na faculdade.

"Tem o fato de não ter professores como eu e outras questões. Mas para mim o mais difícil foi lidar com o discurso de pessoas brancas que se colocam como de esquerda, mas que não querem sair do poder, e para isso elas nos deslegitimam, dizendo que nós falamos só de representatividade", diz ela. "Como se pessoas negras fossem só um rosto, como se não estivéssemos preparados."

Além da questão da representatividade de minorias, um dos principais pontos levantados pela chapa era um debate financeiro, focando na questão de otimização dos gastos e da prestação de contas. "Várias pessoas falavam que a gente era de direita porque fazíamos um debate financeiro muito forte", reclama.