'Meu pai matou minha mãe': como britânica descobriu a verdade sobre um segredo familiar
Pai de Tasnim Lowe abusou de sua mãe quando ela era menor de idade; depois disso, ele a matou, e assassinou também sua avó e sua tia; Tasnim, criada pelo avô, conta sua história para a BBC.
O pai de Tasnim Lowe engravidou sua mãe quando ela tinha apenas 14 anos. Depois de abusar da menor de idade, ele a matou. Para saber mais sobre o que aconteceu com sua mãe, a quem se refere apenas como "Lucy", Tasnim participou de um documentário para a BBC Three. Este é seu depoimento:
"Foi muito difícil enquanto eu estava crescendo. Morava com meu avô e, no ensino fundamental, as pessoas me faziam perguntas. 'Por que você vive com ele? Onde está a sua família? O que aconteceu?'.
Não sabia o que responder. Não era como se eu pudesse dizer 'olá, meu nome é Tas, e meu pai é um assassino. Quer ser minha amiga?'.
Eu tinha apenas 16 meses de idade quando meu pai, Azhar Ali Mehmood, matou minha mãe, mas salvou minha vida. Ele me enrolou em um cobertor, me levou para fora de casa e me deixou embaixo de uma macieira no jardim. Assim, fiquei longe do incêndio em que morreu minha mãe, Lucy, seu filho ainda não nascido, minha avó Linda Lowe e minha tia Sarah.
Foi como se quisesse cuidar de mim — mas não fez isso de fato, ao deixar que minha mãe morresse.
Ele provocou o incêndio em nossa casa em Shropshire, na Inglaterra, em agosto de 2000. No ano seguinte, foi condenado por triplo assassinato.
Conforme eu crescia, não pensava em meus pais como pessoas como eu, mas apenas como uma história. Então, em 2018, quando tive a oportunidade de produzir um documentário sobre minha história para a BBC, quis pesquisar mais a fundo sobre os motivos por trás daquele incêndio, e descobrir mais sobre minha mãe e sobre mim mesma.
Sinto como se eu fosse uma versão da Lucy com a pele mais escura, mas quando penso nela, imagino uma adolescente. Não a vejo como uma mãe, e não quero chamá-la assim.
Ela tinha 15 anos quando nasci, e meu pai, 25, mas nunca me passou pela cabeça que aquela relação não fosse normal. Se falava sobre eles com amigos da escola, sempre me olhavam com certo estranhamento e diziam 'isso é um pouco esquisito, não?'.
E eu dizia: 'Não, não é isso, eles estavam em um relacionamento'. Fora programada para pensar dessa forma, porque assim me ensinou a minha família, e não conseguia entender porque as pessoas comentavam tanto sobre mim.
Meu avô, George, e eu temos uma relação muito próxima, mas tem sido difícil. Ele perdeu a esposa e as duas filhas no incêndio. Depois disso, me criou. No julgamento do meu pai, jurou que cuidaria de mim. Mas nós dois temos opiniões e visões completamente diferentes quando o assunto é a relação dos meus pais.
Uma criança
Naquela época, ele e as outras pessoas tinham uma visão distinta sobre a diferença de idade na relação. É difícil para mim entender como as pessoas podiam achar que estava tudo bem ao ver Lucy engravidar, sendo uma criança. Enquanto fazíamos o documentário, meu avô aprendeu muito sobre aquela situação.
Tem sido um desafio, mas acredito que finalmente chegamos a uma espécie de acordo sobre o assunto.
Conheci algumas das amigas de Lucy enquanto fazia o documentário. Lucy era praticamente uma criança quando conheceu meu pai, e suas amigas tinham uma idade similar.
Somente agora, quando as pessoas encaram esse passado, conseguem ver como o relacionamento não era normal. Uma de suas amigas me disse que, na época, estava tudo bem, que sair com homens mais velhos era visto como 'cool'. Se elas não eram capazes de enxergar o que estava acontecendo, talvez nem Lucy conseguisse fazê-lo.
Em um domingo de Dia das Mães, em 11 de março de 2018, aconteceu algo que colocou em xeque tudo o que haviam me contado sobre meus pais.
Na primeira página do jornal "Sunday Mirror" estava uma foto de Lucy. A princípio, minha família e eu ficamos realmente confusos ao ver o artigo. Eu pressupus que se tratasse de uma história velha sobre o incêndio que não havia sido publicada naquela época, por alguma razão.
Lembro que pensei: 'Não deve ser nenhuma informação nova'.
A reportagem do "Sunday Mirror" revelou que até mil meninas poderiam ter sido aliciadas e abusadas em Telford desde os anos 1980.
O jornal mostrou como meu pai havia aliciado Lucy desde os 14 anos para depois abusar dela. Mostrou ainda que outras meninas, também aliciadas, sofriam ameaças de que 'terminariam como Lucy' — em outras palavras, mortas — se contassem a alguém sobre o que acontecia.
De início, fiquei bastante confusa. Quando contam uma história, você passa a entendê-la, a pensar nela como a única versão possível de algo.
Era o que eu sentia sobre meus pais, antes de ler aquela matéria. Tudo estava normal porque eles tinham um relacionamento. Ao ver uma história diferente na imprensa, entretanto, pensei 'não, isso não pode ter acontecido, eles estão errados'. Foi difícil aceitar essa nova perspectiva, era algo extremamente pessoal.
Demorei muito tempo para aceitar esses desdobramentos.
Descobertas
Aquela investigação me fez questionar tudo o que pensava saber sobre o meu passado, e tive de buscar mais respostas. Decidi ler as transcrições do julgamento do meu pai, para ver se encontrava mais indícios.
Foi muito complicado ler os registros da audiência. A diferença de idade entre Lucy e meu pai fora mencionada, mas as pessoas não pareciam reconhecê-la. Não eram apenas dois ou três anos, mas quase dez. Segundo as amigas de minha mãe, o meu pai a monitorava e examinava seu corpo para ver se ela estivera com outros homens.
Ele ligava para ela e falava ao telefone que havia enviado alguém para segui-la, para vigiar todos os seus passos. Havia suspeitas de que ela teria relações sexuais com outros homens em um cemitério. Não sabemos se era algo relacionado a gangues locais, se ela estava sendo explorada sexualmente, porque isso não foi investigado.
Meu avô e eu já conversamos sobre isso algumas vezes. Sempre questiono como é possível que ele não tenha feito nada a respeito. Por que pensava que esse relacionamento era normal?
Meu avô disse que ele não 'estava muito interessado' no meu pai, mas que Lucy e meu pai discutiam muito. Perguntei se era porque meu pai exigia sexo.
'Ele ia muito para o andar de cima', meu avô disse. 'Uma vez, escutei alguém gritando 'estupro, estupro!'. Corri para o andar de cima, arrombei a porta e ele fugiu, saiu da casa. O namorado da vizinha foi atrás dele'.
Perguntei por que ninguém havia informado a polícia.
'Não sei. Ela estava pedindo ajuda? Se ela tivesse dito algo, nós teríamos agido.'
Mas eu respondi: 'Você e Linda a ouviram gritando estupro e não fizeram nada. Foi um abuso, e isso me entristece'.
Também me incomoda que haja toda essa culpa, todas essas perguntas sobre quem foi o responsável. Tive de fazer essas perguntas porque queria entender. Creio que meu avô sente muito arrependimento, muita dor porque houve coisas em que ele e minha avó Linda poderiam intervir e não o fizeram.
Mas naquela época, e naquela sociedade, todos sentiam o mesmo. Ninguém tinha o entendimento sobre o assunto. Se meus avós tivessem feito algo, será que as autoridades escutariam?
Também quis saber como meu pai se sentia. Ele se arrependia? O que pensa agora sobre o incêndio? Quando eu tinha 16 anos de idade, fui visitá-lo na prisão. Não foi uma decisão difícil. Eu teria ido antes, se pudesse, mas havia uma ordem judicial que me impedia de fazê-lo antes de completar 16 anos.
Inicialmente, eu só queria conhecê-lo, ter uma conversa e entender a situação. Também queria encontrá-lo e entender seus hobbies, do que gostava, como ele era como pessoa e descobrir mais sobre suas origens. Queria formar minhas opiniões sobre ele como uma pessoa, não apenas pelo que havia ocorrido.
O que sinto sobre ele é confuso. Não é uma questão de preto no branco. As respostas que ele me deu... Foi como se nunca estivessem completas, quase como se eu devesse registrar tudo o que ele dizia para ouvir várias vezes depois, para ler nas entrelinhas.
Em certas coisas, ele se abriu e em outras, não. Dependia do que eu perguntasse a ele na hora. Mas fico feliz em ter ido, precisava fazer isso. Gostaria de obter mais respostas, de que me dissesse mais coisas, mas não o fez.
Aproximação
Acredito que houve uma falha no sistema judicial, já que meu pai não foi julgado pelos crimes sexuais que cometeu contra minha mãe, além dos assassinatos.
Creio que as pessoas devem ser acusadas por cada crime que cometem. Perguntei à polícia por que não foi assim à época, mas os oficiais que trabalham agora não são os mesmos encarregados do caso — então, não puderam me dizer muita coisa.
Tenho que ser honesta e dizer que não me ajudaram muito, quando pedi detalhes sobre o que havia acontecido, mas pressuponho que seria uma violação de confidencialidade se me contassem algo.
Mas fico realmente agradecida porque pude encontrar alguns pertences de Lucy. Tenho seus diários. Quando ela estava escrevendo, ninguém podia vê-los. Isso me fez sentir mais próxima dela enquanto pessoa, e definitivamente me deixou mais consciente das coisas em que meu pai estava envolvido.
Meu pai agora pode pedir liberdade condicional. Afinal, não se pode apenas adicionar outros crimes à lista para manter alguém na prisão. Acredito que o fato de nunca ter encarado a justiça por abusar de minha mãe foi um fracasso do sistema e da sociedade à época.
Tem sido difícil em muitos momentos, mas há muitas coisas positivas que surgiram ao longo do documentário. Agora estou mais próxima de Lucy e entendo mais sobre sua história e sua identidade.
Também me aproximei de meu avô. Isso me deu um entendimento melhor sobre a exploração sexual infantil, e fico satisfeita por fazer com que mais pessoas se informem sobre o assunto.
Por ora, só quero ter um tempo para descansar e cuidar de mim, da minha saúde mental. Mas, no futuro, gostaria de me envolver com outras iniciativas para promover a conscientização sobre a exploração sexual infantil.
Estou em uma posição privilegiada porque não passei por isso pessoalmente, mas o que aconteceu com minha mãe me proporcionou esse entendimento.
Posso ser a voz que Lucy nunca teve.
(A polícia local de West Mercia, na Inglaterra, se recusou a comentar).
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