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Émilie du Châtelet, a matemática grávida que correu contra 'sentença de morte' para terminar seu maior legado científico

Émilie du Châtelet, a matemática grávida  - Getty Images
Émilie du Châtelet, a matemática grávida Imagem: Getty Images

Ana Pais (@_anapais) - BBC News Mundo

24/11/2019 12h49

Quando Émilie du Châtelet descobriu que estava grávida, sabia que estava com os dias contados.

Era 1749 e a marquesa tinha 42 anos. Naquela época, a expectativa de vida na França não chegava a 30 anos e o parto trazia sempre um risco enorme.

Mas longe de se resignar ao que considerava sua "sentença de morte", a descoberta da gravidez a levou a se dedicar incansavelmente ao trabalho tido como o seu maior legado científico.

Ela trabalhava por 18 horas diárias, com apenas dois intervalos de uma hora cada, e dormia cerca de quatro horas.

Émilie havia abandonado toda a vida social aristocrática e só interrompia sua produção para ver seu jovem amante e pai de sua quarta e última filha.

Em 4 de setembro de 1749, Du Châtelet deu à luz seu bebê. Seis dias depois, ela morreu de embolia pulmonar.

Se o mau presságio se concretizou, o mesmo aconteceu com sua missão. Du Châtelet terminou seu trabalho dias antes do parto.

O que começou como uma tradução francesa do famoso livro de Isaac Newton Princípios Matemáticos da Filosofia Natual, mais conhecido como Principia, acabou se tornando um volume de mais de 500 páginas com contestações e checagens próprias e de terceiros às teorias do físico inglês.

O livro seria publicado 10 anos depois e marcaria toda uma geração de matemáticos e físicos franceses, e suas ideias filosóficas o tornariam peça-chave no Iluminismo europeu.

Essa ainda é a única tradução completa em francês desse texto revolucionário e ao mesmo tempo sombrio de Newton.

No entanto, 270 anos após sua morte, Émilie du Châtelet é lembrada quase exclusivamente por ter sido amante de Voltaire por 15 anos (que, aliás, não era o amante mencionado acima).

É verdade que, em vida, ele era o autor mais famoso da França.

Mas, como mostram sua produção intelectual e estudos recentes, ela era uma cientista talentosa e intelectual com mérito próprio.

Autodidata

Gabrielle Émilie le Tonnelier de Breteuil nasceu em 17 de dezembro de 1706 em Paris, no seio de uma família aristocrática francesa. Era a única menina entre seis irmãos.

Se por um lado teve aulas com professores prestigiados e aos 12 anos falava seis línguas, de outro, por ser mulher, não lhe foi permitido continuar os estudos e teve que se tornar autodidata para, com a ajuda de amigos, aprender os dois temas que mais a atraíam: matemática e física.

Ela tinha tanto talento para a matemática que em Versalhes era famosa por seu dom como apostadora. O dinheiro obtido era gasto com livros e equipamentos científicos.

"Se eu fosse rei, reformaria esse abuso que encolhe metade da humanidade. Eu gostaria que as mulheres participassem de todos os direitos humanos, sobretudo, os da mente", afirmou.

Nunca chegou a ser rei, ou rainha, mas se tornou marquesa.

"Quando completou 18 anos, sabia que teria que se casar e aceitou a proposta do marquês Florent-Claude du Châtelet, um distinto oficial do Exército", relata a biografia publicada pela Sociedade Americana de Física em 2008.

"Esse acabou sendo um arranjo conveniente para Émilie", continua o texto, "porque o marido estava frequentemente longe de casa, deixando-a livre para satisfazer seus próprios interesses em estudar matemática e ciências por sua própria conta."

Nos primeiros anos de casamento, tiveram três filhos e ela exercia seu papel de mãe e dama da alta sociedade que as normas sociais exigiam.

Mas aos 26 anos ela deu um basta.

Émilie questionava os anos em que "gastou seu tempo" com "coisas inúteis". "Dedicava um tempo extremo ao cuidado dos meus dentes, do meu cabelo, e ao descuido de minha mente e de meu conhecimento", escreveu ela.

Uma mente livre

Du Châtelet não era apenas passional em sua trajetória intelectual, mas também na amorosa, diz Robyn Arianrhod, matemática e historiadora da ciência, na revista Cosmos em 2015.

"Ela era demais para a maioria das pessoas do seu tempo: ambiciosa demais, intelectual demais, emocional demais e liberada sexualmente demais", afirma a pesquisadora.

Tanto foi que durante toda sua vida foi alvo de fofocas.

Dizia-se, por exemplo, que a matemática não lhe interessava tanto quanto ter romances com os homens que lhe ensinavam. Mas, no caso dela, a realidade superou a ficção.

Quando Du Châtelet e Voltaire começaram a se relacionar, ela tinha 26 anos e ele, 38.

À época, era normal que pessoas em casamentos arranjados de famílias aristocráticas vivessem separadas e tivessem amantes, acrescenta Arianrhod, que em 2011 publicou um livro sobre Du Châtelet e outra cientista, Mary Somerville, chamado Seduzidas pela Lógica (em tradução livre).

O incomum é que a marquesa não tinha um relacionamento discreto com Voltaire, já que eles moravam juntos.

E, embora ele fosse uma celebridade, ainda era um plebeu.

Como se não bastasse o escândalo para a sociedade da época, o marido de Du Châtelet apoiou o romance dos amantes e até se tornou amigo de Voltaire.

Tanto que o marido, Voltaire e o amante citado acima, o poeta e soldado Jean François de Saint-Lambert, estavam com ela no dia de sua morte.

Madame Newton

A casa de campo para onde Du Châtelet e Voltaire se mudaram tornou-se um local de encontro para intelectuais e cientistas, além de um laboratório para diversas experiências.

A biblioteca tinha mais de 20 mil livros, mais do que muitas universidades da época, diz o texto da Sociedade Americana de Física.

Segundo a entidade, uma das contribuições mais importantes dela à ciência está ligada à conservação de energia, com base em experimentos com bolas de chumbo caindo sobre um leito de argila.

"Ela mostrou que as bolas que atingiram o barro com o dobro da velocidade penetraram quatro vezes mais profundamente no barro; aquelas com três vezes a velocidade atingiram uma profundidade nove vezes maior. Isso sugeriu que a energia é proporcional ao mv², não ao mv, como Newton sugerira", explica.

Sua profunda admiração por Newton não a impediu de mostrar as limitações da teoria que ela defendia tanto publicamente e que lhe valeu o apelido "Madame Newton".

Du Châtelet e Voltaire promoveram as teorias do britânico Newton em um momento em que a comunidade científica e intelectual francesa privilegiava as ideias filosóficas do francês René Descartes.

Eles foram os primeiros a perceber que "Principia havia mudado não apenas a maneira como vemos o mundo, mas a maneira como vemos a ciência", escreveu Arianrhod em Seduzidas pela Lógica.

Com Newton, a ciência deixou de ser qualitativa e ligada a especulações metafísicas e religiosas, ganhando teorias e métodos quantitativos.

"Desde então, esse estilo de física matemática teve um impacto tão impressionante na maneira como vivemos e como olhamos no universo que Newton é provavelmente o cientista mais importante de todos os tempos e Émilie era uma das primeiras estudiosas a promover ativamente sua nova maneira radical de pensar", afirma Arianrhod.

Principia abrangeu muitos dos valores do Iluminismo, e o texto final de Châtelet (que elogiava a teoria newtoniana e, ao mesmo tempo, a criticava usando as mesmas ferramentas) era como a iluminação quadrada.

É por isso que Arianrhod escreve em seu livro que du Châtelet "quebrava estereótipos sobre mulheres e matemáticos, estereótipos que duraram até as vésperas do século 21".

"Em particular, mostrou que é possível ser emocional e racional, intelectual e sexy."