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Contra estereótipos de masculinidade, professor cria curso para discutir o que é 'coisa de homem'

Priscila Bellini - Da BBC News Brasil em Londres

08/12/2019 18h13

Afinal, o que é "coisa de homem"? E o que significa agir como um?

Essas questões estão no centro de uma iniciativa criada pelo geógrafo Caio César dos Santos, de 24 anos. O professor carioca organiza rodas de conversa em que participantes refletem sobre "o que é ser homem no mundo". Sob o nome "Entendendo as Masculinidades", o projeto propõe espaços de diálogo aberto para homens comuns.

A ideia começou como uma roda de conversa no Rio de Janeiro, em 2018. Depois disso, mais edições foram conduzidas em Curitiba e Natal.

As atividades atraíram a atenção das Nações Unidas. Em abril, Caio César embarcou para o Fórum Internacional de Igualdade de Gênero na Tunísia para falar da iniciativa.

"Pude perceber que há muitos trabalhos feitos ao redor do mundo e que estão todos falando a mesma língua".

Esse denominador comum é o debate sobre masculinidades, os comportamentos e papéis associados aos homens.

Em projetos como o idealizado por Caio César, participantes podem repensar as relações com outros homens e com mulheres. Também refletem sobre o próprio comportamento e identidade.

Isso serve de gancho para rever padrões nocivos atribuídos ao gênero ? que se manifestam, por exemplo, em atos violentos.

"Os homens são os protagonistas da violência. Eles morrem mais, matam mais e também se matam mais", afirma Caio César, que pesquisa masculinidades desde 2016.

"Muitas dessas violências são cometidas por homens que não sabem lidar com o que sentem, com as raivas, com as angústias".

Mirando a prevenção, iniciativas como essa aprofundam o debate sobre questões que afetam homens, desde paternidade até autoestima.

O tamanho do problema

O professor carioca não está sozinho em enxergar tais debates como uma das saídas para padrões nocivos ligados ao "ser homem", como os casos de violência.

"Os homens são maioria nas mortes por causas externas, como acidentes de trânsito, e também por armas brancas e de fogo", explica Sirley Vieira, coordenador-geral do Instituto Papai.

A organização, com sede em Recife, desenvolve projetos com homens, incluindo rodas de conversa sobre masculinidades, desde 1997. "Os homens estão matando os homens, e os homens estão matando as mulheres", diz Sirley.

Essas mortes, entretanto, são "totalmente evitáveis", segundo o psicólogo Benedito Mendrado-Dantas, professor da Universidade Federal de Pernambuco.

Ele ajudou a fundar o Instituto Papai, depois de ter contato com discussões sobre gênero na década de 90. "Homens não são naturalmente violentos e agressivos, isso é construído".

Ou seja, especialistas encaram as expectativas ligadas ao "ser homem" — tal qual noções de virilidade e agressividade — como elaboradas pela sociedade e aprendidas desde cedo. Partindo daí, entendem que é possível discutir novos formatos para esses papéis.

"É uma forma de mediação dos sentimentos, que desconsidera a sensibilidade e a possibilidade de demonstrar afeto", explica o sociólogo Sirley Vieira.

Por essa lógica, atos de violência tornam-se um caminho para resolver conflitos. Discussões acaloradas com outros homens, ataques físicos ou ameaças passam a integrar o repertório.

"Essa noção de virilidade passa a ser a forma como o sujeito se expressa na sociedade, para ser visto e reconhecido", sintetiza o sociólogo Tulio Custódio, curador de conhecimento da Inesplorato, que também conduz discussões sobre masculinidades.

Para os especialistas, falar sobre essa relação com masculinidades serve de pontapé para reverter o quadro. "É um gancho para pensar outras estratégias que se baseiem na conexão, no diálogo", sintetiza Custódio.

Parte do caminho é reconhecer quais comportamentos são violentos para, então, propor mudanças.

"Muitas vezes, as agressões sequer são reconhecidas como violência, porque existe uma ideia de que 'homem é assim mesmo'", aponta Benedito Mendrado-Dantas, da UFPE.

Para ele, mudar esse roteiro ajuda a "causar uma fissura" no ciclo de violência.

A aposta de nomes como Caio César é de, justamente, levar uma conversa sobre o que é ser homem a mais gente — e cada vez mais cedo.

"Todas as escolas públicas e privadas deveriam ter em sua grade as discussões sobre gênero, raça, classe", opina o professor carioca. "Todo tipo de violência pode ser prevenido com esse debate".

"Coisa de homem", no plural

Idealizador do "Entendendo as Masculinidades", Caio César destaca que as discussões voltam-se à prática e à vivência dos participantes. Como um primeiro pontapé, o curso expõe participantes a debates iniciais sobre masculinidades para que, depois, tenham como se aprofundar no tema.

Esse beabá apresenta alguns eixos básicos. Por exemplo, o uso do termo "masculinidades" no plural. "A ideia é provocar uma reflexão sobre como é ser homem no mundo", sintetiza o fundador.

Mas o que é esse "ser homem" almejado pela iniciativa? O professor carioca explica que não há "cartilha" que estabeleça uma definição única como resposta.

Ele destaca que há muitas respostas que se adequem às experiências de homens gays, heterossexuais, brancos, negros, trans.

Para introduzir o assunto, entram na pauta conceitos como a "caixa do homem" (The Man Box, no original em inglês). O termo define as expectativas e regras sociais para que alguém seja entendido como "homem de verdade".

"É como uma lista de estereótipos, como ser forte e viril, ser heterossexual, ter dinheiro e não demonstrar certos sentimentos", exemplifica.

Essas noções são também moldadas por outros indicadores. "Falar de gênero nunca é só falar de gênero, porque raça, classe e sexualidade influenciam cada aspecto", explica o professor carioca.

O sociólogo e curador de conhecimento Tulio Custódio cita um exemplo: o comportamento sexual esperado dos homens.

"É o que chamamos de 'bicho danado', essa figura que domina a lei e age acima dela. É o garanhão, que quer ter e exercer poder sobre todas as mulheres", diz Custódio.

Tal imagem, explica ele, esbarra no estereótipo associado aos homens negros, tidos pelo senso comum como mais "sexuais".

"Esse parece ser o lugar em que vou me reconhecer como homem, mas é uma armadilha, porque só reforça a sexualização do corpo negro."

Quebrando o silêncio

Apesar das diferenças entre os integrantes, aspectos comuns surgem ao longo das atividades — em especial, o receio em tratar de assuntos pessoais.

"O que sempre acontece é compartilharem algo e, logo depois, dizerem que nunca haviam contado a ninguém", relata Caio César dos Santos. "Esse silêncio é comum da adolescência à idade adulta".

A ideia, segundo ele, é superar tais barreiras por meio do diálogo. "A gente só se conecta quando se abre, quando se expõe sobre essas questões".

É o caso, por exemplo, de falas sobre relações familiares, como a conexão com os pais. "Esse é um gatilho forte, já que muitos relatam a ausência do pai, tanto física quanto emocionalmente".

Há ainda quem relate dificuldades como a dependência em álcool, ou mesmo relatos de violência. "Já tivemos homens que relataram um abuso sexual que sofreram, sobre o qual não costumam falar".

Pensar criticamente sobre casos de agressão — cometidos ou sofridos por homens — e suas causas é uma das apostas de projetos como esse.

Tais debates sobre gênero vêm ganhando espaço no Brasil desde a década de 90, mas Caio César dos Santos destaca que ainda há muito a avançar.

"Apenas uns 10% das pessoas que vi no evento da ONU eram homens", destaca o professor, que atua no Rio de Janeiro.

"As mulheres estão anos-luz à frente. Os homens ainda não entendem que é um problema deles também".