'Por que o meu filho gosta de ver mil vezes o mesmo desenho?'
A repetição é uma parte importante do aprendizado de crianças, sobretudo as menores. É assim que elas dão sentido ao que aprenderam - e encontram conforto e segurança.
Logo ao acordar, Bruno, de quase três anos, invariavelmente pede para assistir ao desenho de Os Três Porquinhos. Depois, ele reencena a história com seus brinquedos, várias vezes por dia.
Pedro, da mesma idade, adora ver os mesmos livros infantis de sua coleção, repetidamente. Ana Gabriela, de sete anos, chegou a pedir para ver o filme dos Detetives do Prédio Azul três vezes no mesmo dia.
Pais, às vezes irritados de ter de ver os mesmos desenhos e repetir insistentemente as mesmas brincadeiras, muitas vezes se perguntam: por que as crianças ficam obcecadas por alguns objetos, personagens e histórias? Será que elas não cansam?
"As crianças aprendem e consolidam a informação por meio da repetição. Elas precisam de diversas reproduções para realmente aprender - na primeira vez que veem um desenho, por exemplo, vão prestar atenção às cores; na quarta vez talvez foquem sua atenção na história, na linguagem ou no arco narrativo", explica à BBC News Brasil Rebecca Parlakian, diretora-sênior de programas da organização americana Zero to Three, que promove políticas voltadas a crianças de zero a três anos.
"É assim que as crianças vão consolidando seu entendimento em uma coisa única."
"Para nós, adultos, é uma repetição. Para elas, crianças, é uma reelaboração", diz Patricia Corsino, professora-associada da Faculdade de Educação da UFRJ e coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Infância, Linguagem e Educação da universidade.
"Isso se manifesta também nas brincadeiras de ir e voltar, nos pedidos de 'de novo' aos adultos quando eles fazem algo que agrada as crianças", explica a professora. "Nem sempre isso é feito pelos mesmos motivos por cada uma delas, mas o objetivo costuma ser o de se apropriar daquilo ou de buscar o afeto que sentiram (durante a brincadeira), para elas entenderem a si próprias dentro deste mundo tão complexo."
Entrar na brincadeira é bom...
As duas especialistas explicam que, quanto mais os adultos entrarem no jogo, mais criarão momentos para afeto, para a interação com as crianças e até para a ampliação do repertório delas.
Parlakian começa lembrando que é bom limitar o uso de telas, mas ressalta que os pais podem, ao ver o mesmo desenho com as crianças, elaborar conversas e atividades a partir do que assistiram juntos.
"'Vamos contar os números junto com o personagem?' ou então 'Como você acha que o personagem se sentiu naquele momento?'. Outra ideia é, depois de assistir, desligar a TV e fazer um jogo com base no desenho. Com isso, você transfere o que está na tela para a vida real, algo que normalmente não acontece com crianças pequenas se elas meramente assistirem ao desenho", diz a especialista.
No caso de contos clássicos como Os Três Porquinhos, por exemplo, é possível ampliar o entendimento da criança contando a ela as diferentes versões existentes da história ou brincando de reencenar.
"A exposição à mesma história com leves diferenças ajuda as crianças a consolidar o que aprenderam", diz Parlakian. "E reencenar as ajuda a entender como os personagens se sentem, o que as ajuda a desenvolver empatia."
Mesmo sem mudar a história, mas escolhendo bons livros que possam ser lidos com prazer muitas vezes, os pais e cuidadores estarão dando grandes oportunidades para as crianças se desenvolverem, diz Patricia Corsino. "As crianças não precisam de muitas coisas. Precisam de poucas, mas com muita intensidade."
... mas se encher da repetição é compreensível
Não tem nada de errado, no entanto, se os pais cansarem de assistir ao mesmo desenho pela milésima vez. "É natural os pais falarem que não querem mais e estabelecerem seus próprios limites", diz Corsino.
Outra ideia é buscar a variedade dentro do mesmo tema, para expandir os horizontes da criança e dar a elas mais informações a respeito das coisas que elas tanto gostam.
Parlakian conta que, aos três anos, sua filha adorava brincar de montar mesa de piquenique. "Certa vez, eu fiquei tão entediada de vê-la fazer isso pela milésima vez que sugeri: 'vamos fazer um piquenique de verdade no quintal?' Meu filho também teve uma fase em que ficou obcecado por caminhões. Então busquei mais livros sobre o tema e fiz com ele um passeio até um lava-rápido."
E a repetição continua
Embora a repetição seja mais visível ao redor da faixa etária de dois a quatro anos, a vontade de ver/ouvir o mesmo filme, desenho ou história continua ao longo da infância e da adolescência, em graus diferentes. Isso porque a repetição, além de reforçar o aprendizado, traz uma sensação de conforto e segurança.
"Muitos leem os livros do Harry Potter diversas vezes, e até mesmo adultos gostam de assistir várias vezes ao mesmo seriado. Essa previsibilidade e consistência nos faz sentir bem", prossegue Parlakian. "Mas, do ponto de vista das crianças, isso é ainda mais forte, porque o mundo tem tantas coisas novas acontecendo o tempo todo, e tantas estão fora do controle delas."
Para crianças pequenas, ao redor dos dois a quatro anos, às vezes é o caso de simplesmente querer exercer sua autonomia - por exemplo, quando ela sempre insiste em usar um determinado par de sapatos e entra em crise se ele estiver sujo.
"Para crianças dessa idade, o poder de fazer essa escolha (da peça de roupa) é algo muito forte, o que explica a crise de birra quando ela não consegue fazê-la", agrega Parlakian.
"Nesses casos, minha sugestão é explicar por que aquele determinado sapato não pode ser usado naquele momento, validar o sentimento da criança (ou seja, dizer a ela que você entende sua frustração) e dar a ela a chance de escolher: 'você tem duas ótimas opções: pode usar o sapato x ou y'. Como elas são muito movidas pelo desejo pela autonomia, oferecer-lhes opções às vezes lhes dá a sensação de controle."
Pode ser um sinal de que há algo errado?
Na imensa maioria dos casos, diz Parlakian, a repetição é parte perfeitamente saudável do desenvolvimento infantil, e em geral as crianças são bastante flexíveis - têm suas preferências por livros e filmes, mas topam assistir ou brincar de coisas diferentes com frequência.
Parlakian só adverte a prestar atenção caso a criança não esteja tendo prazer na brincadeira ou se mostre extremamente inflexível, ou seja, apresente sinais de estresse duante a brincadeira e repita tudo exatamente do mesmo jeito, sempre -, já que esse tipo de comportamento é comum em crianças do espectro autista.
Vale lembrar, porém, que um diagnóstico do tipo só pode ser confirmado em consultas individualizadas com especialistas.
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