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Chevalier d'Éon: a espiã transgênero do século 18 que desafiou a coroa francesa

D"Eon em retrato pintado por Jean-Laurent Mosnier (1791) - BBC
D'Eon em retrato pintado por Jean-Laurent Mosnier (1791) Imagem: BBC

Jono Namara

BBC

12/06/2022 10h30

"Deve-se reconhecer sem dúvida que é a pessoa mais extraordinária da época... Não vimos ninguém que tenha reunido tantos talentos militares, políticos e literários", afirmou a publicação britânica "The Annual Register" do ano de 1781, ao fazer referência à senhora que aparece retratada acima com a Grã-Cruz da Ordem Real e Militar de São Luís da França.

Trata-se de Chevalier d'Éon (cavaleiro d'Éon), um célebre, carismático, talentoso e intrigante soldado, diplomata e espião do século 18, que despertou o fascínio de seus contemporâneos.

E se você já está confuso com o uso tanto de pronomes femininos como masculinos, explicamos: D'Éon viveu abertamente como homem e mulher na França e na Inglaterra em diferentes fases da vida, atraindo o interesse público e a atenção da coroa francesa.

Embora resgatar sua história não seja fácil, pois está repleta de relatos conflitantes, especulações e rumores, sua biografia "A vida militar, política e privada de Mademoiselle. d'Eon" e correspondências pessoais que resistiram ao tempo, oferecem uma série de informações em primeira pessoa.

Gary Kuts se baseou nelas para escrever o livro "Monsieur D'Eon Is a Woman" e, conforme disse à BBC, "D'Éon tinha uma gama complexa de ideias e filosofias sobre por que cruzar o limite de gênero era tão significativo".

Charles

Charles-Geneviève-Louis-Auguste-André-Timothée d'Éon de Beaumont nasceu em uma família nobre em Tonnerre, na França, em 5 de outubro de 1728 ? e ficou claro, desde cedo, que era um aprendiz prodigioso.

"Minha família viveu em Tonnerre nos últimos 12 séculos, e Chevalier é o parente mais proeminente", diz Philippe Luyt, descendente de D'Éon, à BBC Reel.

"Teve uma educação extraordinária e bastante completa. Voltaire disse sobre ele: 'Descobri o homem mais brilhante do século'."

"Depois Luís 15 deu a ele um cargo ministerial. Daquele momento em diante, teve uma vida extraordinária."

D'Éon foi enviado como diplomata para garantir as relações com a imperatriz Isabel 1ª da Rússia como potencial aliada da França em uma guerra com a Grã-Bretanha e o Reino da Prússia.

Ele voltou para a França com a notícia de que a Rússia se juntaria à aliança franco-austríaca.

Como oficial, serviu brevemente na segunda metade da Guerra dos Sete Anos.

Mas com a aliança franco-austríaca sofrendo perdas catastróficas, o rei ordenou que ele fosse a Londres para negociar os termos de um tratado de paz com os britânicos.

O tratado foi assinado em 10 de fevereiro de 1763, e como recompensa, D'Éon, que era visto por Luís 15 como "meu melhor oficial da Guerra dos Sete Anos", segundo Luyt, foi agraciado pelo rei da França com a Ordem de São Luiz.

"Nesse momento, e desde então, Charles D'Éon se tornou o Chevalier D'Éon", conta Philippe Luyt.

Dois retratos do final do século 18 da mesma pessoa: Chevalier d'Éon - BBC - BBC
Dois retratos do final do século 18 da mesma pessoa: Chevalier d'Éon
Imagem: BBC

Chevalier

D'Éon retornou a Londres como chefe da embaixada da França na Inglaterra. E também como parte do "Secret du roi", uma rede de espiões que atuava secretamente em nome do rei.

Gary Kuts explica que, "por mais estranho que pareça hoje, o rei Luís 15, além de administrar um núcleo diplomático oficial, também tinha uma organização de espionagem paralela que era desconhecida deste núcleo diplomático e, às vezes, ia contra as políticas do ministro das Relações Exteriores".

Em Londres, D'Éon construiu uma sólida reputação, fazendo contatos e distribuindo agrados na alta sociedade britânica, com reuniões exuberantes com consumo de muito vinho.

Mas, em 4 de outubro de 1763, recebeu um pedido oficial do Ministério das Relações Exteriores francês para renunciar ao cargo e retornar à França.

Segundo Kuts, entretanto, D'Éon se recusou a largar seu cargo na embaixada. "É um passo extraordinário que fez D'Éon se tornar uma espécie de fora da lei", diz o autor.

"D'Éon permaneceu na Inglaterra e perdeu seu posto diplomático, mas manteve o papel de espionagem e começou a chantagear o rei francês com esse papel."

Cavalheiro ou dama?

Em 1771, começaram a circular na imprensa britânica artigos especulando sobre o sexo biológico de Chevalier D'Éon ? fomentando até apostas na bolsa de valores sobre o assunto, já que a essa altura, D'Éon era uma celebridade no país.

"Dizem que, inclusive quando estava com uniforme de soldado, as pessoas às vezes achavam que se tratava de uma mulher vestida de homem, e se espalharam os rumores de que era este o caso", diz Jane Hamlin, presidente da The Beaumont Society, organização dedicada ao apoio a transgêneros no Reino Unido.

"Embora outros tenham dito que era a própria D'Éon que estava espalhando os rumores", acrescenta.

Catherine Arnold, autora de "City of Sin: London and its vices", diz que D'Éon acabava criando ainda mais confusão.

"Se perguntassem a ela: 'Você é homem ou mulher?' ou 'O que você é?', ela dizia: 'Nasci menina. Mas meu pai, um nobre da Borgonha, passou por momentos difíceis e para que eu pudesse herdar, decidiu me criar como um menino'."

"Nos círculos sociais de mente aberta em que vivia, isso era bem plausível", diz Arnold.

A partir do fim de 1777, Chevalier começou a se apresentar permanentemente como mulher.

Prisão por crime de vestuário

Quando Luís 15 morreu, em 1774, foi sucedido no trono por seu neto, Luís 16, ansioso para acabar com o grupo "Secret du roi" e limpar a história diplomática do avô. Assim, foram iniciadas negociações entre D'Éon e a nova corte francesa.

Em troca de entregar seus papéis diplomáticos secretos, D'Éon exigiu que a corte francesa pagasse a ela uma pensão e a reconhecesse oficialmente como mulher.

"D'Éon queria ser reconhecida como mulher, viver como mulher, mas também manter o direito de usar o uniforme militar de um oficial francês, pois não gostava de roupas femininas", diz Gary Kuts.

O rei, convencido de que d'Éon era biologicamente do sexo feminino, concordou com os termos de d'Éon, mas com uma condição.

"Luís 16 interveio e disse: vamos te pagar um novo guarda roupa feminino, mas você tem que usar essas roupas femininas", afirma Kuts.

"D'Éon concordou a contragosto", diz Kuts. "Usava roupa de mulher, mas, sobre essa roupa, usava também a medalha de São Luís, sua mais alta honraria militar, o que para um espectador do século 18 era um absurdo."

O descendente de D'Éon Phillipe Luyt conta que, agora como mulher, ela "apareceu em Versalhes em uma homenagem a Luís 16 vestida com um vestido de Maria Antonieta (esposa de Luís 16), mas sem se barbear e usando botas".

"As pessoas adoraram, e o rei ordenou que nunca tirasse a roupa de mulher. Mas D'Éon se recusou, e um ano depois, foi detida e enviada à prisão em Dijon até que mudasse de ideia", diz Luyt.

"Depois de um ano, D'Éon cedeu e foi obrigado a viver, como mulher, na cidade de Tonnerre, por 7 anos."

Questão de gênero

Após anos de exílio, ela finalmente foi autorizada a voltar a Londres, sempre sob a condição de que continuasse a usar o guarda-roupa feminino.

Kuts afirma que poderia-se "dizer cinicamente que D'Éon usava roupa de mulher para garantir a renda da pensão que recebia anualmente" da corte, mesmo vivendo na Inglaterra.

Mas quando veio a Revolução Francesa, em 1789, todos os nobres perderam suas pensões. E Kuts aponta para o fato de que, mesmo sem a pensão, D'Éon optou por continuar a se vestir como mulher.

Kuts diz não haver dúvida de que D'Éon era trans ou transgênero, mas ressalta que "no século 18, ser transgênero era diferente do que é hoje".

"As pessoas trans de hoje identificariam D'Éon como uma pioneira, e com razão, porque ela fez essa jornada atravessando a barreira de gênero."

"Mas D'Éon não era como alguém hoje que diz 'sempre fui trans' ou 'sempre me senti como mulher'."

Baseado nos manuscritos autobiográficos de D'Éon, Kutz diz acreditar que D'Éon "via a feminilidade como algo que ansiava alcançar, uma espécie de purificação moral. Era isso que a feminilidade fazia por D'Éon: permitia viver uma vida mais moral."

Sem dinheiro

Quando sua pensão francesa anual foi suspensa e o dinheiro acabou, D'Éon começou a participar de exibições de esgrima vestida de mulher, surpreendendo o público.

As finanças, no entanto, continuaram apertadas e, apesar da fama e notoriedade que acompanharam sua vida singular, D'Éon morreu na pobreza em 1810, aos 81 anos, após ter vivido 15 anos em Londres como mulher, dividindo acomodação com uma amiga viúva, a senhora Cole.

Foi Cole quem encontrou seu corpo sem vida. Quando começou a despi-la, deu um grito de espanto ao ver o pênis de D'Éon.

"Cole nunca havia imaginado que fosse uma pessoa com órgãos genitais do sexo masculino normais", explica Kuts.

Como o assunto sempre foi tão controverso, a idosa decidiu que era necessária uma comprovação médica de sua descoberta.

Ela convocou um comitê de especialistas, incluindo um anatomista, dois cirurgiões, um advogado e um jornalista, que examinaram o corpo e o dissecaram para determinar se havia alguma dúvida sobre a masculinidade biológica de Chevalier.

Antes da dissecação, o artista Charles Turner foi convocado para fazer o desenho em que se baseou a gravura abaixo, a fim de deixar registrado o sexo de D'Éon. A gravura pertence hoje ao British Museum, em Londres.

A legenda logo abaixo da gravura, diz: "Desenhado a partir do corpo de Chevalier D'Eon, 24 de maio de 1810".

Em seguida vem declarações assinadas por médicos em tom de certificado: "'Por meio deste certifico que inspecionei e dissequei o corpo de Chevalier D'Eon, na presença de Adair, Wilson e Le Pere Elizee, e encontrei os órgãos sexuais masculinos perfeitamente formados em todos os aspectos. 23 de maio de 1810. Golden Square'."

"Em consequência de uma nota do cavalheiro acima assinado, examinei o corpo, que era de um homem; — o desenho original foi feito por C. Turner, na minha presença. Dean Street, Soho. 24 de maio de 1810."

No pé da gravura, ainda há a inscrição "Londres, publicado em 14 de junho de 1810 por C Turner".

Não está claro quantas impressões desta gravura foram feitas, nem se foi destinada a um público especializado ou à venda ao público, esclarece o British Museum.

Em todo caso, "foi então que a população europeia soube pela primeira vez que a história que dava como certa era, na verdade, o inverso do que pensava", diz Kuts.

"Ou seja, Chevalier nasceu homem e viveu a segunda metade de sua vida como mulher."