Crise do coronavírus acirra problemas enfrentados pelas mulheres
Na pandemia, cuidados com família e tarefas domésticas frequentemente recaem sobre mulheres. Elas também ocupam maioria dos postos na saúde, em supermercados e na limpeza, ficando mais expostas. Em meio à crise debelada pelo coronavírus Sars-Cov-2, uma das pequenas alegrias cotidianas de Audrey Lebeau-Livé é pressionar a tecla "mudo" durante conferências de áudio e vídeo do trabalho. Graças a essa ferramenta, ela consegue participar de uma reunião e lavar louça ao mesmo tempo, ouvir sua filha fazendo uma palestra diante da câmera de um computador no cômodo anexo e - se tudo correr bem -, colocar uma máquina de roupa para lavar.
Desde que o governo francês impôs amplas e severas restrições de circulação no país, fechando escolas temporariamente, Lebeau-Livé vive os desafios enfrentados por muitas mães e pais do mundo todo que precisam trabalhar e cuidar dos filhos ao mesmo tempo: "Dá a sensação de nunca conseguir fazer o suficiente, de nunca dar conta de tudo o que é preciso", diz.
Lebeau-Livé e o marido costumavam dividir as tarefas da casa. Mas, agora, ela ainda precisa fazer o almoço - normalmente, comia no refeitório da empresa. "Com frequência, o trabalho adicional acaba ficando com as mães", diz a francesa, rindo - apesar de a situação não ter graça nenhuma para ela. "Me sinto culpada", confessa. Segundo ela, o marido não carrega essa culpa, pensando: faço o que conseguir, o resto eu deixo para depois.
Segundo Lebeau-Livé, essa abordagem tem relação com o fato de as mulheres ainda terem que provar suas capacidades mais que os homens quando ocupam uma posição de liderança. Ela própria chefia uma pequena equipe no Instituto de Radioproteção e Segurança Nuclear (IRSN), próximo a Paris. Sua crítica: as pessoas que decidem sobre o trabalho em casa e restrições de circulação frequentemente são homens, que não levam a perspectiva feminina em consideração.
Hanna Eische, terapeuta artística em Berlim, tem opinião similar. Assim como a francesa Lebeau-Livé, tem três filhos e decidiu prolongar a licença maternidade por causa da crise do coronavírus. "Atualmente, muitas mulheres cuidam mais das crianças porque o homem ganha mais", constata Elsche, que diz perceber o fenômeno também entre seus conhecidos. Segundo ela, na empresa do marido nem perguntaram quem cuidaria das crianças em casa durante a crise.
Catriona Graham descreve assim o que muitos apontam como um problema de luxo: "Os estereótipos de gênero estão entre as origens mais poderosas e rígidas do sexismo e da desigualdade." Segundo a funcionária da European Women's Lobby, organização que defende os interesses de mulheres, é especialmente em tempos de crise que muitas pessoas recorrem a papeis estereotipados para se sentirem mais seguras.
Entre os clichês usuais, encontra-se o de que mulheres se ocupam mais das crianças e da casa, além de assumirem também os cuidados de membros mais idosos da família. De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), as mulheres já executavam três vezes mais trabalhos não remunerados do que os homens antes da pandemia de covid-19. Segundo o órgão, o trabalho sem pagamento agora está aumentando exponencialmente.
Manter a vida funcionando
As medidas restritivas impostas devido ao coronavírus afetam especialmente mães solteiras - 85% dos responsáveis solos pelos filhos são mulheres. Há alguns anos, Laurence Helaili-Chapuis, de Dublin, fundou um grupo para ajudá-las. Muitas delas a contataram nas últimas semanas por estarem "numa situação complicada", relata. Fazer compras sozinha, por exemplo, é difícil para muitas delas. Algumas também estão preocupadas com o futuro profissional.
A preocupação tem justificativa. As Nações Unidas já alertaram que serão as mulheres as que mais vão sofrer as consequências econômicas da crise. Segundo a ONU, quase 60% das mulheres de todo o mundo trabalham no setor informal, recebem menos que os homens, não conseguem economizar e são mais ameaçadas pela pobreza.
Ao mesmo tempo, são precisamente as mulheres que mantêm a vida funcionando atualmente. Na União Europeia (UE), por exemplo, quase 80% das vagas do setor de saúde são ocupadas por mulheres. Funcionárias de supermercados que continuam abertos e no setor de limpeza também são, em grande parte, mulheres. Apenas pelo tipo de trabalho, estão expostas a um risco maior de contraírem uma infecção pelo coronavírus.
Não é a primeira vez que mulheres são especialmente afetadas por uma crise. Estudos recentes mostraram que, durante a epidemia de ebola na África Ocidental, em 2015, as mulheres corriam mais riscos de contaminação - também porque eram elas que, na maioria das vezes, cuidavam dos pacientes infectados.
Código secreto contra violência
Para as mulheres obrigadas a ficar em casa durante a crise do coronavírus, há um outro tipo de ameaça. Evelyn Regner é deputada europeia do Partido Social-Democrata austríaco (SPÖ) e preside o comitê de direitos das mulheres no Parlamento europeu. "Sabemos que um terço das mulheres já vivenciou algum tipo de violência no círculo íntimo", diz. Com as proibições de saída, o número explodiu na Europa. Segundo a ONU, houve aumento de 75% das ligações a linhas telefônicas de auxílio a mulheres na Itália. Em outros países do bloco, as ligações dobraram.
A eurodeputada, porém, também relata sinais de esperança. Na Espanha, por exemplo, as mulheres podem conseguir ajuda em farmácias, alguns dos poucos estabelecimentos que podem visitar durante a validade das medidas restritivas. Basta usar o código "máscara 19" para que os farmacêuticos alertem a polícia.
Mas "o coronavírus piorou a crise", diz Regner, citando não só a violência, como também a desigualdade de salários ou a difícil situação de mães solteiras. "O que já era péssimo piorou ainda mais."
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