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O calvário das pessoas transgênero para "serem elas mesmas" na China

AFP
Imagem: AFP

Da EFE

18/05/2019 09h45

Recorrer ao mercado negro para comprar hormônios ou ficar sem eles: esse dilema é compartilhado por milhares de pessoas transgênero na China, onde o atendimento médico para esses casos ainda é muito restrito e possui várias complicações.

A falta de informação pública, somada à escassa capacitação de profissionais no setor da saúde, leva muitas pessoas a recorrerem ao mercado negro para iniciar o tratamento hormonal, o que inclui todos os riscos derivados da automedicação.

Dores físicas e até mesmo o desenvolvimento de transtornos depressivos são os efeitos colaterais mais comuns. Em alguns casos, elas precisam abandonar o tratamento após alguns meses, como fez H. C., uma ativista transgênero que prefere manter o anonimato.

"Atualmente, os hormônios são obtidos principalmente por meios ilegais e nem os médicos sabem receitá-los", disse a jovem à Agência Efe.

Para aqueles que decidem se submeter a uma cirurgia de 'mudança de sexo', o calvário é inclusive maior: a atual regulação, aprovada em 2017, exige uma série de pré-requisitos que os coletivos e associações LGBT consideram inaceitáveis.

Primeiro, é necessário ser 'diagnosticado' como pessoa transexual, ter mais de 20 anos, não ser casado e estar em condições físicas 'adequadas' para entrar na sala de cirurgia.

E tem mais: os interessados também não podem ter antecedentes criminais, precisam provar que querem fazer a cirurgia há pelo menos cinco anos e devem contar com a aprovação da família, independentemente da idade.

Essa última condição é a que mais causa problemas às pessoas transgênero, que diante da rejeição e da incompreensão das famílias passam a conviver com uma situação delicada para esconder a própria identidade ou buscam alternativas muito mais caras no exterior.

"Eu saí de casa há três anos e os meus pais ainda não sabem que sou mulher. A minha irmã é a única para quem contei", admitiu H.C., que espera poder se submeter a uma cirurgia no futuro, apesar da mais que provável oposição da família.

"Os meus pais têm o direito de saber, mas isso não significa que concordarão comigo. Eu penso fazer essa operação, na China é barato, mas infelizmente preciso da permissão", lamentou a ativista.

De fato, alguns médicos chegam a exigir o consentimento da família para 'diagnosticar transexualidade' ou para prescrever outro tipo de tratamento, como o hormonal, de acordo com um relatório da Anistia Internacional.

Por isso, a família representa a primeira pedra no caminho das pessoas transgênero, analisou Ah Qiang, diretor executivo da ONG Pflag China.

"Dizer que é homossexual já gera rejeição na família, mas é depois, no momento de admitir que busca uma mudança de sexo, que os pais reagem das piores maneiras. É um duplo processo de aceitação", frisou.

Essa discriminação também fica clara no trabalho. Muitas pessoas trans não conseguem determinados empregos por não coincidirem a aparência com o sexo que aparece no documento de identidade.

Também não é possível alterar o sexo nos diplomas acadêmicos, mesmo depois da mudança no documento de identidade, o que frequentemente obriga essas pessoas a se contentarem com postos de trabalho de menor qualificação.

"Um proprietário não quis alugar um apartamento porque a minha aparência não coincidia com o sexo que está na minha carteira de identidade", lembrou H.C.

Quanto ao número de indivíduos transgênero na China, as estimativas variam de 100 mil a quase 4 milhões (conforme calculou a organização Asia Catalyst em 2013), números que contrastam com a total ausência de dados oficiais devido ao desinteresse generalizado neste grupo.

Mas há exceções, como o Terceiro Hospital da Universidade de Pequim, famoso entre a comunidade trans pela presença de uma equipe multidisciplinar encarregada de atender essas pessoas.

Um dos integrantes dessa equipe é Pan Bailin, um jovem cirurgião plástico que começou a se interessar pelas pessoas transgênero há anos e que agora se dedica a proporcionar um "atendimento médico integral, profissional e humano".

"Os pais têm muitas dificuldades para assumir que os filhos são transgênero, inclusive quando recebem atendimento médico adequado. A educação familiar e a popularização da ciência são aspectos nos quais deveríamos nos concentrar durante algum tempo", destacou.

De qualquer forma, embora já tenham ocorrido "muitos" avanços nos últimos anos, na opinião de H.C. ainda há um longo caminho a ser percorrido, principalmente no que se refere ao consentimento familiar para as cirurgias, que precisa eliminado com urgência.

"Agora há médicos que estão conosco, mas isso não é suficiente. O governo tem que nos apoiar e fazer algo por nós", ressaltou a ativista.