"Descobri peças em que me reconheço", diz Laerte sobre moda transgênero
Patrícia Colombo
Do UOL, em São Paulo
"Às vezes, um cara tem que se montar, ué?", disse o personagem das tirinhas Hugo Baracchini, após passar batom, depilar-se e colocar uma peruca. Mais do que um simples e genial quadrinho de Laerte, foi a partir dele que o cartunista se deu conta de que era transgênero.
Posicionando-se como a Laerte --sempre gostou do nome Sônia, mas acabou nunca alterando o que fora registrado pelos pais na certidão de nascimento--, ela foi descobrindo as peculiaridades e complexidades do universo feminino. Dos looks mais discretos de anos atrás ao atual cabelo loiro, passou a perceber não só o que lhe agrada e que fica bem em seu corpo, mas, acima de tudo, o que lhe confere uma identificação genuína.
“O meu estilo mudou? O seu também, não?”, brinca a cartunista, em entrevista ao UOL Moda. “As transformações visuais não estão associadas, necessariamente, às questões de gênero, mas a como a pessoa se vê em tal fase da vida", acredita. "No começo, eu ousava menos porque ainda me sentia um pouco desconfortável com a ideia do que estava acontecendo. Estava tímida e insegura. Com o tempo, passei a descobrir com o que me reconheço e a entender meu corpo sob um ponto de vista transgênero.”
Apesar de já fazer cinco anos que resolveu assumir o sexo oposto ao atribuído no nascimento, Laerte diz que só agora começou "a sossegar com a ideia". “Quando me olho no espelho, não vejo um corpo biologicamente feminino, mas me vejo como mulher. Esse é um processo lento e muito sofisticado." E aconselha: "A pessoa tem que entender que ela é assim e que não é fingimento. Pelo contrário, fingir é não contemplar esse seu lado que é tão legítimo”.
Desde a época em que ainda se vestia diariamente como homem, de tempos em tempos, se arriscava em lojas de roupas femininas. Ela diz que sempre contou com a receptividade das vendedoras, após explicar que as peças eram para si mesma e não para uma namorada ou filha. “Acabam me indicando outras coisas, me dando dicas”, diz. Em lojas de departamento, também segue frequentando o provador feminino. “Só uma vez passei por uma situação chata, quando a vendedora claramente se sentiu desconfortável e me atendeu de forma ríspida, mas foi uma bobagem”, lembra.
Sobre estabelecimentos de moda específicos para transgêneros, Laerte posiciona-se com um pé atrás. “Há pouco tempo, abriu uma loja para travestis e transexuais na Bahia. Isso foi saudado como algo interessante, mas não sei se é bem assim, porque, sem querer, ela também carrega um aspecto segregador”, acredita.
Entre roupas e sapatos
Ainda que a indústria tente impor padrões e fechar os olhos para essa realidade cada vez mais plural, não é novidade a existência de mulheres com diferentes tipos físicos, das mais magrinhas às mais gordinhas. No caso dos transgêneros, as distinções são semelhantes.
“De modo geral, os homens têm que lidar com dois tamanhos: tórax largo e bunda menor. Para sutiã e para calcinha, são duas numerações”, explica. “Claro que tudo depende também do corpo do homem. Conheço alguns que são umas gatas. Sem hormônio e sem nada, a pessoa já é linda. Dá até raiva (risos).”
Sem nunca ter se submetido a cirurgias ou a tratamentos hormonais, Laerte foi conhecendo seu corpo e descobrindo o que o valorizava. Nos últimos meses, é comum vê-la de minissaias com botas de cano alto (como as que usou no dia da entrevista, junto a uma regatinha pink, um coloridíssimo blazer e um par de brincos verde-limão), assim como se entrega, também, às saias compridas em looks com pegada indiana, que adora.
“Não vou falar que gosto de peças confortáveis, porque, quando a gente fala isso, imediatamente as pessoas pensam em roupa feia”, brinca. “Mas jamais me consideraria fashionista. A informação de moda que tenho vem de conselhos que me dão e do que vou tentando. Ainda sou uma velha hippie (risos).”
Já que a identificação com as roupas é essencial, ela revela que a primeira peça que a fez se sentir verdadeiramente feminina foi o tubinho azul escolhido para uma entrevista ao programa “Roda Viva”, da TV Cultura, em 2012. “Foi a primeira roupa que me deu essa sensação”, diz. “É um vestido que fica mais ajustado, mas que negocia muito bem com o meu corpo. Tem um ótimo caimento. Já usei tanto com peito quanto sem peito e sempre dá certo.”
Sobre o que não funciona, pontua as peças exageradamente coladas ao corpo. “Sabe esses vestidos bandage, bem justos? Gosto bastante, mas não tenho corpo e já estou com 64 anos”, diz. Quando vai se arrumar, a matemática começa por algo que queira usar, compondo o look a partir dali. Leva em torno de uma hora, mas garante ter uma versão prática de 15 minutos para dias mais corridos.
“Não gosto de sair sem nada, nem que seja para ir ao banco ou à padaria. Sempre passo algo nos olhos, pelo menos”, diz. Vaidade? “A vaidade leva a gente para o território da conquista do mundo, para o ‘quero que todo mundo goste de mim’. E, às vezes, não é isso", responde. "Às vezes é só uma autocomposição mesmo, é o modo como você se vê, como se entende e se prefere.”