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Quando o abuso pega no bolso: entenda a violência patrimonial

Getty Images
Imagem: Getty Images

Helena Bertho

do UOL, em São Paulo

15/04/2017 04h00

Depois de 10 anos de casamento, um dia Luana* simplesmente chegou ao limite. As coisas não andavam bem, seu marido era controlador e ela andava se sentindo diminuída. Naquele dia, sem nada de especial acontecer, ela decidiu se divorciar. A reação de seu marido, no entanto, foi completamente inesperada: "Ele me botou para fora de casa e queimou minhas roupas". O ápice da violência que ele cometia contra ela, um tipo bem específico e previsto na Lei Maria da Penha: a violência patrimonial. 

Esse poderia ser o começo da ruína de Luana. A questão é que os problemas dela começaram bem antes, 10 anos antes, quando se casou e passou a ter sua vida financeira controlada pelo marido.

Depois do divórcio, Luana ficou apenas com metade do valor da venda do carro do casal, o único bem no nome dos dois. Sem emprego e morando de favor, perdeu a guarda dos filhos, o que fez com que não conseguisse pensão alimentícia. "Eu não tinha dinheiro para pagar um advogado e tive meus filhos arrancados de mim. Até hoje, dois anos depois, ainda estou recolhendo os caquinhos".

Doula de formação, durante o período em que esteve na relação trabalhou algumas vezes. Mas sempre que começava a ganhar bem ou a crescer, o marido passava a pedir que largasse a carreira, que se dedicasse a cuidar dos filhos e a pressioná-la. Através do grito ou de uma conversa bem convincente, ele sempre acabava fazendo com que Luana abandonasse sua carreira para ficar com os filhos e cuidar da casa.

Responsável pelo sustento da casa, ele também controlava o dinheiro dela. "Pagava as contas, mas não dava nada para mim. Se eu queria comprar roupa para os meninos, precisa dar meu jeito, implorar. Isso era muito degradante e me fazia sentir mal", conta ela.

Além de estar fora do mercado de trabalho quando se separou e sem fonte de renda, Luana também estava fragilizada emocionalmente. Uma soma de todas as violências que sofreu do ex e que culminaram com suas roupas queimadas.

A violência patrimonial alimenta a física

Menos conhecida do que a violência física, a moral ou a psicológica, a violência patrimonial é aquela que acontece quando o parceiro controla o dinheiro, não dá permissão para compras ou certos usos do dinheiro, não deixa a mulher trabalhar, oculta bens e patrimônio ou destrói objetos da mulher. 

Na prática, a advogada Ana Paula Braga, especialista em atendimento a mulheres, explica que a violência patrimonial é muito naturalizada em nossa sociedade e leva a uma situação de controle e poder. "Ela é cometida, por exemplo, quando um pai ou ex-marido não paga pensão alimentícia mesmo quando tem condições de fazê-lo; quando uma partilha no momento do divórcio é feita de maneira desigual pois é o divorciando quem detém o poder financeiro e, consequentemente de decisão; quando um namorado destrói bens particulares da sua consorte; quando um esposo impede sua mulher de trabalhar fora de casa ou determina como gerir o salário que ela recebe. São situações quase cotidianas".

Mesmo assim, são difíceis de identificar. No balanço de 2016 das ligações para o 180, número para denúncias de violência contar a mulher, a violência patrimonial representou apenas 1,86% dos relatos, segundo o balanço divulgado pela Secretaria de Políticas para Mulheres. Mas é importante saber que essa forma de violência está intimamente ligada às outras.

E suas consequências vão muito além do bolso. "Isso mexe com a autoestima, com a confiança, a pessoa começa a achar que não é capaz. Além disso, a falta de autonomia envolve medo muitas vezes e humilhação", afirma a psicóloga e psicoterapeuta de casais Cláudia Graichen.  É comum que ela venha associada à violência psicológica, física e até sexual.

Além disso, a violência patrimonial desempenha um papel importante no chamado ciclo da violência doméstica: ao tirar a autonomia financeira da mulher, o marido faz com que ela permaneça dentro de uma relação violenta, sem ter meios para sair. Sem carreira ou sem recursos, muitas mulheres se vêm presas a casamentos nos quais não estão felizes e, quando optam por sair mesmo assim, podem ficar na situação de Luana: sem nada.

E a mulher dona de casa?

Escolher deixar de trabalhar para cuidar da casa e dos filhos não é violência patrimonial. Tanto o homem quanto a mulher pode fazer isso. A questão é quando não existe escolha e a mulher é forçada a isso através de pressão ou ameaça. "Por ter afeto envolvido, é comum que a mulher acabe entrando no jogo do parceiro, sendo convencida de que vai ser melhor para os filhos".

As especialistas destacam também que, quando essa decisão é tomada, é essencial que exista uma conversa sobre como o dinheiro vai funcionar no relacionamento, pois o trabalho doméstico passa a ser a profissão dessa mulher.

Para Cláudia Graichen, aí existe uma outra questão que torna a violência patrimonial ainda mais comum: falar sobre dinheiro é um tabu entre casais. "Mesmo quando não há violência, há uma dificuldade muito grande em se falar sobre a vida financeira. Não somos educados a falar sobre isso. Nos relacionamentos, de maneira geral, se entra com acordos velados e não explícitos e é fácil que surjam injustiças aí".

A advogada Marina Ruzzi, sócia de Ana Paula, lembra também que na nossa sociedade ainda existe uma expectativa de que o homem seja o provedor da casa, o que complica essa conversa. "Seja porque expor as possibilidades financeiras de uma pessoa podem lhe gerar desconfortos, seja porque de alguma maneira ainda haja uma expectativa por parte dos homens de que essa é uma função que lhes compete e que não precisam - nem devem - compartilhar com suas companheiras".

Dá para se proteger da violência patrimonial?

"Por existir afeto e não ser tão explicito quanto a violência física, é difícil a mulher perceber que está na situação", explica Cláudia Graichen. Por isso, é importante que as mulheres sempre tomem alguns cuidados ao entrarem em um relacionamento, de forma a se proteger. Par as advogadas consultadas, algumas das medidas que podem ser tomadas são:

  • Recolher INSS, independentemente da situação financeira, para ter uma garantia de segurança para imprevistos.
  • Escolher com cuidado o regime de bens com o qual vai firmar a união com o parceiro. O mais comum é a comunhão parcial de bens, na qual tudo que foi adquirido durante a relação é considerado do casal, enquanto o que cada um tinha antes não é dividido.
  • Falar claramente sobre dinheiro e os patrimônios de cada um, assim como o que vai ser comum e o que continua sendo de cada um.
  • Participar do controle do dinheiro, mesmo que não trabalhe. Isso quer dizer tem acesso às contas, acompanhar as movimentações e participar da decisão de como o dinheiro vai ser usado.
  • Na separação, discutir todas as questões de divisão de bens e pensão judicialmente, para não ter injustiças e também para deixar registrado tudo.
  • Ter um advogado diferente do escolhido pelo parceiro durante o divórcio, mesmo que seja amigável.

É importante pedir ajuda

Você se identificou com esse texto e acha que está sofrendo violência patrimonial? "O primeiro passo para sair é pedir ajuda", orienta a psicóloga. Ela sugere falar com parentes ou amigos de confiança, que possam te acolher. O passo seguinte é fazer uma pesquisa e traçar um plano, tentando economizar algum dinheiro escondida e estruturando um caminho para ter estabilidade após a separação.

As advogadas orientam também a conhecer seus direitos e buscar a ajuda de um advogado. Assim a partilha dos bens e a definição da pensão pode ser feita corretamente. Mesmo sem filhos, mulheres que dependem financeiramente do marido têm direito a pensão logo após a separação – a duração e o valor variam de caso a caso. Além disso, a Lei Maria da Penha prevê medida protetiva para violência patrimonial e até prisão para alguns casos.

Por fim, Cláudia destaca que é essencial buscar ajuda psicológica, nem que seja através de apoio online. "A mulher precisa reconstruir sua autoconfiança, para conseguir se libertar o relacionamento tóxico e também para reconstruir sua vida", orienta. 

*Nome fictício. A entrevistada pediu para que seu nome não fosse revelado.