Sou tetraplégica, mas conquistei independência e me casei com um cadeirante
Aos 17 anos, Fernanda Fontenele sofreu um acidente que a deixou tetraplégica. Guerreira, ela correu atrás da recuperação e conquistou a uma vida independente. Hoje, é uma empresária de sucesso, que ajuda outros cadeirantes a terem a mesma qualidade de vida.
"Não consigo me lembrar do momento do acidente. Só sei que estava voltando do aniversário do meu irmão, em uma chácara, quando meu ex-namorado perdeu o controle do carro, bateu em outro e capotamos. Apaguei. Depois me contaram que o outro veículo pegou fogo, que pingava gasolina em mim e que fui retirada às pressas, antes que tudo explodisse, antes de o resgate chegar.
Mas o que nunca vou me esquecer é de acordar no hospital, depois da cirurgia, sem ter noção do que tinha acontecido. Meu pai chorava e me beijava da cabeça aos pés, em um misto de desespero e impotência. Ninguém me explicava nada.
Não sentia meu corpo do pescoço para baixo, mas achei que era algo temporário, como uma fratura que sara ao colocar gesso. Eu tinha 16 anos e disse tranquilamente, para acalmar meu pai, que logo eu sairia daquela cama de hospital e iria curtir minha festa de formatura."
"Passei três meses no hospital"
"Não era verdade. Não consegui ir à minha formatura. Depois de semanas no hospital, consegui vaga para reabilitação em um outro especializado. Foi lá que a ficha caiu: o acidente me deixou tetraplégica e minha vida toda mudaria dali para frente.
Mesmo assim, não me deixei abater e mantive fixa a ideia de que iria me recuperar o quanto antes e voltaria a andar. Comecei a fisioterapia e outros tratamentos para tentar recuperar meus movimentos.
Fiquei três meses internada nesse hospital e depois passei ao tratamento diário, voltando para casa à noite. Adiei meus estudos decidida a ir para a faculdade somente quando conseguisse andar de novo. E como em alguns meses comecei a recuperar o movimento das mãos, fiquei cheia de esperanças."
"A ficha caiu. Eu precisava voltar a viver"
"Um ano se passou até que meu médico um dia me chamou para uma conversa séria: 'Fernandinha, você não pode parar sua vida, fazendo planos para quando voltar a andar'. Ele não queria que eu perdesse as esperanças, mas também não desejava que eu passasse anos e anos dedicada somente a isso.
A ficha caiu. Eu precisava voltar a viver. Fiz a inscrição para o vestibular e comecei a faculdade de jornalismo.
Apesar da minha condição, não foi difícil. Contei com muita ajuda: minha mãe me levava e buscava todos os dias e meus colegas foram muito receptivos. Empurravam minha cadeira para todo lado, me levavam para as festas e, com eles, pude viver por completo a experiência da vida universitária. Claro que sem nunca abandonar meu tratamento.
Quando me formei, porém, veio o desejo de me dedicar de novo à minha recuperação. Eu queria ser independente! Comecei uma pesquisa e descobri o site de uma clínica nos Estados Unidos que propunha uma metodologia toda diferente de tratamento, trabalhando o corpo como um todo e também o sistema nervoso. Fiquei animadíssima e decidi ir para lá. O problema era que minha família não tinha como bancar."
"Desconhecidos pagaram meu tratamento no exterior"
"Se não tinha dinheiro, decidi ir atrás. Junto de uma amiga, montei uma campanha de arrecadação para levantar doações de empresas. Subi um vídeo contando minha história no YouTube e, para nossa surpresa, ele viralizou.
Jornais me ligaram, amigos se organizaram para fazer festas e pessoas, muitas pessoas, doaram o quanto podiam para me ajudar. Sem ter retorno de nenhuma empresa, consegui levantar 60 mil dólares em três meses! Era tudo o que eu precisava para fazer seis meses de tratamento na clínica. Foi incrível demais!
E tem mais: nesse processo todo, um rapaz chamado Felipe, que também era tetraplégico e estava indo fazer tratamento nessa clínica, ficou sabendo de mim e veio conversar. Mantivemos contato virtual por três meses. Quando ele partiu para lá, um pouco antes de mim, eu já estava apaixonada por ele."
"Encontrei meu amor no tratamento"
"Graças à ajuda de dezenas de desconhecidos, em 2009 pude partir para a Califórnia. Como nem conseguia empurrar a cadeira de rodas sozinha ainda, minha mãe largou tudo e foi comigo.
No aeroporto, mais uma novidade incrível: Felipe me esperava e me recebeu com um beijo e muito carinho. Era muita expectativa boa para aquela viagem!
Expectativa que foi se confirmando com o tempo. Eu e Felipe começamos a namorar e ficamos completamente apaixonados, enquanto fazíamos o tratamento que era maravilhoso. Eles focavam em adquirir consciência corporal, fazer com que eu percebesse o que meu corpo fazia naturalmente e ir tendo mais controle sobre isso.
Além disso, os exercícios estimulavam meu cérebro a se adaptar e encontrar novas formas de fazer as conexões perdidas com a lesão da minha medula. Assim, fui conseguindo melhorar o movimento dos meus braços, adquirir firmeza no tronco e força nas pernas e até me sustentar em pé!
Some isso ao fato de viver só eu e minha mãe, em menos de um ano consegui me tornar novamente independente. Aprendi a me levantar sozinha quando caía da cadeira, tive de dar conta de lavar minhas roupas, me locomover por conta e me virar!"
"Cadeirantes e independentes, sim"
"Em 2010 voltei para o Brasil, cheia de planos. Ia viver com Felipe em São Paulo e juntos traríamos para nosso país o método de reabilitação que havia nos transformado.
Passei em Brasília só para reencontrar amigos e família e já vim viver com meu amor. Alugamos nosso apê e fomos viver sozinhos, porque agora podíamos tudo. E abrimos nossa clínica, Acreditando, onde vítimas de lesão na coluna poderiam ter o tratamento que tivemos nos Estados Unidos.
Desde então, levamos praticamente a mesma vida que qualquer outro casal: vivemos com nossos quatro cachorros, cuidamos da casa, dirigimos para o trabalho, labutamos o dia todo e nas férias sempre viajamos para algum lugar legal. Mesmo sem andar, temos cada vez mais tecnologia a nosso favor.
Sim, somos cadeirantes e isso exige adaptações, mas nada impossível. As calçadas de São Paulo não são para cadeiras de rodas e as pessoas tendem a nos olhar estranho na rua, mas a vida segue. Tanto que criamos um canal no Youtube para compartilhar com outros cadeirantes os macetes do dia-a-dia sobre rodas e também ajudar a mostrar para as outras pessoas que cadeirantes podem sim viver normalmente."
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