"A droga me tirou até meu filho, mas não sou mais o lixo da sociedade"
Ivanice Cristina Martins, a Nice, como prefere ser chamada, festeja o primeiro emprego com carteira assinada dos seus 36 anos de vida. A conquista é uma vitória para a mulher que começou a cheirar cola aos oito anos, logo estava no crack e teve sete filhos, entre idas e vindas das ruas.
Stefany, 20 anos, filha mais velha de Nice, teve papel fundamental no processo de reconstrução da identidade. Tanto cuidando dos irmãos menores nas ausências dela –provocadas pelas drogas– quanto incentivando a mãe a deixar o vício. Hoje, mãe e filha são colegas de trabalho no McDonald's. A seguir, Nice conta sua história.
“Sofri muito preconceito na escola por ser negra. Falavam que eu tinha cabelo duro, cantavam musiquinha, me chamando de ‘preta do sovaco fedorento’. Chegou um ponto que a minha mãe me mandava para o colégio e eu ia para o centro da cidade, passava o tempo zanzando na rua.
Por volta dos oito anos, comecei a cheirar cola, depois passei para esmalte. Com 12, já usava crack. Com 16 anos, tive a Stefany, com um dos colegas de droga. Indo e voltando das ruas para a casa da minha mãe, tive mais cinco meninas e um menino, com pais diferentes.
Quando eu sumia por causa do vício, Stefany cuidava dos irmãos. Minha mãe mudou para a Praia Grande [litoral de São Paulo] e meus filhos foram com ela. Resolvi buscar todo mundo para ficar comigo aqui em São Paulo. Íamos pulando de ocupação em ocupação ou abrigos. Tinha conseguido parar de usar crack e vendia balas e chocolates em faróis.
Nessa época, o Marcos, meu único menino, começou a usar drogas. Aos 15, teve uma parada cardiorrespiratória por cheirar lança-perfume e morreu. Ele foi enterrado pela Prefeitura. Nem pude me despedir direito. Fiz o reconhecimento do corpo, colocaram no caixão e levaram. Foi um baque e eu tive uma recaída, voltei para o crack. Isso foi há um ano e meio.
Peguei raiva da droga. Ela me tirou tudo, até meu filho"
Stefany pegou os irmãos e foi para a casa da avó. Passou um tempo e fui atrás. Ela falou: ‘Só volto se você parar’. Há dois anos, estou me segurando. Peguei raiva da droga. Ela me tirou tudo, até meu filho. Um dia, no abrigo que estou morando com elas, apareceu uma assistente social e perguntou se eu e ela não queríamos fazer um curso [ação da Prefeitura de São Paulo que prepara moradores de rua para o mercado de trabalho]. Fizemos e chamaram a Stefany para uma entrevista na lanchonete na qual trabalhamos hoje. Fui junto, pedi uma chance, na cara de pau, e me deram.
Tem quase quatro meses isso. Está sendo maravilhoso. Quando estava nas ruas, ouvia coisas como ‘olha o lixo da sociedade’, ‘a noia’. Agora, não sou mais o lixo da sociedade. Parei de ter raiva de todo mundo. Trabalhando, consegui montar nosso cantinho no abrigo. Temos TV, micro-ondas. Compro o que queremos comer.
Minha mãe morreu no começo de agosto, mas ela conseguiu pegar um pedacinho dessa vida nova. Ela –que falava que eu era a maior decepção da vida dela– pode me ver cuidando melhor dos meus filhos. O enterro que não pude dar para o meu filho consegui fazer para ela, com a ajuda da empresa. Tudo isso só aconteceu porque a Stefany não me abandonou. Agora o sonho é ter uma casa nossa.”
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