Elas sofreram abuso na infância, mas só se deram conta na vida adulta
O último balanço do Disque 100, canal de denúncias de violação de direitos humanos, de 2016, revela que os abusos sofridos por crianças e adolescentes lideram as queixas com 58% das ligações. As meninas são as que mais sofrem, chegando a 44% do casos. No mesmo ano, a Central de Atendimento à Mulher, conhecida como Ligue 180, recebeu mais de um milhão de acusações em todo país. Os números são alarmantes, mas não refletem a realidade, uma vez que crimes de violência sexual, moral e psicológica são subnotificados.
A presidente e fundadora da Asbrad (Associação Brasileira de Defesa da Mulher da Infância e da Juventude), Dalila Figueiredo, afirma que grande parte das mulheres atendidas nos 20 anos da instituição foram abusadas por pais, padrastos e avôs na infância e só se deram conta da gravidade do que sofreram quando chegaram à vida adulta.
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"Elas manifestam dificuldade de relacionamento, se acham culpadas pelo que passaram e, em situações piores, têm pensamentos suicidas", fala.
Quando se trata de crianças e adolescentes, a subnotificação é ainda maior, segundo Dalila, porque as violências acontecem, na maioria dos casos, no âmbito familiar. Para ela, as ferramentas do Disque 100 e Ligue 180 são as grandes aliadas para a prevenção e controle desse tipo de contravenção. "É necessário trabalhar o assunto permanentemente por meio da escola, dialogando com professores e pais."
A presidente da Asbrad diz que a violação de direitos não tem classe social determinada. "É um câncer maligno que atinge toda a sociedade."
A seguir, com a ajuda do Gram (Grupo de Apoio a Mulher), o UOL conversou com duas mulheres que sofreram abuso quando ainda eram crianças, mas só hoje, depois de adultas, conseguem falar sobre o assunto.
Elas não lembram, ao certo, quando começou
"Um tio da minha mãe costumava passar a mão por dentro da minha blusa e beijava a minha boca, muitas vezes com a língua. Não sei dizer com que idade isso começou, mas me lembro que com uns 13 anos, aproximadamente, não acontecia mais. Eu não gostava do que ele fazia, mas só na minha adolescência, quando tive meus primeiros namoradinhos, entendi que tinha algo errado [porque os meninos queriam fazer o mesmo]. Antes disso, pensava que era um carinho. Eu tentei contar para os meus pais, mas eles não acreditaram em mim. Acho que era mais fácil fingir que nada acontecia para não ter que lidar com o problema", Lu*, 37.
"Meus irmãos mais velhos, que eram adolescentes, abusavam de mim quando os nossos pais saíam para trabalhar. Minha primeira lembrança é de quando eu tinha entre 5 e 6 anos. Eles mexiam em mim o tempo todo. Às vezes um me segurava enquanto o outro me tocava. Minha vida foi um inferno. Aconteceu até os 14 anos, quando resolvi fugir de casa. Já tinha saído outras vezes, mas meu pai me pegava e me batia porque não entendia o que estava acontecendo. Nunca tive coragem de contar para ninguém", Andrea*, 42.
Uma vida sofrendo em silêncio
"Aquele tio fazia o mesmo com as minhas duas irmãs mais velhas. Lembro que toda vez que o encontrávamos, íamos correndo para o carro para não precisar nos despedir dele, mas meu pai obrigava. Por conta disso, tive dificuldade em dizer 'não'. Sofri violência doméstica e sexual do meu ex-marido. Meu segundo filho foi fruto de um estupro dele. O trauma da infância me impedia de reagir. Lembro que o maior pavor que senti, depois de adulta, foi quando tinha 20 anos. Fui visitar minha avó e ela colocou minha filha, que ainda era bebê, no colo desse tio. Morri de medo que acontecesse algo." Lu é divorciada e mãe de três.
"Quando comecei a me dar conta, sentia muito nojo e raiva dos meus irmãos. Nunca consegui ter um relacionamento saudável. Fui casada por 16 anos com o pai da minha filha, que me batia. Cheguei a tentar com outros, mas tenho muita dificuldade de conviver com homens, não consigo respeitá-los, sou arisca. Chego a ser um pouco antissocial. Meus pais já morreram e não tenho nenhuma relação com meus irmãos. Todos continuam sem saber de nada. Tenho muita vergonha e eles têm família, filhos, não quero prejudicar ninguém." A filha de Andrea tem 20 anos.
Como elas estão superando
"Conseguir desabafar com outras mulheres que sofreram os mesmos traumas me ajudou a começar a assimilar e superar tudo o que passei na infância. Acho que se eu tivesse passado por um acompanhamento diferente quando criança, não teria aceitado tantos maus tratos. Com os meus filhos, tento orientá-los dizendo que ninguém pode encostar e mexer no corpo deles, mesmo que seja alguém da família. Não sou neurótica, deixo eles passearem, dormir na casa de amigos, mas sempre pergunto depois como foi e com detalhes", Lu.
"Procurei terapia diversas vezes, mas sempre tive dificuldade de me abrir sobre essas questões. Desde 2012, frequento uma igreja e lá fui acolhida por um grupo que ajuda dependentes químicos, prostitutas e pessoas como eu. Ainda sofro muito, mas hoje consigo conversar sobre esse assunto sem chorar e me sentir tão mal. A igreja está curando as feridas. Com a minha filha, sempre tive medo que sofresse como eu, mas procuro orientar e falar abertamente sobre questões sexuais", Andrea.
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