Ela passou fome e catava lixo, mas criou um brechó de sucesso na periferia
O bazar Mont Petit, no Capão Redondo, bairro que já foi um dos mais violentos de São Paulo, é um marco na vida de Vanessa Vieira Yahia Berrouiguet, 44 anos. O nano-negócio é a volta por cima da mulher, que, após ficar viúva em 2012, viu-se sem ter dinheiro para alimentar as duas filhas, Marjorie, 9, e Marcela, 19.
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O empreendimento, criado em 2015 pelo empurrão da necessidade, não só garante o sustento da família como serve para encorajar outros pequenos empresários da periferia. Por causa dele, Vanessa será uma das palestrantes do evento “O Poder da Colaboração”, que acontece no Campus São Paulo do Google, na terça-feira (31). A seguir, ela conta a sua história.
“Conheci o Karin, meu marido, em um supermercado em São Paulo, em 1999. Ele era francês e havia ganhado uma viagem ao Brasil, como prêmio por ser o melhor vendedor da empresa em que trabalhava lá. Ele voltou para a França e ficamos um ano só nos falando por Skype. Antes de vir, ele havia aprendido um pouco de português.
Estávamos apaixonados e decidimos morar juntos. Ele era muito tradicional e falava que mulher dele não trabalhava nem estudava. Ele assumiu a mim e a minha filha mais velha, que, na época, tinha um ano. Em 2004, casamos no papel. Levávamos uma vida de classe média, em uma casa que ele alugou para a gente.
Tínhamos condições de viajar. Chegamos a ir juntos para a França, para a Grécia, para o México. Ele pagava escola para a Marcela. Tinha dinheiro para gastar com coisas para mim e para a casa. Tivemos a Marjorie.
Em 2012, ele ficou gravemente doente. Estava com 39 anos. Conversamos e achamos que seria melhor ele ir se tratar na França, para que as meninas não sofressem vendo como ele estava mal. Seis meses depois, ele morreu.
Pedi aos irmãos dele que me mandassem uma passagem para que eu fosse me despedir, mas nem responderam. Não tinha recursos para ir por mim mesma.
A família dele nunca me aceitou. Sou pretinha, uma mulher da periferia"
Durante dois anos, mantive a mim e as meninas fazendo bicos, como faxineira em um hospital, atendente em restaurante... Até que consegui um emprego fazendo pesquisas por telefone para um instituto. Só que um tempo depois fui demitida. Sem condições de pagar o aluguel, fui despejada.
Fui morar em um cômodo, nos fundos da casa da minha irmã, no Capão Redondo, lugar onde havia crescido. Não tive dinheiro para pagar um carreto para fazer a mudança, por isso só levei o que coube no meu carro, um Corsa 1998. Para sobreviver, ia fazendo pequenos trabalhos, uma faxina aqui, passava roupa ali... Também recebia ajuda, mas o tempo foi passando, eu não conseguia emprego, e as pessoas começaram a ficar incomodadas e parando de ajudar.
Minhas filhas iam dormir com fome e acordavam com fome"
Um dia, a escola da caçula me chamou, queriam saber por que ela andava faltando tanto, estava tão magra e pálida... Falei a verdade: tinha dias que, por não comer, não tinha nem energia para levá-la lá.
Aquilo me balançou muito. Pensei que elas não podiam sofrer assim. Fui para casa, peguei o meu Corsinha e resolvi catar lixo nas ruas para reciclar. Não sabia nada sobre isso. Decidi copiar o que via os catadores fazendo. Demorei a aprender que o que valia, mesmo, a pena eram os metais. No começo, tirava R$ 7. Com o tempo, passei a tirar R$ 140 por semana.
Recolhia o lixo de noite. De dia, lavava e separava para vender. Com esse trabalho, conseguimos voltar a comer. Um dia, sofri um acidente. Uma barra de ferro caiu em cima de mim. O médico que me atendeu disse que eu não podia mais trabalhar fazendo esforço. Fiquei com um desvio na coluna e corri risco de perder movimentos.
Vendi um resto de lixo que tinha e consegui um pouco de dinheiro. Quando começou a acabar, voltou o desespero. Subi na laje sobre o cômodo em que morava para chorar. Foi aí que dei de cara com um monte de coisas da mudança. Tinha esquecido delas. Eram sacolas e mais sacolas, com roupas, bolsas, sapatos...
Tive a ideia de fazer um ‘família vende tudo’. Lavei e passei tudo. Peguei caixotes de madeira, desses de feira, pintei. Na garagem, montei o bazar e fiz um cartaz, avisando que abriria no dia seguinte. Foi uma noite de expectativa.
Queria conseguir, pelo menos, R$ 50 para comprar arroz"
Na hora de abrir, ninguém apareceu, mas, quando deu 11h30, o lugar estava cheio de gente. Fiquei em choque e comecei a chorar. Não conseguia me mexer. Minha filha mais velha me empurrou para dentro de casa. Ela e a irmã começaram a atender os clientes.
Fiquei espiando por uma fresta. A mais nova, escondida, mostrava para mim as notas que ia recebendo. No fim do dia, tínhamos juntado R$ 1.050. Para mim, foi como se fosse um trilhão de reais.
Coloquei as duas no carro e fomos direto para um supermercado. Elas perguntaram se podiam pegar uma bolacha, um cereal... Falei que não. Disse que podiam pegar um carrinho cada uma e colocar o que quisessem dentro.
No meio do mercado, eu chorava e agradecia a Deus por lembrar de mim"
Era meu sonho de consumo poder fazer uma compra como aquela. Aquilo me devolveu a cidadania.
No dia seguinte, mais pessoas bateram à minha porta, perguntando quando o bazar aconteceria de novo. Foi aí que tive a ideia de fazer disso um negócio.
Primeiro, juntei outras coisas minhas que tinham sobrado. Depois passei a investir parte do que ganhava para comprar itens usados para revender. Resolvi fazer uma coisa mais elaborada. Ninguém deu bola, mas fiz uma plaquinha com o nome Mon Petit [meu pequeno, em francês].
O negócio começou a andar sozinho. Na frente do bazar, havia aberto uma padaria artesanal, o Ateliê Sustenta Capão [referência de empreendedorismo social em São Paulo]. As pessoas que frequentavam lá começaram a ficar curiosas sobre a movimentação que acontecia na minha garagem.
Foi assim que pessoas como a Nininha Sigrist [empresária que comandou por 16 anos uma empresa de doces e bolos para casamento] descobriu o meu bazar. Ela foi a primeira a doar coisas para eu vender no Mon Petit. Depois vieram outras, como a Regina de Moraes [filha do empresário Antonio Ermírio de Moraes].
Em 2016, comecei a ter ajuda do projeto Base Colaborativa para profissionalizar o bazar. Estamos indo bem. Construí uma casa sobre a garagem. Agora, ninguém mais me despeja. Dentro de mim tem crescido um sentimento de incômodo: quero ajudar outras pessoas a não passarem pelo que passei. Estou com o rascunho de um projeto social. Em vez de dar cesta básica, quero compartilhar conhecimento e ajudar na preparação profissional.”
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