Arqueóloga que cuida de tumba de D. Pedro I fez festa com múmia de monarca
A imperatriz Dona Leopoldina completaria 221 anos em 22 de janeiro de 2018, uma segunda de sol em São Paulo. Ao menos uma pessoa comemorou o aniversário: Valdirene Ambiel depositou uma orquídea no sepulcro da finada monarca, por onde passa toda segunda-feira.
A arqueóloga é voluntária do Monumento à Independência, onde estão guardados os restos mortais de Dom Pedro I e de Dona Leopoldina, primeira mulher do primeiro imperador Brasileiro, além de Dona Amélia, a segunda esposa, cuja urna funerária foi trazida de Portugal para o monumento, no bairro paulistano do Ipiranga, em 1982.
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Ambiel, 47, é uma das pessoas que melhor conhecem os remanescentes humanos do trio. Para o seu mestrado, no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, ela conseguiu em 2012 autorização para retirar as múmias de Dom Pedro e suas duas mulheres do mausoléu e levá-las para passar por exames de tomografia, raio-x, uso de raio infravermelho e ressonância magnética.
Os exames serviriam para descobrir como viveram (e morreram) os monarcas brasileiros. As informações colhidas para o mestrado seguirão em análise na tese de doutorado, que a pesquisadora da USP entrega até 2020. “Minha pesquisa não acabou, só começou. Muitas questões foram levantadas nos últimos anos.”
Desde o término do seu trabalho de campo, em setembro de 2012, ela se tornou voluntária da cripta real. Passa uma manhã por semana checando as condições de umidade e de conservação dos artefatos históricos. “Eu sabia que havia a necessidade de um acompanhamento, especialmente para os restos mortais de Dona Amélia.”
Festa na cripta
A múmia da segunda mulher de Dom Pedro I esteve presente em um momento ainda não revelado dessa pesquisa. Em janeiro de 2012, quando se comemorava o bicentenário de nascimento da imperatriz, houve uma festa de aniversário para Dona Amélia dentro da Capela Imperial.
A cripta de granito ganhou uma mesa com um quiche de queijo, sanduíche de metro cortados e um bolo de chocolate da padaria Maria Louca --uma piada com outra mulher da realeza, Maria I, de Portugal, conhecida como Maria, a Louca. Em cima do bolo, havia três velas cor-de-rosa, denunciando a idade que a aniversariante teria, se viva: 200. O público é proibido entrar com comida na tumba subterrânea.
Em frente à múmia, que havia sido exumada dias antes para passar pelos exames de imagem, foram colocados retratos coloridos dos familiares de Dona Amélia, em portas-retratos.
A pesquisadora diz que a comemoração foi um evento único: “Teve uma vez só. Durante os trabalhos, aconteceu o aniversário de 200 anos da Imperatriz Dona Amélia. Foi uma coisa só entre nós. Cada um trouxe só um salgadinho, um refri”.
A foto da celebração rodou grupos de Whatsapp de historiadores, arqueólogos e restauradores, e virou uma espécie de meme para a categoria. “Olha a festa mais morta da história”, disse um estudante de história ao UOL quando tirou o celular do bolso para mostrar a cena. Na imagem, Ambiel está cercada por pessoas da sua equipe e por funcionários do museu, como faxineiras e seguranças.
#Monarquiajá
Valdirene Ambiel é uma mulher de cabelos curtos e voz grave, agravada pelo cigarro, que veste uma camiseta com uma coroa de brilhos e o nome do principado de Liechtenstein escrito em cristais no dia do seu encontro com a reportagem. Ambiel gosta de monarquias.
Além de cuidar do que restou dos monarcas, é uma das vozes mais ativas no grupo Priorado de Mônaco no Facebook, que contava com 237 membros em fevereiro de 2018. “Toda vez que eu vejo uma notícia interessante sobre o principado, pelo menos uma publicação, eu coloco lá. Acho que acaba sendo uma vez por dia.”
Não é o único meio de comunicação em que ela quer atuar. Tem planos de fazer uma série documental com as mais de 800 horas gravadas de imagens do trabalho arqueológico. "Seria como os documentários do History Channel, com as filmagens inéditas e comigo narrando", diz ela, que ganhou reconhecimento quando os maiores jornais e canais do país noticiaram seu trabalho de exumação e de pesquisa com as múmias reais.
Enquanto fazia sua pesquisa com os restos mortais da realeza, ouviu críticas de pessoas que acusavam a nobreza de pular a fila, e deixar pessoas doentes sem exames. Ela rebate: "É um serviço para pessoas que morreram, aqueles equipamentos eram usados só para isso naquele momento." Mas a repercussão do trabalho, noticiado em 130 veículos de diversos países, teve um efeito maior do que os detratores. "Consegui entrar em contato com o pessoal de Portugal, pesquisadores que me ajudaram com informações."
E o reconhecimento trouxe alguma evolução para a tumba, por mais que as condições de conservação da cripta imperial estejam “longe do ideal”, com mais umidade do que o recomendado, ela afirma. Nos anos passados, Ambiel conseguiu a substituição das camadas da urna funerária de Dona Amélia, feita de madeira de lei, cedro e chumbo, que estava comprometida pela umidade.
A camada nova da urna, feita de aço inox, exigiu um périplo real. As empresas do setor metalúrgico, acostumadas a fazer panelas, achavam que era trote quando ouviam a encomenda de uma urna para uma imperatriz, e algumas desligaram na cara da pesquisadora, até que ela conseguiu encontrar uma nova mortalha para Dona Amélia.
O trabalho teórico rendeu um fruto prático. No começo de 2017, ela publicou “O Novo Grito do Ipiranga” (editora Linotipo Digital, R$ 60), livro em que narra uma linha do tempo da história da independência do país, com detalhes que colheu em suas pesquisas.
O livro foi editado e impresso com apoio de monarquistas, diz a autora, que nega querer a volta do reinado para o país. A foto em que aparece com apoiadores do regime real, com a frase “O Brasil faliu!!! Queremos nosso Brazil de volta!!! #monarquiajá”, é uma brincadeira de um amigo, ela diz.
Monegasca
Desde criança, Ambiel sonhava em ser arqueóloga, influenciada por documentários sobre múmias do Egito que via na TV. Mas o sonho foi atropelado por outro: o de ser militar. Em 1986 começou a estudar na academia da Polícia Militar. Já que ainda não podia se alistar, como o irmão, queria jogar vôlei, mas não havia vagas, então acabou optando por hipismo.
Na oitava série tinha de fazer um trabalho sobre qualquer país do mundo. Optou por uma monarquia. “Escolhi Mônaco e fui fazer pesquisa no consulado, acabei tendo contato com eles.” Em 1988, entrou como estagiária no consulado monegasco. Até 1994, foi promovida a recepcionista e depois a motorista e segurança de funcionários e, às vezes, até de príncipes. “O que marcou mais foi a visita dos príncipes de Mônaco para a Eco 1992.” Foi o primeiro contato com a realeza. “Só que eles estão vivos e reinantes”, ela brinca. Aficionada por Mônaco, ela foi duas vezes ao principado: em 1992, a trabalho, e 1996, a lazer.
Depois, passou anos trabalhando como radiologista, até decidir correr atrás do sonho de criança. Graduou-se em história beirando os 40 anos, em 2009, e emendou o mestrado no Museu de Arqueologia da USP, onde já havia sido aluna especial.
Desde então, vive da arqueologia. Mas seu ganha-pão é mais prosaico do que cuidar das múmias de imperadores. Além da bolsa de doutorado na Faculdade de Medicina da USP, que custeia sua pesquisa por elas misturarem medicina legística com arqueologia, ela é contratada por empresas para serviços que precisam ser acompanhados por um arqueólogo, caso haja algo de histórico sob o solo --a troca da rede de gás, por exemplo. “Mas é uma vida muito boa. Com muita história para contar”, diz a pesquisadora, no dia em que Dona Leopoldina completaria 221 anos. Sem festa.
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