Atriz narra em livro experiência em seita de ayahuasca com olhar cético
Paula Picarelli demorou nove anos para começar a escrever o livro “Seita”, lançado na semana passada pela editora Planeta. Quase o mesmo tempo que a atriz de 39 anos passou dentro de um culto, que, entre outras coisas, envolvia o consumo de ayahuasca - bebida alucinógena usada em rituais religiosos.
“Tenho um olhar muito crítico sobre as minhas experiências daquele período. Infelizmente, hoje acho tudo uma grande bobagem”, diz ela, inclusive sobre as visões que teve nas vezes em que bebeu o chá.
Classificado como romance, o livro transita pelas memórias da atriz e brinca com a curiosidade do leitor sobre realidade e ficção. Não por acaso, a personagem principal é uma atriz que se chama Paula. Tampouco é coincidência que a narradora esteja na gravação de uma novela das nove. Apesar de diversos trabalhos no teatro e um longo período na apresentação de um programa de TV sobre literatura, a paulistana ficou conhecida como a Rafaela, personagem lésbica que fazia par com a atriz Aline Moraes na novela “Mulheres Apaixonadas” (Globo), de 2002.
Hoje cética e ateia, Paula define o período na seita (que prefere não revelar o nome) como loucura. E, mesmo não sendo contra o uso de ayahuasca e nem da descriminalização de outras drogas, é contra “o mau uso” da substância. “Se você usa o ayahuasca dentro de uma seita e dentro dela você é manipulado e está em transe, me posiciono contra.”
Leia abaixo a entrevista com Paula Picarelli:
UOL: O quanto do livro é realidade e o quanto é ficção?
Paula Picarelli: O livro transita por realidade e ficção e tem dois polos extremos nesse jogo. Um deles é a morte do Glauco (Villas Boas), artista e cartunista, isso realmente aconteceu e é de conhecimento geral. O outro é a morte da mãe da personagem que leva o meu nome. Minha mãe nunca foi a um ritual de ayahuasca, não participou dessa história. A vida e a morte dela foram em circunstâncias bem diferentes. No livro, eu trago passagens que realmente aconteceram e outras que invento, mas sempre a partir da minha experiência.
Como foi escrever o livro depois de se afastar dessas experiências?
Eu tive que recorrer às minhas memórias, foi um processo difícil, porque quando saí dessa seita, bati a porta e não quis olhar para trás. Joguei e-mails, diários e livros fora. Fui entrar em contato com a história de novo há dois anos, quando comecei a escrever o livro. Eu tinha negado tanto essa história, tinha feito um esforço para esquecer a experiência que foi difícil resgatar a ingenuidade que eu tinha. Foi um processo doloroso olhar para quem eu era, as experiências que tive com o olhar de hoje. Hoje sou cética e ateia.
O ayahuasca está cada vez mais popular. Muitos grupos estão sendo criados e cada vez mais pessoas conhecem o chá. A que atribui isso?
Tem a ver com uma luta que grupos ayahuasqueiros estão travando há anos, primeiro para descriminalizar o uso em contexto ritual. E depois para distribuir mesmo e espalhar informações no sentido de ir contra o preconceito contra o ayahuasca. Eu tive retorno de alguns grupos me perguntando se o livro não levantaria uma bandeira contra o uso do ayahuasca ou contra a religião de modo geral ou a cultura indígena. Pelo contrário, não sou contra o chá. Sou contra o mau uso. Se você usa dentro de uma seita e dentro dela você é manipulado, está em transe, com a consciência alterada, me posiciono contra. Mas cada vez existem mais estudos sobre o uso do ayahuasca ser um elemento bacana no tratamento contra depressão e adição.
Muita gente diz que tem revelações importantes em visões ao consumir ayahuasca. Mas muita gente também vomita, tem diarreia. Como era com você?
Uma das reações à substância é você passar mal e vomitar, mas não tem a ver necessariamente com o estado de espírito. Muitas religiões entendem que você precisa passar mal. Tive muitas experiências bonitas, mas é difícil falar delas porque tudo o que pensava na época, quando usava, estava curvado aos preceitos daquele grupo: a forma como me alimentava, os trabalhos como atriz, a relação com minha família. O meu imaginário girava dentro de imagens e livros que a gente lia lá. Tive experiências em que via minha avó mandando mensagens de amor, parentes que já se foram. Eu achava que tinha contato com eles.
Teve insights positivos?
Acredito que o ayahuasca dê insights profundos sobre você mesmo, mas não consigo te trazer uma experiência marcante daquela época porque hoje tenho um olhar muito crítico. Infelizmente acho tudo uma grande bobagem. A gente tinha uma literatura muito pobre, líamos livros esotéricos da pior qualidade. Mas lembro que numa fase da minha vida, eu tinha dificuldade de lidar com meu próprio corpo e tive alguns insights. Também de como estava agindo nas minhas relações com amigos e pude ver com clareza o que devia fazer naquele momento.
No começo do livro a personagem vai à farmácia e mentaliza todo o processo, ‘enviando anjos’ para passar por situações como a abordagem de adolescentes ou o comentário da atendente sobre a novela em que a atriz participa. Isso aconteceu com você?
A personagem leva o meu nome, é uma atriz e está fazendo novela. E eu uso esse recurso para deixar o leitor curioso, na dúvida do que aconteceu ou não. Quero que as pessoas leiam o livro até o fim para que a discussão sobre o assunto chegue nelas [risos]. Por isso não digo se aconteceu porque mataria esse jogo, que foi uma forma de aproximar os leitores.
Sua entrada na seita tem relação com a fama repentina da Rafaela de "Mulheres Apaixonadas"?
As fragilidades que me levaram a entrar foram outras. Não foi exatamente esse período de estar muito exposta na novela. Existe um caldo cultural e uma vivência anterior para a pessoa chegar naquele momento e se entregar totalmente como eu fiz. Dentro da minha família, que é católica não praticante, tive uma série de crenças e superstições que me abriram a essa narrativa que veio de lá. Eu tinha um certo complexo de inferioridade e hoje vejo isso com mais clareza. Me sentia burra e achava que as pessoas da seita eram interessantes, inteligentes e sabiam melhor o que fazer com a minha vida. Eu achava que tinha poderes paranormais. As pessoas me diziam isso e eu acreditava, me sentia especial. Quem não quer se sentir diferente dos outros? Aos poucos, ia galgando uma hierarquia lá dentro e sentia que ia ganhando poder naquele universo. Também tinha um desejo de poder meu, de estar ali.
Como sua família encarava isso?
Como sabia que seria polêmico encarar essa minha escolha, esperei um momento estável, financeiro e emocional. Estava namorando uma pessoa que parecia responsável, contei e eles não contestaram. Não abri diálogo, simplesmente relatei que fazia parte disso. Eu tinha um amigo que tentava me alertar. Eu briguei muito com ele nesses anos. Ele tentava dizer como eu estava cega. Sabe essas pessoas chatas que levantam bandeira e martelam na sua cabeça? Não sou esse tipo de pessoa, mas agradeço muito a existência delas porque foi esse amigo o responsável por eu perceber a loucura da qual fazia parte. As coisas que ele falava vieram com muita clareza no momento em que percebi que aquilo era uma grande loucura.
Como você decidiu sair?
Chega o momento em que o pensamento é o melhor mecanismo para ser menos enganado. Quando se começa a questionar alguma coisa ali, o último recurso deles são ameaças. O último fio que me ligou ao grupo foi o medo. Tinha medo de que alguém louco de ayahuasca pudesse me fazer mal, até no plano espiritual. Aí entendi que não podia ficar apenas por medo. Resolvi sair.
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