"Pós-pornografia": conheça o movimento que mistura sexo, política e arte
Diante de uma agência bancária, em Natal, a performer Bruna Kury, de 31 anos, se deita no chão, com um capuz cobrindo a cabeça, e começa a se masturbar com o cabo de uma faca. Diante de seu rosto, uma mulher nua coloca fogo em folhas de papel com o logo da Rede Globo e a imagem de uma princesa Disney. A cena foi gravada e está disponível no site da performer.
Em um misto de protesto, arte e pornografia, a performance de Bruna é uma das formas de "pós-pornografia"; a saber, um movimento que em essência se opõe à pornografia convencional. "Trata-se de uma forma de pensar a nossa relação com sexualidade e mídia. É um jeito de fazer pornografia com novos significados, que se expandem para a música, fotografia e performances", explica Léa Santana, doutoranda do Programa de Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia.
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Para além das questões plásticas, o movimento, ideologicamente, abre espaço para formas de desejo e corpos normalmente ignorados pela pornografia usual e "fetichizados" por ela de formas negativas. Mulheres, travestis, pessoas trans ou com alguma deficiência são, em geral, atores ativos no pós-pornô. Eles buscam representatividade para o seu prazer. Querem ser sujeitos e não objetos de desejo.
Americana convidava público a olhar sua vagina
"Pornografias não-tradicionais são feitas desde que a pornografia existe", diz Léa; mas o pós-pornô começou a ganhar forma apenas na década de 1980, nos Estados Unidos. "Algumas pessoas do mercado cinematográfico começaram a pensar que aquela pornografia super comercial não as representava. Muitas atrizes pornôs e mulheres que trabalhavam com sexo passaram a se questionar: 'como fazer uma pornografia que deixe a gente feliz?'".
Um dos primeiros nomes da pós-pornografia é a americana Annie Sprinkle. Ex-prostituta e ex-atriz pornô, atualmente ela é educadora sexual. Annie criou em 1989 o espetáculo "Anúncio público de uma cérvix (em tradução livre)", no qual sentava-se no palco de um teatro, abria as pernas, colocava entre elas um espéculo - instrumento ginecológico usado para manter o canal vaginal aberto durante o exame - e convidava o público a olhar o interior de sua vagina com uma lanterna.
Desde então, o conceito se espalhou pelo mundo, ganhando espaço em coletivos e grupos de ativistas feministas especialmente. A Espanha, com nomes como o do teórico de questões de gênero e sexualidade Paul B. Preciado e da performer Diana Pornoterrorista, é um dos países de referência no tema.
"Todos os corpos podem ser 'desejantes' e desejáveis"
No Brasil, o movimento também tem conquistado espaço. Bruna Kury, que se autodenomina "anarcatransfeminista" e "póspornopirata", é um dos principais nomes. Ela trabalha com arte desde a adolescência, período em que fez (o que chama de) "artivismo" em coletivos e performances de ruas, questionando o sistema político e financeiro.
Há sete anos, Bruna, que é uma mulher trans, teve contato com o trabalho de Diana e da brasileira Pedra Costa, período que coincidiu com o início de sua transição hormonal. "Foi um encontro de referências e de momentos. Eu tinha a coisa punk do 'faça você mesma seu filme' e também queria procurar autonomia; tinha clara a ideia do 'meu corpo, minhas regras'", conta Bruna. Por isso, nessa época, começou a adicionar o elemento sexual aos seus trabalhos de protesto. Os contornos pós-pornográficos se desenhavam ali.
Uma das performances pós-pornográficas mais conhecidas e polêmicas do Brasil aconteceu na chamada Marcha das Vadias, em 2013, no Rio de Janeiro. Em meio a uma passeata de mais de mil mulheres que pediam o fim da violência sexual e a legalização do aborto, duas artistas se masturbaram com cruzes e uma Virgem Maria de cerâmica. Bruna, que fazia parte do coletivo dessas artistas, diz que elas questionavam ainda o controle da religião sobre o corpo feminino.
O grupo sofreu diversas ameaças, mas seguiu fazendo performances - que sempre causam choques. Elas costumam envolver próteses penianas, há penetração e masturbação explícita e, algumas vezes, vômito e fezes. "As reações são diversas. Têm pessoas que atiram coisas na gente, que não entendem nada, que choram, se emocionam, se sentem contempladas e parte de uma revolta contra a opressão", diz Bruna.
"A pós-pornografia fala que a gente pode sentir prazer de diversas formas. Por isso, traz questões como a 'desgenitalização' do sexo, que é exatamente a expansão do prazer para o corpo inteiro, e a noção de que todos os corpos podem ser 'desejantes' e desejáveis".
"Autopornografia"
Taís Lobo, de 31 anos, outro nome desse universo, produz vídeos que chama de autopornografia. Eles mostram, por exemplo, cenas de mulheres se tocando, entremeadas com imagens de políticos, ruídos sonoros e máscaras.
Os questionamentos sobre sexualidade, padrões de comportamento e gênero sempre estiveram presentes para Taís, mas ganharam um contorno especial quando gravou uma transa sua, no início da faculdade de Cinema. "Na sex tape, vi nitidamente a reprodução de comportamentos que eu tinha inserido na minha vivência sexual e que não queria mais para mim".
A partir daí, passou a produzir conteúdos com práticas dissidentes da pornografia convencional. Organizou festivais, reuniu mulheres, montou vídeos e livros. Em seus trabalhos, a mulher está sempre em evidência, e aborda temas ligados à religião e ao aborto.
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