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Quem manda em casa é Malvino, diz Kyra Gracie. Que luta contra machismo

André Rodrigues/UOL
Imagem: André Rodrigues/UOL

Valmir Moratelli

Para Universa

05/06/2018 04h00

Kyra Gracie, de 32 anos, é a primeira lutadora brasileira pentacampeã mundial. É também, a primeira mulher do clã Gracie a conquistar uma faixa preta. No rastro das vitórias profissionais, ela é ainda apresentadora dos programas “Viver para Lutar”, “Laboratório da Luta” e “Revista Combate”, na SporTV, e comanda o quadro “Vai pra Luta”, no mesmo canal. E tem mais: Kyra acaba de abrir uma academia de jiu-jitsu no Rio, vende quimonos cor-de-rosa, é mãe de duas menininhas, Ayra, de três anos, e Kyara, de um ano e 8 meses, e mulher de galã global, Malvino Salvador.

Posta toda essa força, é estranho ouvi-la dizer que: “Em casa, a palavra final é do Malvino.”?

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Absolutamente, não, segundo a própria. “Isso é amor, parceria e confiança. Somos três mulheres em casa. E o Malvino ainda tem mais uma filha, Sofia, de um relacionamento anterior. Se deixar, a gente manda em tudo”, diz Kyra. 

Nesta entrevista exclusiva à Universa, a atleta, que cresceu e venceu num universo 100% masculino, dá seus pitacos sobre feminismo. Alguns, com força de nocaute.

Em casa de lutadora, a palavra final é do marido

Em um lar de quatro mulheres, Malvino é rei: “A palavra final é dele. A gente conversa sobre a educação das meninas e dou minhas opiniões. Mas deixo ele decidir." Para as feministas que se arrepiarem com a afirmação, Kyra dá um Ippon - no judô, o chamado "golpe perfeito": "Isso é amor, é confiança."   

Kyra diz que a paixão pelo esporte é fundamental para aproximá-la do marido. “Ele ama luta. Fez jiu-jitsu em Manaus (onde nasceu), chegou a competir, e treinou boxe também. A gente analisa vídeos de lutadores e treina juntos, na varanda de casa. É uma delícia essa troca”, conta.

Ah, sim, e ela garante que não tem um pingo de ciúme do galã global. “Se vem uma fã muito atirada, deixo ele se virar, até saio de perto”.

Mãe de duas menininhas, Kyra pretende dar continuidade à produção de herdeiros Grace. “Quem sabe vem um menino? Malvino só faz mulher! Dia desses, nossa filha inventou de maquiá-lo. Passou batom nele todo. Ele ama isso”.

E Malvino ama mais coisa: “Sou terrível na cozinha. Não sei fazer nada. Mas o Malvino cozinha bem. Faz frutos do mar e uma caldeirada bem gostosa.”

kyra gracie - André Rodrigues/UOL - André Rodrigues/UOL
Imagem: André Rodrigues/UOL

Homem folgado, braço torcido

Kyra não tem problema nenhum em dizer que já usou técnicas de imobilização em homens que foram folgados com ela. E defende que mulheres pratiquem luta como forma de defesa pessoal. “Temos taxas absurdas de violência contra mulher”, justifica. "E muitos casos acontecem dentro de casa".

Ela lembra que, quando era mocinha e ia pra balada com as amigas, muitos caras as seguravam pelo braço e tentavam beijá-las à força. “Eu conseguia imobilizá-los com facilidade. A tática é girar o braço da pessoa ao contrário”, conta, aos risos.

No currículo, também já separou muita briga em bar, colocou bêbado em seu devido lugar e fez machão voltar pra casa envergonhado.

Ela reagiria a um assalto? Spoiler: resposta polêmica: “Sim, se a pessoa for me matar".

Mais controvérsias? Aí vão:

“Não gosto que abra a porta do carro pra mim. Eu sou prática. Sempre trabalhei, corri atrás das minhas coisas. Por que precisaria disso?”

“Não gosto de receber flor o tempo todo. Não sou aquela que fico falando pro Malvino ‘ah, quero muito flores’. Se quiser dar, legal. Só não vai me surpreender".

A mãe foi proibida pela família de lutar. Já Kyra, conquistou Madonna

“As mulheres eram proibidas de praticar luta, pelos Gracie, até quarenta anos atrás. Eles achavam que o homem era que tinha de levar o nome da família adiante. Meus tios que tinham filhas mulheres eram sacaneados”, conta Kyra, dando um vislumbre do ambiente que encontrou quando, pouco antes dos 15 anos, disse para os caras da família que queria lutar.

“Eles diziam que luta não era coisa para mulher". Ela, sabiamente, ignorou o conselho. E a provocação continuava: “Me chamavam de mulher macho, falavam que eu ia virar sapatão e que nunca ia arrumar marido”.

Na época, Kyra viu muitas mulheres da família deixando o esporte de lado. “Minha mãe foi uma delas. Chegou até a faixa azul (tem branca, azul, roxa, marrom e preta) e meus tios a tiraram da luta. Uma pena, porque ela era um talento”, relembra.

Por causa desse histórico, Kyra tentou outro caminho profissional, antes de insistir na luta, e fez faculdade de Direito. No primeiro dia de estágio, farejou que estava no octógono errado. “Fui assistir a uma audiência no centro do Rio. Peguei um ônibus, passei uma hora e meia no trânsito, esperei o dia todo pela tal audiência e, no fim, não gostei do resultado dela”.

O jeito foi peitar o medo. E a família. “Liguei pro meu tio Renzo, que morava em Nova York. Desabafei, contei que queria muito tentar trabalhar com luta, e ele me mandou uma passagem para ajudá-lo numa academia que estava abrindo”.

E rolou. Com 19 anos, montou com o tio a maior academia de jiu-jitsu do mundo, no coração de Manhattan. Eram 1.600 alunos, e, entre eles, figurinhas do naipe de Madonna e David Beckham.

kyra gracie 2 - André Rodrigues/UOL - André Rodrigues/UOL
Imagem: André Rodrigues/UOL

Em competições, homem ganha 50 mil. Mulher, mil

“Tem muita coisa errada na luta ainda. Por exemplo, nas competições dentro e fora do Brasil, as mulheres que vencem as lutas ganham muito menos que os homens. Elas ganham mil dólares. Eles, 50 mil”.

Nos campeonatos que Kyra organiza, o quadro é semelhante. Isso porque, segundo ela, a grana depende inteiramente da boa vontade dos patrocinadores. “Quando ganham bem, é porque elas são bonitas, chamam a atenção da publicidade e as marcas se interessam". 

Kyra diz lutar para que o quadro esteja mais equilibrado, quando suas filhas começarem a competir. As duas meninas adoram brincar de luta em casa, cada uma, vestindo um mini-quimono que a mãe mandou confeccionar. 

Instada a falar de questões de maternidade, a atleta respira fundo. “Ser mãe é meu maior desafio. Tento perceber os pequenos detalhes, mostrar que sou a melhor amiga delas e estar presente, inteira, nos momentos certos”. Nesta altura da conversa com a atleta, Ayra chega da escola, trazida pela babá, agarra a mãe, tasca-lhe um beijo e um golpe: “eu te amo, mamãe”.

Se tem palmada na hora da birra? Não. “Em casa, temos um quadro de estrelinhas. Quando elas obedecem ou comem tudo, ganham estrela. Se fazem bobeira, perdem. Se ameaço tirar uma estrela, é pior que uma palmada”, diverte-se.

No quesito comida, Kyra é faixa preta preta: fritura, só come duas vezes por ano. “Refrigerante, nem existe. E as meninas não comem nada com farinha de trigo”. 

 Abuso contra atletas mulheres

A sacudida que o mundo esportivo vem levando, desde o ano passado, quando atletas passaram a relatar abusos sexuais sofridos pelos treinadores não passa despercebida por Kyra. E o caso que mais a sensibilizou foi o da judoca americana Kayla Harrison.

Kayla, que hoje treina jiu-jitsu em Nova York, contou que quando era novinha foi abusada por seu técnico de karatê. A atleta escreveu livro, dá palestras sobre o assunto e foi medalhista de ouro nos Jogos do Rio de 2016. “Temos que amparar a vítima, sempre. E é papel de todo mundo não deixar que esses absurdos aconteçam”, diz Kyra.

Por motivos quase óbvios, ela conta que não passou por tragédias como essa. “Meus mestres eram meus primos e tios. Não tem como negar que, para mim, foi mais fácil”, diz. Kyra analisa, com propriedade, que em um esporte no qual o contato físico é parte do treinamento, é mais difícil identificar uma ação abusiva. “Olhando de fora, quase ninguém percebe. Mas quem está ali, no dia a dia com os atletas e vê qualquer sinal de abuso, precisa colocar a boca no trombone”. Ela garante que nunca viu nada.

Jair Bolsonaro: a única esquiva de Kyra

Um nome divide a família Gracie, o de Jair Bolsonaro, presença constante em eventos de lutas e candidato à eleição presidencial de 2018.

Alguns Gracie declaram abertamente apoio ao polêmico candidato. Outros, o repudiam. “É o cara que tem que usar a armadura branca da gente”, disse Renzo, mestre de Kyra. Reyson discorda do irmão. “Este ‘senhor’ é o representante atual dos torturadores que detiveram pais nos porões da ditadura”.

Neste assunto, Kyra se esquiva. “Ele tem uma aceitação muito grande com lutadores. Tem gente que depois da luta, agradece a ele no microfone. Mas eu prefiro não me posicionar. Sou professora, dou aula para pessoas de pensamentos diferentes”.

Quimono rosa

No mundo empresarial, Kyra também já botou seu carimbo. Em parceria com a marca americana de quimonos Shoyoroll, ela faz a diferença no mar de quimonos brancos com seus modelos cor-de-rosa. "Pedi que o modelo feminino fosse mais acinturado e com o cós reduzido. O modelo masculino deixa a gente igual a um saco de batata”, diverte-se. Seus quimonos custam a bagatela de R$ 500.

“Anos atrás, eu pegava meu quimono branco e desenhava borboleta, coraçãozinho, até que um dia, o tingi de rosa. Ficou horrível, mas fui treinar com ele. Todo mundo me criticou”, conta. O que, claro, foi só um incentivo para que a atleta se aperfeiçoasse. “É meu jeitinho de colocar mais um toque feminino no jiu-jitsu. Isso ajuda mais mulheres a virem lutar”.

O jeitinho também fica evidente no trabalho que Kyra faz na TV. Amiga da apresentadora Fernanda Gentil, ela recorre aos conselhos profissionais da colega para mandar bem na tela. “Pego várias dicas com ela. Mando meus vídeos para ela ver e me dizer em que posso melhorar”. Ação entre amigas.

Vovô Gracie sendo vovô Gracie

Até hoje, Kyra ouve do avô Robson, de 85 anos, e filho do fundador do império Gracie, que mulher e jiu-jitsu não combinam. “Ele diz:: ‘Elas não deviam lutar tanto. São muito frágeis’. Eu só rio, né”, diverte-se Kyra, que, claro, tem um amor gigante pelo avô. “Isso é da época dele, quando mulher não tinha nem direito a voto. Tenho um papel na família, o de abrir a cabeça dos homens”.