Ela comia restos da feira na infância, mas chegou à Universidade de Coimbra
Primeira de sua família a chegar ao ensino superior, Luciana Carmo, 30, hoje estuda direito e filosofia na Universidade de Coimbra, uma das mais tradicionais da Europa, fundada em 1290. As salas que já foram de renomados juristas e diplomatas de elite, de escritores famosos, como Eça de Queiroz, agora são também da mulher que superou a infância de privações e obstáculos no Jardim Angela, zona sul de São Paulo, já considerado o mais perigoso do mundo pela ONU.
A aluna do Mackenzie pelo ProUni, programa de financiamento estudantil do governo federal, conseguiu uma bolsa do Santander para o intercâmbio em Portugal, iniciado em 2016. A luta da mãe para aprender a escrever e o AVC do pai, que a levou a recolher restos da feira para se alimentar aos 11 anos, impulsionaram seus estudos marcaram seu entendimento da realidade.
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A formação gerou uma Luciana pesquisadora e ativista, que concilia vida acadêmica e participação em movimentos pelo direitos de mulheres, negros e LGBTs. Não por acaso ela assumiu no início do último ano letivo a presidência da Apeb (Associação de Estudantes Brasileiros em Coimbra). Uma história que ela conta em mais detalhes a seguir:
"Esse período da minha infância foi difícil. A gente quase sempre não tinha água. A luz cortada. O meu pai era metalúrgico e a máquina cortou um pedaço da mão. A empresa tentou colocar a culpa nele. Ninguém tira dois dedos e quase até o pulso de propósito. Aquilo mexeu tanto com meu pai que ele teve um AVC e não podia mais trabalhar. A minha mãe era empregada doméstica e eu ajudava como podia. Dava banho no meu pai. Recolhia material reciclável. Eu ia na feira pegar o que ficava no chão para a gente poder comer. Fiz isso durante anos. Não tenho vergonha.
A gente é forjada na necessidade
Não falo isso para me vitimizar. Eu digo porque é importante. Todas essas marcas fazem parte do que eu sou hoje. Não fiquei parada. Tentei achar uma solução. E isso é até hoje. Cheguei aqui procurando editais, buscando bolsas. Costumo dizer que a gente é forjada na necessidade. Quando você é criança, acha tudo bonito, eu falo isso em um poema que escrevi sobre essa época: ‘Os candeeiros tingiam de fumaça o teto/ Não tínhamos luz mas havia alegria/ Comia com a mão e sentava no chão/ Os restos da feira no prato/ A chuva que caia enchia meu copo/ E eu bebia a água que tinha/ Catando aquilo que tinha no chão/ Fazíamos banquetes a luz de velas/ Meus olhos de criança não sabiam o que era dor/ confundiam sempre tudo com beleza’
Sim, a academia é um espaço elitizado e um espaço machista. Como mulher, de uma classe desfavorecida e de descendência africana, você destoa. Quando falamos de Universidade de Coimbra, falamos de tradição. Com a tradição, em um mundo patriarcal, vem isso. Está na sociedade, está nas instituições. A Apeb justamente discute essas questões. A luta contra a cobrança de propinas [custo anual dos cursos] sete vezes mais cara aos estrangeiros faz parte de uma discussão mais ampla sobre igualdade. Igualdade das propinas, mas também das mulheres, dos negros, das pessoas de classes menos favorecidas.
Não querem que essas vozes contem sua própria história
Coimbra ostenta o título de universidade mais brasileira fora do Brasil, pois tem hoje cerca de 3.000 alunos brasileiros, faz propaganda sobre isso, mas desrespeita o tratado internacional que garante a cobrança igual. Quem pode pagar 7.000 euros em um mestrado? Isso diz muito sobre que tipo de comunidade acadêmica você quer formar.
Querem falar de mim como uma estatística, mas não querem que eu venha aqui. Não querem trazer a voz da periferia, a voz do nordeste. Não querem que essas vozes contem sua própria história. Nós precisamos ocupar esses espaços, que são nossos de direito. É assim que a gente consegue mudanças estruturais, com essa troca. A Marielle [Franco, vereadora assassinada neste ano, no Rio,] foi alguém silenciada brutalmente por ser essa voz.
Sinto de uma forma intensa e partilho com outras brasileiras em Portugal situações específicas de xenofobia e machismo
O machismo também é uma questão importante. Temos uma gestão feminista, com uma vice-presidente também mulher, a Marcela Uchoa, umas das pessoas incríveis que conheci nesse caminho e parte desse trabalho que é coletivo. Sinto de uma forma intensa e partilho com outras brasileiras em Portugal situações específicas de xenofobia e machismo. Por conta desse estereótipo da mulher brasileira como puta. E também racista, porque há essa questão da mulata sempre sexualizada. Você ouve algumas coisas e é preciso se posicionar.
O meu pai parou na quarta série. Minha mãe aprendeu a escrever apenas com 20 anos. Esse exemplo é muito forte para mim. Ainda criança, ela foi enviada para trabalhar em uma casa de uma família com mais posses, o que é muito comum. Cresceu em uma cidade no interior da Bahia, como o meu pai. É visto como uma vida melhor, mas é, na prática, quase um trabalho escravo. Essa família não permitia que minha mãe estudasse. Mas ela tinha a preocupação de aprender ao menos a escrever o próprio nome. Ela não tinha nem documentos. Era como se ela não existisse. Minha mãe, então, procurou escondido um convento na região e as freiras a ensinaram. Foi aí que eu entendi esse caráter libertador da educação.
O problema da academia é esse: falta olhar para a realidade
Além da educação e da luta política, a arte é algo muito importante na minha vida. Escrevo poesias, tive a honra de representar Coimbra na final de um concurso nacional português, o Slam Poetry, participo de um projeto na Bélgica sobre resistência política pela arte e atuei com outras ativistas em uma edição comemorativa de 20 anos do Monólogos da Vagina. Coisas que nem imaginava, que são muito grandes para alguém de onde eu vim.
Quando cheguei aqui, em 2016, eu escrevi o poema onde falo da minha infância, daquele ano difícil, para a minha filha, de quem eu tenho muita saudade. O ‘Os meus 11 anos’ foi um presente para ela no aniversário de 11 anos dela. Quando eu escrevi e revivi tudo aquilo, foi uma catarse. Percebi que tinha uma relação entre o que passei, as lutas e o que estudamos aqui. O problema da academia, às vezes, é esse: falta olhar para a realidade."
Você também tem uma história para contar? Ela pode aparecer aqui na Universa. Mande seu depoimento, nome e telefone para minhahistoria@bol.com.br. Sua identidade só será revelada se você quiser.
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