Cobertas pelo SUS, cirurgias de redesignação sexual demoram até cinco anos
Nos dez anos em que o Ministério da Saúde passou a cobrir atendimento clínico e ambulatorial para transexuais, a moradora de Belford Roxo (RJ) Liah Campos, de 35 anos, não tem muito o que celebrar: ela sequer consegue entrar na fila de cirurgia de transgenitalização do único local do Rio de Janeiro que realiza o procedimento, o Hospital Universitário Pedro Ernesto (Hupe), da Uerj. Lá, desde 2011 não é aceita uma nova inscrição para procedimentos cirúrgicos, e os que conseguiram - cerca de 60 - estão esperando há cinco anos.
“A ouvidoria do hospital me informou que o tempo de espera está beirando os 10 anos”, reclama Liah.
Liah se assumiu transexual aos 19 anos, e há três tem atendimento especializado, incluindo psicológico e com hormônios. Afirma estar apta a realizar a cirurgia, e depois de ser expulsa de casa pela mãe e cair na prostituição, deposita nesse atendimento a esperança de sanar metade dos seus problemas.
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“O abandono familiar e a falta de emprego são o que menos importa para mim. O mais insuportável é a questão do corpo, que me deixa isolada. Meu corpo é a minha negação. Já cortei os pulsos duas vezes”, revela ela.
Há exatos dez anos, o Ministério da Saúde regulamentou o processo transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS), ou seja, passou a cobrir atendimentos em pacientes transexuais. Entre eles estão a mastectomia (retirada de mama), além de terapia hormonal. As cirurgias de redesignação sexual foram regulamentadas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) em 1997 e antes desse movimento do Ministério alguns hospitais universitários já atuavam no ramo, com recursos próprios.
Para se ter uma ideia da importância dessa cobertura, especialistas ouvidos pela Universa afirmam que uma cirurgia de transgenitalização pode custar até R$ 35 mil. Uma mastectomia, até R$ 10 mil.
Na lista do Ministério, são cinco os centros habilitados para procedimentos cirúrgicos e mais cinco para os ambulatoriais.
A primeira cirurgia de transgenitalização que recebeu essa cobertura do SUS foi feita em agosto de 2008, numa paciente de 32 anos, justamente no Pedro Ernesto, onde Liah espera na fila. O hospital informa que a meta é de uma cirurgia do tipo por mês, e aproximadamente 60 pessoas trans aguardam na fila.
Responsável pelo processo, o urologista Eloísio Alexsandro da Silva confirma a demora: “leva-se aproximadamente 5 anos”. Ele justifica que a cirurgia de transgenitalização é realizada pelo setor de urologia reconstrutora, ou seja, em conjunto com homens com câncer, por exemplo. Questionado sobre os principais entraves para se conseguir expandir o serviço, ele é taxativo:
“Pensamos que são problemas gerais sobre a saúde pública do Rio de Janeiro”.
A musicista e pedagoga Kathyla Katheryne, 51, operou em 2016, após cinco anos de espera: "É a parte mais difícil de todo esse processo. Nunca pensei em desistir, mas temia um retrocesso e até mesmo o fim dessa cobertura”.
Kathyla diz que pouco percebeu um aumento de serviços voltados para a população trans nesses dez anos. Ela aponta pouco interesse de cirurgiões envolvidos com a questão.
Agendamento até 2020
A fila também anda grande no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (HCFMUSP), em São Paulo: há pacientes marcados para até 2020. Mas diferentemente do Rio, ali a equipe médica opera pessoas trans toda segunda-feira. É importante atentar, no entanto, que alguns pacientes realizam mais de um procedimento, além de retoques e correções.
A chefe do departamento de endocrinologia do HCFMUSP, Elaine Maria Frade Costa, concorda que há escassez de profissionais com “expertise adequada”.
“São poucos, porque são procedimentos de grande porte. Se é uma questão de crença religiosa por parte dos médicos, não consigo falar. Há os que não querem, e eles têm o direito, mas há também falta de capacitação”, avalia ela.
No ano passado foram, ao todo, 52 cirurgias incluindo genitoplastia masculinizante e feminizante e próteses mamárias. Neste ano, até agora, foram 33.
A psicóloga do Espaço de Acolhimento Trans do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco, Suzana Livadias, vê na normatização do Ministério uma estratégia criada para atender as necessidades de parcela da população LGBT com dificuldade no acesso à saúde, mas acredita não ser o suficiente. Ali há hoje 290 pessoas no serviço ambulatorial e 320 em lista de espera para acessá-lo.
“Não é porque tem um centro credenciado que tudo será resolvido. A atenção básica precisa abraçar a ideia de que todas as pessoas estão sob seu foco de atenção”.
Para Keila Simpson, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), falta ampliar o serviço para atender a demanda, como no Nordeste. “Se esses serviços fossem ampliados as filas diminuiriam e as pessoas não precisariam se deslocar para outros estados".
O tratamento
Para fazer a adequação sexual, é necessário que a pessoa procure um centro de atendimento para acompanhamento médico e psicológico por, pelo menos, dois anos, até ele ter certeza de sua decisão. Para ambos os gêneros, a idade mínima para procedimentos ambulatoriais como hormonioterapia é de 18 anos. Para a cirurgia, a idade mínima é de 21 anos.
As cirurgias de transgenitalização duram, em média, três horas. O paciente fica internado por uma semana e o tempo de recuperação leva até quatro meses. Segundo o Ministério da Saúde, entre agosto de 2008 e dezembro de 2017 foram mais de 450 procedimentos hospitalares e 25,7 mil ambulatoriais.
Onde tem atendimento
Em São Paulo, são quatro os hospitais públicos que realizam cirurgia de redesignação sexual: o Geral de Pedreira, o Estadual de Diadema, o das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, e o estadual Mário Covas. Segundo a Secretaria Estadual da Saúde, entre 2010 e 2017 foram feitos 508 procedimentos cirúrgicos, incluindo mamoplastias e genitoplastia masculinizante e feminizante. O Estado tem ainda o Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais do CRT DST/Aids, responsável por preparar o paciente para a cirurgia.
Em Minas Gerais, o Hospital das Clínicas de Uberlândia (MG) realiza procedimentos apenas ambulatoriais.
No Rio de Janeiro, o Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia (IEDE) atende a parte ambulatorial. Em 2017, foram 1,2 mil pacientes. Este ano, até junho, já foram mil. O Hospital Pedro Ernesto também oferece a parte ambulatorial como terapia hormonal, além de realizar cirurgia.
Em Curitiba, o Centro Regional de Especialidades Metropolitano atualmente atende 340 usuários na parte ambulatorial. Ano passado foram mais de 800 consultas médicas.
O Hospital de Clínicas de Porto Alegre também atende pacientes habilitados para cirurgia.
Em Vitória (ES), o Hospital Universitário Cassiano Antonio de Moraes faz atendimento ambulatorial e cirúrgico. Atualmente há 150 pacientes em atendimento.
Em Goiânia, o Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás também opera e atende de forma ambulatorial: foram 116 cirurgias entre 2001 e 2013. E aproximadamente 200 pessoas estão terminando o processo transexualizador.
O mais recente serviço credenciado pelo SUS é o do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco: o espaço realizou a primeira cirurgia de transgenitalização em 2015, e de lá para cá foram cerca de 22.
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