"Colocar mulher como vice para atrair eleitoras é chamá-las de idiotas"
A opinião acima impressiona? Pois o psicanalista Contardo Calligaris tem mais um punhado dessas pra oferecer. Sobre sexo, política, funk e, principalmente, desejo sexual das mulheres – “A prostituição é um lugar de verdadeira autonomia e independência feminina” - que tal?
Calligaris se notabilizou por dissecar o tema em suas colunas no jornal Folha de S.Paulo e, mais recentemente, como diretor e roteirista da série “Psi”, do canal HBO, que estreia a quarta temporada em fevereiro. O psicanalista recebeu Universa para a seguinte entrevista:
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Cinco candidatos à presidência escalaram mulheres para ser suas vices. Qual é sua análise sobre essa movimentação?
Patética. Colocar mulher como vice para atrair eleitoras é chamá-las de idiotas. Os candidatos pensam: “elas vão votar em mim porque coloquei uma senhora como vice”. É insultante achar que vão cair nessa. O número de mulheres na política deveria ser maior, mas a competência tem que vir antes. Vejo ainda os candidatos fazendo um esforço tremendo para se corrigir pelas besteiras que falam sobre mulheres. Dizem, por exemplo, que as respeitam porque “olha só como venero minha mãe”. Então, vamos venerar alguém que seja “virgem”, que não tenha desejo? Esse argumento é insultante.
Você diz que a “negação do desejo feminino”, tema que levará para a televisão na quarta temporada de “Psi”, está na base da nossa sociedade. Qual é a dificuldade em lidar com o fato de que mulheres têm desejo?
Nossa sociedade está baseada no delírio de que a mulher é tentadora e nos leva à perdição. Entende-se que a excitação masculina é incontrolável, que é a mulher que suscita esse desejo e que, portanto, não pode não correspondê-lo. Não se aceita que a mulher rejeite um homem. A solução foi negar o desejo sexual feminino. Ainda hoje, homens matam mulheres que querem se separar. Não se aceita que o desejo feminino tenha autonomia. O Ocidente se dedica há 3.000 anos, data aproximada de quando a Bíblia foi escrita, a silenciar esse desejo. Falo mais do Ocidente, mas a repressão existe no Oriente também.
A prostituição feminina é vista por você como “expressão de autonomia sexual”. Mas muitos a identificam como objetificação da mulher. Afinal, é libertação ou opressão?
Acredito que, ao longo dos séculos, se prostituir foi uma maneira de afirmar o feminino, dado o poder da livre expressão da sexualidade. A prostituição é um lugar de verdadeira autonomia e independência feminina. Dezenas das minhas pacientes não só têm, como vivem fantasias de prostituição. Muitas delas têm prazer indo até um lugar, com o marido, onde há profissionais do sexo, para se passarem por uma. Não vejo problema em objetificar uma mulher ou um homem. Considerar o outro como objeto é o bê-a-bá da excitação sexual. Não há fantasia em que isso não aconteça.
Apesar de ser muito oprimido - segundo sua tese - o desejo feminino é legitimado, evidentemente, em algumas situações, correto?
Sim, mas são raras; acontece, por exemplo, com mulheres que falam e vivem suas fantasias com os parceiros. Na maior parte das vezes, o que legitima o desejo feminino é o amor. Essa é a grande “desculpa” masculina: os homens só aceitam o desejo delas se ele vier atrelado ao amor. E é também um mito que as próprias mulheres propagam. Elas dizem que só têm vontade de transar com um homem se sentirem amor por ele. Isso é mentira. Sexo é outra coisa. Síndrome do pânico e ansiedade são expressões atuais dessa repressão sexual. Acho interessante falar do funk nesse contexto. Um dos motivos pelos quais o funk é criticado é que nele há mulheres falando de sexo. As músicas assustam porque expõem desejos. Têm lá “me pega, me bate, me vira de cabeça para baixo”. Aos poucos, até nessas letras, foram colocando o amor no meio. Vai levar tempo para isso mudar.
Você fala com frequência que a moral é uma desculpa para reprimirmos algum tipo de desejo com o qual não conseguimos lidar. É por isso que muita gente se incomoda em ver um casal transando, por exemplo, pela janela do prédio ou num canto da rua?
Todas as posições moralistas são projeções. A pessoa se irrita quando os outros fazem o que ela deseja muito fazer mas não se permite. Isso é um ponto. O outro é que a pessoa que olha um casal fazendo sexo, em alguma medida, sabe que está envolvida na fantasia daquele casal porque, ao olhar, os excita. E aí ela pode se sentir objetificada.
A “boçalidade masculina” é um tema recorrente em suas colunas. Qual o motivo?
Tenho uma profunda antipatia pelo grupo masculino. Em grupo, os homens fazem coisas que, sozinhos, não fariam. São capazes de passar por cima de seus freios morais e do bom senso. Estou escrevendo um livro que vai tratar desse tema, “O Grupo é o Mal”. Falarei do nazismo e do fascismo, mas minha tese vale também para outros exemplos, como torcidas organizadas.
As mulheres em grupo não agem da mesma maneira?
Não são boçais da mesma forma porque, resumindo, não se acham a última bolacha do pacote. Se questionam mais, têm mais dúvidas sobre si por causa da sensação de inadequação vinda da infância. O comportamento da mãe com a filha é o de tratá-la como se ela não fosse exatamente o que a mãe deseja. As mães veneram o filho homem, o tornam uma majestade. Além disso, vejo em grupos de amigas um lugar de defesa, de ajuda mútua, de proteção do feminino.
Expressões corriqueiras denunciam o machismo na fala das próprias mulheres; por exemplo “meu marido me ‘ajuda’ em casa”. Em que outras situações vê sexismo introjetado na fala delas?
As mulheres consideram que suas relações extraconjugais são mais graves do que as do marido. Além disso, acham que o trabalho do marido é mais importante que o delas. Elas reconhecem uma dignidade neles que não identificam em si. “O que ele tem pra fazer é extremamente importante, enquanto o meu doutorado pode esperar”, esse é o tipo de frase que escuto.
Quais exigências do atual movimento feminista acredita que vão vingar?
O discurso está vingando bem, mas ainda estamos muito longe de mudanças concretas. Acho que o aborto vai ser descriminalizado. Equiparação de salários e mais mulheres em cargos de chefia também vai acontecer.
A sexualidade infantil causa reações horrorizadas - tema tratado por Freud, em 1905, na obra “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” - por quê?
A repressão à sexualidade das crianças passa diretamente pela repressão do desejo feminino. Os meninos que se tocavam no século 19 tinham que dormir com as mãos amarradas, mas com as meninas ocorria algo ainda mais radical. A psiquiatria da época implementou a cauterização, com um ferro quente, do clitóris das meninas que se tocavam. Havia livros explicando como isso deveria ser feito. Muitos pais brincam com o tamanho do pênis do filho bebê, dizendo que ele vai ser grande. E da vagina, o que se fala? Os pediatras recebem perguntas angustiadas de mães sobre como limpar a vagina da filha; no entanto, bem menos sobre limpar o pinto do filho.
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