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Bissexuais reclamam que sempre são associadas à infidelidade

Maura e Ionan em "Segundo Sol" - Reprodução/Globo
Maura e Ionan em "Segundo Sol" Imagem: Reprodução/Globo

Jacqueline Elise

Colaboração para Universa

10/09/2018 04h00

Na novela “O Segundo Sol”, a personagem Maura (Nanda Costa) tem dado o que falar por conta de sua trama. Em um relacionamento com Selma (Carol Fazu), Maura foi apresentada como lésbica no começo da história, mas acabou se envolvendo com Ionan (Armando Babaioff) quando ele aceitou ser o doador de esperma para que o casal pudesse ter um filho.

A reviravolta repercutiu nas redes sociais, e logo surgiram acusações de que a novela estava abordando um caso de “cura gay”, pois Maura era descrita como alguém que tinha dificuldade em se relacionar com homens. Outros apostaram que a novela tentará tratar a sexualidade de Maura como fluida, eventualmente revelando que a personagem é bissexual. Se for este o caso, “O Segundo Sol” corre o risco de cair em outro estereótipo muito frequente: a bissexualidade está sempre atrelada à infidelidade num relacionamento.

A ideia de que pessoas bissexuais são promíscuas ou que nunca estarão satisfeitas em um relacionamento com um único gênero (e por isso elas trairão com mais facilidade e com mais frequência que outras sexualidades), ainda persegue pessoas bi em seus envolvimentos amorosos. A rejeição, inclusive, vem em dobro: a desconfiança parte tanto dos parceiros heterossexuais quanto dos parceiros homossexuais.

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Jane Silva*, 39 anos, se considera bissexual há quatro anos (apesar de não ter assumido para a família) e namora há cinco meses com outra mulher, 11 anos mais velha, que é lésbica. Jane percebeu que havia uma desconfiança maior com relação a sua sexualidade quando passou a utilizar aplicativos de relacionamento. Ela diz que as lésbicas costumavam fugir dela ou dizer que “com bi é só amizade”, em suas palavras. Com os homens, ela não costumava mencionar sua orientação.

Sobre seu relacionamento atual também paira a nuvem de preconceito. “A minha namorada é mais velha e muito ciumenta. Disse que só aceitou me conhecer porque realmente se interessou. Ela nunca gostou de [pessoas] bi. Disse que bi tem mais opções e é mais fácil de trair”. Segundo Jane, a parceira afirma que “pagou a língua” agora, e a funcionária pública sente que a namorada tem demonstrado interesse em mudar suas ideias. Mas ainda enfrentam problemas na relação por conta do ciúme.

“Tenho quase certeza que o ciúme excessivo dela é por conta da minha orientação sexual. Racionalmente, ela sabe que está sendo preconceituosa. Emocionalmente, ela tem dificuldade”. Contar sobre os preconceitos que viveu e conversar com outras pessoas bissexuais têm ajudado o namoro de Jane: “Não é a bissexualidade que provoca a traição. O fato de eu me atrair por dois gêneros não significa que ficarei com várias pessoas ao mesmo tempo”.

A publicitária Pamella Santos, 32 anos, conta que sua primeira namorada também duvidava de sua fidelidade. “Era um problema eu frequentar bar com as minhas amigas hétero, porque parecia que eu ia lá para ver homens, e nunca foi a intenção. Era meu rolê antes de conhecê-la”, relata. Pamella também se incomoda com algumas reações que os homens podem ter assim que descobrem que ela é bi. “Quando você procura um relacionamento com homem, ele acha que é putaria. Saca? Muito complicado você se assumir bi. As pessoas acham que é ser promíscua”.

“Parem de nos enquadrar em uma caixinha cheia de preconceito e discriminação”

Apesar de não ter problemas em sua própria aceitação, Vitória Gonzaga, de 23 anos, sempre sentiu uma “dupla negação de afeto, por ser bissexual e negra” por parte de alguns de seus interesses amorosos, segundo ela.

“Com os homens héteros e cisgêneros, eu sofria com a sexualização”, conta. A sexualização, neste caso, acontece em forma de pedidos para fazer sexo a três (ela, o homem e outra mulher). “Uma vez, eu ouvi que os homens não amam as mulheres bissexuais, mas, sim, a ideia que eles têm delas. Já com as mulheres lésbicas cisgêneras, eu sofro com a desconfiança da minha fidelidade ou de que elas seriam trocadas por um homem”. Ela considera esse medo da traição um fruto “da sociedade patriarcal, que faz com que as relações entre  mulheres não sejam vistas como válidas e que a qualquer momento poderia ser trocada por um homem”.

Solteira no momento, Vitória diz que, para se privar deste problema, ela não informa mais a sexualidade em seu perfil nos aplicativos de relacionamentos, e tem se envolvido mais com mulheres negras, mulheres bissexuais ou pessoas trans. Mas garante que, assim que alguém demonstra algum tipo de insegurança com sua bissexualidade, ela já não leva a relação para frente. “Bissexuais são plurais e diferentes como qualquer outro grupo, parem de nos enquadrar em uma caixinha cheia de preconceito e discriminação”.

Trair e ser bi: tem ligação?

“As pessoas esperam que o desejo seja sempre por uma pessoa só. Quando alguém tem um comportamento monogâmico, trair pode acontecer, independentemente da orientação sexual”. Quem afirma isso é o psicólogo Hamilton Kida, fundador do Projeto Rainbow, que procura conectar a comunidade LGBT ao atendimento psicológico sem julgamentos ou preconceitos.

“Não existe uma justificativa clínica para afirmar que um bissexual vá trair mais. Os motivos que alguém tem para trair são os mesmos que levam pessoas heterossexuais e homossexuais a trair. Depende da subjetividade dos indivíduos”. Dentre os motivos, Kida cita que inseguranças pessoais e desejos sexuais reprimidos podem ser algumas das causas. Mas não há indícios de que certas orientações sexuais são mais propensas à infidelidade.

Ele classifica que a sociedade ainda possui um pensamento muito “binário”: ou é uma coisa ou é outra, nunca podem ser duas ou mais ao mesmo tempo. “Existe essa cobrança de que as coisas sejam rotuladas de uma forma binária”, diz. Este pensamento já está tão difundido na sociedade que acaba passando para a comunidade LGBT. “As inseguranças pessoais em pessoas LGBT podem ocorrer por elas estarem se relacionando com alguém que não está nessa construção social não binária”.

Ser bissexual e monogâmico dá certo

Laís Costa* e Bruno Martins*, ambos com 22 anos, são estudantes de direito e são um casal há mais de um ano. Os dois são bissexuais, mas somente Laís é abertamente assumida. Bruno conta que Laís é seu primeiro relacionamento após se descobrir bissexual, e a mãe da moça sabe da orientação de seu parceiro --que foi recebida com surpresa, no início.

“Quando eu comentei que meu namorado era bi, ela ficou falando: ‘e você acha legal ser trocada por um homem?!’”, relembra Laís. Entretanto, os dois afirmam que são monogâmicos desde o início. Para Bruno, traição “é uma questão de caráter, não de orientação sexual”. O casal considera que atrelar a bissexualidade à infidelidade é uma forma de bifobia, nome dado ao tipo de discriminação voltada às pessoas bi.

O preconceito, no caso, tem a ver com a imagem de promiscuidade atrelada aos bissexuais. “Se eu estou com alguém, eu não faço nenhuma questão de ficar com outras pessoas”, afirma Laís. “E mesmo que uma pessoa bi sinta falta de se relacionar com outras, isso pode acontecer em qualquer relacionamento. Ser bi não faz com que você tenha menos capacidade de se controlar ou algo assim, e monogamia e sexualidade são completamente independentes”.

Bruno arremata: “Acho que a parte mais importante que as pessoas simplesmente não entendem é que nós estamos abertos a nos relacionar com qualquer pessoa, mas não necessariamente em uma relação aberta”.

Lucas Scoralick, de 24 anos, já teve um relacionamento aberto com outro homem bi, mas agora vive a monogamia há um ano e quatro meses com uma mulher heterossexual. Ele conta que sua companheira nunca teve problemas com sua sexualidade. "No meu atual relacionamento, a minha namorada nunca desconfiou que eu estivesse traindo, inclusive ela apoia a minha sexualidade”.

Para ele, a fidelidade é “um valor social que pode assumir diferentes significados, desde que haja entendimento e respeito entre as pessoas, sejam elas bissexuais ou não. A decisão sobre um relacionamento ser monogâmico ou não depende do acordo das pessoas que participam do relacionamento, e somente por elas”.

*Os entrevistados pediram para que não fossem identificados na matéria.