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"Me revoltei com Deus", diz vítima responsável por prisão de Abdelmassih

Vanuzia Leite Lopes, 58, tenta reconstruir sua vida em Portugal - Divulgação
Vanuzia Leite Lopes, 58, tenta reconstruir sua vida em Portugal Imagem: Divulgação

Amanda Serra

Da Universa

25/09/2018 04h00

Angústia, medo, vontade de vomitar, desespero, revolta e desilusão. Todos esses sentimentos e alguns outros mais vieram à tona novamente desde a última sexta-feira (21), após a estreia da série “Assédio”, no Globoplay, baseada no drama das vítimas do ex-médico Roger Abdelmassih, especialista em reprodução humana, que foram estupradas por ele durante os procedimentos e se uniram em busca de Justiça. A obra é inspirada no livro "A clínica: A farsa e os crimes de Roger Abdelmassih", de Vicente Vilardaga.

“Passei muito mal vendo a série. Os meus sintomas da crise do pânico retornaram, os enjoos. As feridas não estão curadas. Me vesti de coragem para conseguir assistir até o fim. O Roger violentou minha fé. Orei uma ‘Ave Maria’ antes de tomar a injeção (inseminação artificial -- na esperança de engravidar) e ele me estuprou. Passei muitos anos revoltada com Deus. Até minha fé foi difícil recuperar”, diz a líder do grupo “Vítimas Unidas”, Vanuzia Leite Lopes, 58, Vana Lopes como é conhecida, à Universa.

Na época da violência, a ativista tinha 33 anos e passou também a questionar a ciência e seus benefícios. "Achava que estava sendo penalizada, já me sentia menos mulher por todo contexto... Fiquei paranoica."

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Após nove anos desde que as acusações de abuso sexual viraram manchetes, mulheres tentam reconstruir suas vidas e seus psicológicos. Atualmente morando em Portugal, com a filha e uma neta de 13 anos, Vana se reconforta ouvindo canções portuguesas com o atual marido em casa e no “Vítimas Unidas”, rede de apoio online que criou e administra.

Vana Lopes até hoje atua voluntariamente acolhendo mulheres - Divulgação - Divulgação
Vana Lopes até hoje atua voluntariamente acolhendo mulheres
Imagem: Divulgação
 

Atualmente, além das pacientes abusadas por Abdelmassih, ela também auxilia outras mulheres que sofreram abusos ou violência doméstica. “A única solução para acabar com a violência sexual é dar voz para as vítimas. Não é castrar o estuprador. É dar coragem para que essas mulheres consigam falar, seja por meio de leis, apoio dos companheiros, das famílias. O silêncio fortalece o estuprador. A sede de Justiça é o que ainda nos faz seguir em frente”, afirma ela, que após os abusos do ex-médico não conseguiu engravidar, perdeu as trompas e o ovário e contraiu uma infecção na época. 

Hoje, posso dizer que me sinto muito melhor, mas não sou feliz. Felicidade não tem, só existiria se não tivéssemos passado por isso. Arrumei uma solução para poder continuar, que é justamente confortar outras mulheres. Passo o dia todo trocando mensagens com vítimas”, afirma Vana, que lançou em 2015, um livro biográfico - “Bem-vindo ao Inferno – A História de Vana Lopes. A vítima que caçou o médico estuprador Roger Abdelmassih" (Matrix Editora). O livro dela é a inspiração para uma nova série sobre o assunto que ainda não tem data para estrear no SBT.

Casamentos acabados, filhos com deformidade, gravidezes não realizadas...

Stela (Adriana Esteves), Vera (Fernanda D'Umbra), Eugênia (Paula Possani), Daiane (Jéssica Ellen) e Maria José (Hermila Guedes) em cena de "Assédio" - Ramón Vasconcelos/Divulgação TV Globo - Ramón Vasconcelos/Divulgação TV Globo
Stela (Adriana Esteves), Vera (Fernanda D'Umbra), Eugênia (Paula Possani), Daiane (Jéssica Ellen) e Maria José (Hermila Guedes) em cena de "Assédio"
Imagem: Ramón Vasconcelos/Divulgação TV Globo

Na minissérie da Globo, a história de Vana está retratada em todas as personagens, mas em especial na de Estela (Adriana Esteves), que tentou se suicidar, também precisou ser internada em uma clínica de reabilitação e depois da recuperação adotou uma filha. Com a diferença que o casamento de Vana chegou ao fim logo após ela denunciar Abdelmassih.

Os maridos não ficaram do nosso lado, casamentos acabaram, e até hoje alguns não aceitam que as esposas se exponham e contem suas histórias. O Roger estuprou famílias, violentou a esperança de sermos pais e mães. E nunca recebemos nenhum apoio psicológico do governo. Temos acompanhamento de psicólogos, advogados, todos voluntários”, reclama Vana, que assim como outras vítimas lamenta não terem recebido uma assinatura da Globo para acompanharem a série que está disponível somente online. Uma das mulheres do grupo fez o cadastro e compartilhou a senha com as companheiras.

No fundo, tenho uma mágoa por meu marido não ter acreditado em mim. Isso na época confundiu muito minha cabeça, às vezes achava que estava imaginando coisas, que estava ficando louca. Quem era eu perto do doutor Roger? Nem meu marido acreditava em mim”, lamenta uma das mulheres abusadas, que prefere não ter o nome divulgado.

Por se tratar de uma obra de ficção, alguns episódios obscuros de toda essa história ficaram de fora e isso incomodou algumas das ex-pacientes de Roger. São eles: muitas mães descobriram que seus filhos na verdade não são filhos biológicos delas – o especialista trocava os embriões e também misturava com o de animais. Algumas das crianças nasceram com problemas de má-formação e cognitivos; outras nunca conseguiram engravidar. Há também o caso de uma das vítimas ter gerado um casal de gêmeos do próprio médico. Seu esperma foi implantado com os embriões.

O fato de Roger Abdelmassih cumprir pena em prisão domiciliar desde 2017 é algo que traz muita revolta para as vítimas ainda hoje. Desde então, cerca de 30 mulheres, inclusive Vana, entraram com ação na Corte Interamericana de Direitos Humanos processando o Brasil por descaso. “Tentamos assim mudar leis em nosso país", diz a líder. 

Confira outros relatos de vítimas ao verem a minissérie:

Monica Iozzi como Carmem na minissérie "Assédio" - Ramón Vasconcelos/Divulgação TV Globo  - Ramón Vasconcelos/Divulgação TV Globo
Monica Iozzi como Carmem na minissérie "Assédio"
Imagem: Ramón Vasconcelos/Divulgação TV Globo

“Já tomei três banhos. Não tinha noção da monstruosidade. Nunca desconfiei de nada porque só acordei com a mão dele no meu seio fechando a camisola e me perguntando se tinha relação de ‘mamãe e papai’ com meu marido. Lembro que dei um empurrão na mão dele e falei cadê meu marido? Quero meu marido. Assistindo a série, agora, tenho certeza que aconteceu alguma coisa. Nunca fiz sexo anal e de uns anos para cá tenho dores”, relata uma das mulheres abusadas, que prefere não se identificar.

“Não entendi a música 'Noite Feliz de Natal'. Ele deve estar dando risada agora, assistindo essa série. Tenho a sensação de ter nadado e morrido na areia [citando o fato do médico cumprir prisão domiciliar]. Uma tragédia que virou sensacionalismo para Globo, servimos de inspiração... Bom seria se tivéssemos vencido. Fiquei o dia inteiro na cama, em uma depressão [depois de assistir]. É uma revolta", diz uma delas, que se identificou com a personagem Bárbara Paz quando ela diz para juíza que é a palavra dela contra a do médico. "Foi exatamente isso que falei."