"Comecei a trabalhar como doméstica aos sete anos, mas me tornei escritora"
Tula Pilar, 48, começou a trabalhar como empregada doméstica aos sete anos de idade. Entre uma faxina e outra, ela descobriu o prazer da leitura ao limpar as estantes de livros nas casas onde trabalhava. A seguir, ela relata as dificuldades que passou como faxineira, a má-fama que ganhou entre as patroas por gostar de estudar e como se tornou poetisa.
“Eu morava em uma favela em Belo Horizonte (MG) com a minha mãe e seis irmãs. Minha mãe era diarista e me mandou para a casa de uma das patroas para eu brincar com as filhas dela e, em troca, ela me daria comida, roupa e estudo.
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Ela disse que me criaria como se eu fosse da família, mas me fazia lavar o banheiro, os azulejos da cozinha, as paredes e a encerar o chão. Eu me tornei faxineira aos sete anos de idade. Fiquei com essa mulher até os dez anos, quando fui para outra casa com uma das minhas irmãs. Ela para ser cozinheira e eu, arrumadeira.
Havia uma biblioteca enorme na casa dessa senhora. Eu limpava a estante e ficava encantada com os livros. Li as coleções de Walt Disney, Vaga-Lume e Monteiro Lobato. Uma vez ela me flagrou, pegou um verso que eu havia escrito, rasgou e mandou eu limpar.
Ela me deu um beliscão e me ameaçou. Passei a pegar os livros escondida. Colocava no balde, entre os produtos de limpeza, levava para o quarto, lia e depois devolvia. Minha mãe nos visitava a cada 15 dias e dizia para nos comportarmos e sermos honestas. Ela falava: ‘Somos negras, pobres e faveladas. Devemos saber o nosso lugar”.
Trabalhei como babá e empregada doméstica boa parte da minha vida. Tive momentos bons. As patroas me ensinavam como eu deveria me portar: a forma adequada de sentar, de andar e me corrigiam quando eu falava alguma coisa errada.
Outro lado bom eram as viagens. Fui para vários lugares dentro e fora do Brasil. Conheci outras culturas e fiquei hospedada em hotéis lindíssimos.
Fui vítima de racismo: me tiraram da piscina porque não era permitido pessoas de cor
Mas também havia o lado ruim, a rotina era cansativa. Começava a trabalhar 7h e, em dias de festas e eventos, ia até de madrugada. Também já fui vítima de racismo. Teve uma vez que eu estava brincando com as crianças na piscina em um clube quando um segurança exigiu minha saída.
Ele indicou uma placa onde informava que era proibida a entrada de pessoas de cor naquele espaço. A chefe reclamou: quem iria cuidar das filhas delas? Mas pediu para eu sair.
Aos 18 anos, fui para São Paulo para terminar os estudos e tentar uma vida melhor. A primeira casa em que trabalhei era de uma família de árabes, que era dona de um hotel. Eu e os outros funcionários não podíamos comer a mesma comida que eles. Comíamos o que sobrava do hotel e que não podia ser servido aos hóspedes. Também não podíamos usar o banheiro deles.
Fiquei com má-fama: minhas patroas não gostavam que eu estudasse e reivindicasse direitos
Eu via algumas injustiças e batia de frente com as minhas patroas. Elas achavam um absurdo eu reivindicar meus direitos trabalhistas, como férias e um salário maior, quando acumulava mais de uma função, como copeira.
Uma vez, uma chefe se sentiu ofendida, disse que não ia me dar um centavo a mais, que eu já morava na belíssima casa dela e comia a comida dela. Quando tive meus filhos, deixei de morar na casa dos patrões.
Teve uma outra madame que não gostava que eu estudasse. Ela questionava como eu poderia ser tão simplória e querer ler e escrever. O marido dela me apoiava, dizia que eu estava certa em querer ampliar meus conhecimentos. Ela até me emprestava os livros dela, mas reclamava quando eu saía para estudar.
Teve uma vez que eu fui para o curso de informática depois do expediente. Ela me procurou para eu arrumar a cama para ela dormir, mas não me achou. Ela orientou o porteiro a não deixar eu entrar porque tinha receio que algum bandido me seguisse e invadisse a casa.
Saí de lá e fui trabalhar em outro lugar para ganhar mais. Ela ficou brava e passou a dar referências negativas sobre mim em uma agência que prestava serviços de doméstica. Ela falava que eu era uma pretinha ótima de faxina, limpinha e de confiança, mas tinha umas manias feias: era muito abusada, lutava pelos meus direitos e adorava estudar.
Vendia poemas na rua e passei a sobreviver da minha arte
Por causa dessa fama, nenhuma madame quis me dar emprego. Fiz uns bicos como passadeira, entregava panfletos e pegava lixo reciclável. Comecei a trabalhar com arte de rua.
Eu escrevia poemas eróticos que exaltavam o corpo feminino ou situações que eu tinha vivido. Minha filha mais velha desenhava, eu tirava xerox e vendia na praça da República a R$ 5 ou pelo valor que a pessoa quisesse pagar. Às vezes, chegava a faturar R$ 200 por dia.
Nessa mesma época, em 2004, me tornei vendedora da revista Ocas, projeto social voltado a adultos sem emprego. Passei a frequentar os saraus e a me destacar por declamar meus poemas com uma performance especial, utilizando a dança e o teatro.
Tive alguns textos publicados na Ocas, em jornais e blogs. Escrevi dois livros: Palavras Inacadêmicas (2008) e Sensualidades de Fino Trato (2017). Hoje, eu sobrevivo da minha arte.
Nunca gostei de trabalhar como empregada doméstica, mas procurei pegar dessa experiência o que podia me agregar: a boa educação e o contato com a literatura. Fazer faxina, hoje em dia, só na minha casa. Troquei a vassoura pela caneta para escrever a minha própria história”.
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