Cresce cirurgia de "mudança de sexo". E nova regra pode aumentar os números
O número de cirurgias de redesignação sexual -- ou transgenitalização -- conhecida popularmente como cirurgia de mudança de sexo, aumentou em quase seis vezes, de 10 operações por ano para 57, nos dez anos em que o (SUS) Sistema Único de Saúde passou a cobrir o tratamento para pessoas transexuais. A quantidade de prescrições de hormônios deu um salto expressivo, de 171 para 1,9 mil entre agosto de 2008 e 2017. Na avaliação de especialistas, os números, obtidos por Lei de Acesso pela Universa, são considerados baixos, porém importantes. E as regras para a realização das cirurgias podem mudar, facilitando o acesso a elas.
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A intervenção é realizada nas pessoas que têm disforia de gênero: elas não se identificam com o sexo biológico. Nem todo mundo com a disforia necessita ou deseja fazer a cirurgia. E quem faz, precisa obedecer a normas determinadas pela Associação Profissional Mundial de Saúde Transgênero, baseadas em pesquisas feitas, na sua maioria, na América do Norte e Europa Ocidental. É preciso, por exemplo, fazer uma avaliação médica e dela receber um aval para que alguém comece a tomar hormônios que vão alterar características físicas do paciente. Veja as etapas no fim da matéria.
O termo “cirurgia de mudança de sexo” é incômodo para muitas pessoas trans. Uma das explicações é que não se trata exatamente de uma mudança.
"É porque se trata de uma cirurgia reparadora, para acompanhar com o gênero com o qual nos identificamos", explica a esteticista Gleyce da Conceição de Oliveira, de 30 anos. Ela está há cinco esperando na fila por uma cirurgia no Hospital Universitário Pedro Ernesto, no Rio de Janeiro.
O Ministério da Saúde cobre o atendimento ambulatorial (que têm equipes de ginecologistas, endocrinologistas e psicólogos, por exemplo) e hospitalar (que faz as cirurgias) para transexuais há dez anos. Entre eles estão a mastectomia (retirada de mama) e a histerectomia (remoção do útero). As cirurgias de redesignação sexual foram regulamentadas pelo Conselho Federal de Medicina em 1997. Antes disso, alguns hospitais universitários já as praticavam, com recursos do Estado onde se localizavam.
Nesses dez anos, foram investidos R$ 529,4 mil para procedimentos hospitalares e R$ 1,04 milhão para os ambulatoriais. Veja no fim da matéria quanto custou cada procedimento.
Faltam hospitais e especialistas
Elaine Costa Frade, chefe do departamento de endocrinologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, considera os números apresentados pelo SUS baixos. Uma das explicações, segundo ela, é a falta de hospitais que realizem o procedimento. O outro motivo é o baixo número de especialistas no tema. Na USP é feita uma cirurgia por semana, explica ela. No ano passado, foram 52 procedimentos e, neste ano, 33, até agora.
"São só cinco serviços no Brasil inteiro que realizam as cirurgias. Acho pouco. E falta capacitar pessoas. A USP é a única universidade que eu conheço que tem o curso que capacita profissionais da saúde, entre eles psiquiatras, endocrinologistas e cirurgiões, para os cuidados às pessoas transexuais", diz Elaine, que também é presidente da (SBEM) Comissão de Desreguladores Endócrinos da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia
Importante atentar para o fato de que o número de cirurgias não corresponde ao número de pessoas operadas: um paciente pode passar por até quatro procedimentos, por exemplo. Outro detalhe: há hospitais, como o Universitário Pedro Ernesto, no Rio de Janeiro, que operam uma vez por mês. E tem mês que não opera.
O Ministério da Saúde não comenta os números, mas informa, por meio de uma nota, que o credenciamento para a cobertura desses procedimentos "é feito a partir da solicitação dos gestores locais, a quem compete regular os serviços e o acesso da população aos procedimentos de mudança de sexo, de acordo com as demandas e necessidades identificadas regionalmente, o que inclui as listas de espera".
Critérios rigorosos
Os critérios para as cirurgias são rigorosos e necessários, conforme avalia Elaine. Também por isso, na sua avaliação, nossos números são considerados baixos:
"Não basta falar que quer fazer a cirurgia. Por dois anos, é preciso que a pessoa passe por uma equipe multidisciplinar. Os médicos e psicólogos, nesse tempo, verificam se o atendido está apto para receber hormônios e também para fazer as cirurgias”. Veja no fim da matéria os locais de atendimento.
No primeiro grande estudo sobre cirurgias de redesignação sexual produzido nos Estados Unidos, divulgado este ano, que pesquisou durante 15 anos dados hospitalares no país, os pesquisadores descobriram que o número de operações aumentou quatro vezes de 2000 a 2014. Alguns dos aumentos significativos, de acordo com o estudo, publicado na revista científica JAMA Surgery, podem estar relacionados a um aumento na cobertura de seguro.
Para ambos os gêneros, a idade mínima para procedimentos ambulatoriais é de 18 anos. Para a cirurgia, a pessoa deve ter, no mínimo, 21. Há ainda um ano de acompanhamento pós-cirúrgico.
Os pesquisadores da Johns Hopkins Medicine e Harvard University encontraram um total de 4,1 mil cirurgias desse tipo. Metade dos pacientes transgêneros no estudo pagou pela operação entre 2000 e 2005. Esse número subiu para 65% entre 2006 e 2011. Mas entre 2012 e 2014, foi reduzido a 39%, e grande parte, afirmam os autores do estudo, é por causa da cobertura pública.
Possíveis mudanças
O chefe do Serviço de Urologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Tiago Elias Rosito, tem a mesma avaliação de Elaine: "é pequena a quantidade de hospitais que realizam o procedimento". Ele já computou 200 cirurgias feitas no HCPA desde 1998, quando o local passou a atender pessoas trans, ainda com recursos do Estado.
O Conselho Federal de Medicina está discutindo, neste momento, a possibilidade de criar novos critérios para o atendimento a pessoas trans. Ela é feita com grupos de profissionais da área. Rosito, que participa dessas discussões, adianta que uma das mudanças pode ser a redução do tempo de preparação dos interessados em fazer a cirurgia de dois anos para apenas um. "Um ano é mais do suficiente para a cirurgia". O CFM confirma a discussão, mas informa não ter data para publicar possíveis novas regras.
"A regra precisa continuar a ser rígida. Há locais, como a Tailândia, onde você marca a cirurgia pela internet. Muitos não querem passar pelo processo. Nossa regra é padrão”, avalia Rosito.
Falta hormônio
A terapia hormonal para pessoas trans aparece na tabela do SUS a partir de 2009. Naquele ano foram 171 prescrições de medicamentos, ao custo de R$ 11,2 mil. Ano passado, foram 1968, sob o valor de R$ 108,8 mil. Pouco, na avaliação da enfermeira Andressa Verchai de Lima, chefe do CREM (Centro Regional de Especialidades Metropolitanas), que cuida das pessoas trans em Curitiba.
São cinco os locais credenciados no SUS para procedimentos ambulatoriais. Alguns, no entanto, não distribuem hormônios. Caso do Rio de Janeiro. Lá, o médico do (Iede) Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia indica o medicamento e os pacientes precisam, por conta própria, comprá-lo. Uma ampola de testosterona custa R$ 30, e é recomendável ser administrada três vezes por mês. Há ainda uma ampola de R$ 400, que se toma a cada três meses, com menos efeito colateral. A esteticista Gleyce da Conceição de Oliveira afirma gastar R$ 400 mensais.
"Faço acompanhamento no Iede e compro medicamento há quatro anos. Eles falam que não têm verba e não recebem a medicação", relata Gleyce.
Em Curitiba, Andressa lembra que o CREM ficou dois meses sem receber hormônios por causa da dificuldade de encontrar fornecedor. Hoje, o centro tem 624 usuários cadastrados para receber serviço ambulatorial. Em 2017 foram distribuídos 73,9 mil comprimidos e 1,4 mil ampolas de hormonioterapia.
Onde tem atendimento
Em São Paulo, são quatro os hospitais públicos que realizam cirurgia de redesignação sexual: o Geral de Pedreira, o Estadual de Diadema, o das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, e o Estadual Mário Covas.
Segundo a Secretaria Estadual da Saúde, entre 2010 e 2017 foram feitos 508 procedimentos cirúrgicos, incluindo mamoplastias e genitoplastia masculinizante e feminizante. O Estado tem ainda o Ambulatório de Saúde Integral para Travestis e Transexuais do CRT DST/Aids, responsável por preparar o paciente para a cirurgia.
Em Minas Gerais, o Hospital das Clínicas de Uberlândia (MG) realiza procedimentos apenas ambulatoriais.
No Rio de Janeiro, o Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia (IEDE) atende a parte ambulatorial. Em 2017, foram 1,2 mil pacientes. Este ano, até junho, já foram mil. O Hospital Pedro Ernesto também oferece a parte ambulatorial como terapia hormonal, além de realizar cirurgias.
Em Curitiba, o Centro Regional de Especialidades Metropolitano atualmente atende 340 usuários na parte ambulatorial. No ano passado foram mais de 800 consultas médicas.
O Hospital de Clínicas de Porto Alegre também atende pacientes habilitados para cirurgia.
Em Vitória (ES), o Hospital Universitário Cassiano Antonio de Moraes faz atendimento ambulatorial e cirúrgico. Atualmente há 150 pacientes em atendimento.
Em Goiânia, o Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás também opera e atende de forma ambulatorial: foram 116 cirurgias entre 2001 e 2013. E aproximadamente 200 pessoas estão terminando o processo transexualizador.
O mais recente serviço credenciado pelo SUS é o do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco: o espaço realizou a primeira cirurgia de redesignação sexual em 2015, e de lá para cá foram cerca de 22.
Procedimentos cirúrgicos cobertos pelo SUS:
*Redesignação sexual: retirada dos testículos (orquiectomia bilateral), amputação peniana e construção de uma vagina a partir da bolsa escrotal, além de alongamento das cordas vocais e tireoplastia para redução do pomo de adão. Foram 348 entre 2008 e 2017, ao custo de R$ 434,8 mil.
*Cirurgias complementares: ajustes no novo órgão, cirurgia estética para correções dos grandes lábios, pequenos lábios e clitóris e tratamento de feridas operatórias. Foram 48 entre 2014 e 2017, ao custo de R$ 20,5 mil.
*Histerectomia com anexectomia bilateral e colpectomia: extração do útero e ovários, com retirada total ou parcial da vagina. Foram 18 entre 2014 e 2017, ao custo de R$ 23,9 mil.
*Mastectomia simples: retirada de ambas as mamas com reposicionamento do mamilo. Foram 12 entre 2014 e 2017, ao custo de R$ 9,9 mil.
*Plástica mamária reconstrutiva, incluindo prótese mamária de silicone: foram 21 entre 2014 e 2017, ao custo de R$ 37,9 mil.
*Tireoplastia: redução do pomo de adão para a feminilização da voz e/ou alongamento das cordas vocais. Foram 6 entre 2015 e 2017, ao custo de R$ 2,7 mil.
*Acompanhamento de usuário(a) exclusivamente para atendimento clínico: feito por equipe multiprofissional, como endocrinologista e assistente social. Foram 5,3 mil entre 2008 e 2017, ao custo de R$ 223,8 mil.
*Acompanhamento do usuário, nas etapas do pré e pós-operatório: acontecem no máximo dois atendimentos mensais, durante no mínimo dois anos no pré-operatório e por até um ano no pós-operatório, com médicos como ginecologista obstetra, cirurgião plástico e urologista. Foram 16,2 mil entre 2014 e 2017, ao custo de R$ 636,3 mil.
*Terapia hormonal: é o uso de estrógeno ou testosterona disponibilizados mensalmente, após o diagnóstico. Foram 2,2 mil entre 2008 e 2017, ao custo de R$ 118,9 mil.
*Tratamento hormonal preparatório para cirurgia de redesignação sexual: hormônio (ciproterona) tomado no período de dois anos que antecede a cirurgia. Foram 916 entre 2014 e 2017, ao custo de R$ 60 mil.
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