"Sou cega e sou cabeleireira. Não preciso dos olhos, mas das mãos"
Marlene Mello, 28, enxergava normal, mas, aos 17 anos de idade, perdeu de 90% a 95% de sua visão devido à hidrocefalia e neurocisticercose. Nesse depoimento à Universa, a cearense conta como deu a volta por cima e realizou seu sonho. “Para ser cabeleireira, eu não precisava dos meus olhos, mas das minhas mãos”.
“Eu enxergava perfeitamente, mas, aos 17 anos, comecei a perder a visão. Os primeiros sinais foram: derrubava as coisas no chão, colocava comida no prato e deixava cair no fogão, esbarrava nos móveis. Uma noite estava lendo a Bíblia e percebi que minha visão escureceu. Passei a sentir muita dor de cabeça, dor na nuca e ânsia de vomito. Os sintomas foram se agravando, mas eu não contei para ninguém. Um dia, meu pai me viu procurando uma moeda no chão, desconfiou que eu estava com algum problema e comentou com a minha mãe. Eu admiti que eu não estava enxergando direito e eles me levaram ao hospital.
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Fiz uma bateria de exames e, após ficar um mês internada, os médicos descobriram que eu tinha hidrocefalia, neurocisticercose e uma lesão no tronco cerebral. Fiz uma cirurgia para colocar uma válvula no tratamento contra a hidrocefalia, mas os médicos disseram que não havia nenhum procedimento para recuperar a minha visão. Passei a enxergar só de 5% a 10%. Minha visão é embaçada, eu consigo ver algumas cores, mas não enxergo nitidamente nem consigo ler.
Montei um salão na sala de casa: minhas primeiras clientes foram minha mãe e algumas amigas
Parei de estudar, entrei em depressão e quis tirar a minha própria vida. Fiquei assim por alguns meses até que decidi dar a volta por cima. Pensei: ‘Minha visão não vai voltar, mas ainda assim eu posso fazer a diferença”. Falei para a minha mãe que eu queria ser cabeleireira. Ela perguntou se eu estava doida, mas eu respondi que esse era meu sonho desde criança e que eu iria realizá-lo.
Fiz vários cursos na área e me destacava como uma das melhores alunas. Montei um salão na sala da minha casa, em Fortaleza. Minhas primeiras clientes foram a minha mãe e algumas amigas da igreja. Eu lavava o cabelo delas no tanque e secava com o ventilador. Tinha poucos instrumentos de trabalho, uma tesoura, um pente, uma escova e uma chapinha.
Aos poucos, fui me estruturando e aumentando as minhas habilidades: fazia corte, coloração, alisamento, escova, hidratação, penteados. No início, eu tentava forçar minha visão para ver se eu enxergava o cabelo, mas, entendi que, para ser cabeleireira, eu não precisava dos meus olhos, mas das minhas mãos. Através do tato, eu sinto o cabelo e uma mão vai conversando com a outra. É um dom que Deus me deu, ele me capacita.
Faço o corte chanel de bico usando o carregador do celular
No começo, sofri bastante preconceito, inclusive na minha própria família. Minhas tias e primas ficavam com medo, davam alguma desculpa e diziam que depois marcariam um horário comigo. Algumas pessoas iam ao meu salão sem saber da minha deficiência, quando descobriam, ficavam assustadas e iam embora sem ser atendidas. Hoje em dia, conquistei o meu espaço, tenho o respeito e admiração de quem confiou no meu trabalho. Meu público é formado por mulheres e crianças.
Nunca tive medo de errar, sempre fui confiante, mas já tive alguns desafios. Achava difícil fazer o chanel de bico, mas me adaptei e passei a usar o carregador do celular para executá-lo. É simples, a cliente inclina o pescoço na posição de descanso para a frente, eu jogo todo o cabelo para trás, coloco o carregador por cima, peço para ela segurar o fio e faço a base do corte. Depois finalizo.
A interação com a cliente é muito importante no meu processo criativo. Primeiramente, eu pergunto o que ela quer fazer, depois procuro saber o maior número de informações sobre ela: qual a profissão dela, que estilo de roupa ela usa, como é a personalidade dela. À medida que vou conhecendo a pessoa, isso me inspira para mexer no cabelo dela.
Ao longo da minha carreira, me especializei em cabelos cacheados, crespos e naturais e criei uma conta no Instagram, @marlenemellocachos, onde divulgo o meu trabalho.
Casei com o Alex, que também é cego, e hoje ele é meu assistente no salão
Em 2011, conheci o meu marido, Alex –que nasceu cego-- através de um bate-papo voltado para deficientes visuais. Foi amor à ‘primeira ouvida’. Nos apaixonamos de ouvir a voz um do outro. Namoramos e ficamos noivos à distância. Ele morava em São Paulo e eu em Fortaleza.
Em três meses, oficializamos a união e só nos conhecemos pessoalmente no dia do nosso casamento. O Alex é meu sócio e assistente no salão. Hoje temos uma filha, a Ana Clara, de um ano e três meses, e que tem a visão perfeita. Ela foi a melhor coisa que aconteceu na nossa vida, foi enviada por Deus para ser os nossos olhos.
Sinto orgulho da minha trajetória. Construí uma carreira, formei uma família e aprendi que o céu é o limite, não existem obstáculos nem barreiras quando temos um sonho: me tornei uma ótima cabeleireira mesmo sendo deficiente visual”.
Você também tem uma história para contar? Ela pode aparecer aqui na Universa. Mande o resumo do seu depoimento, nome e telefone para minhahistoria@bol.com.br. Sua identidade só será revelada se você quiser.
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